Apontada como possível solução para frear avanço do coronavírus no Brasil, novos estudos indicam um maior número de mortes com a adoção do modelo
Fonte: Jornal GGN/Reprodução
A imunidade de rebanho acontece quando uma população se torna imune ao contágio de um vírus, depois que boa parte das pessoas que foram contaminadas desenvolve anticorpos para a doença. O termo tem tomado conta dos noticiários brasileiros depois de que o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde durante a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, levantou a hipótese de que as cidades de Manaus (AM) e São Paulo (SP) estariam próximos de chegar a um pico de contaminação e assim, teriam alcançado a imunidade de rebanho. De acordo com essa teoria, uma grande parte da população dessas cidades já teria desenvolvido anticorpos, o que evitaria o avanço do vírus.
Porém, em entrevista à BBC News Brasil, o diretor do departamento de doenças contagiosas da Organização Pan-americana de Saúde, da Organização Mundial de Saúde, Marcos Espinal, afirmou que “não há nenhuma evidência de que a imunidade de rebanho possa ter sido atingida em qualquer parte do Brasil”. Segundo Espinal, cerca de 50% e 80% da população deveria desenvolver anticorpos contra a Covid-19 para que a imunidade de rebanho fosse alcançada. Hoje, a OMS trabalha com uma taxa de anticorpos em cerca de 14% da população de Manaus e pouco mais de 3% em São Paulo.
De acordo com Marco Lobato, 49, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Maria o conceito da imunidade de rebanho vem de uma definição o campo da Medicina Veterinária, de uma visão de que alguns indivíduos dentro de um rebanho podem ser descartáveis. “Do ponto de vista humano, não é um conceito muito interessante, exceto quando a gente vai trabalhar com imunizações induzidas. Para gerar essa imunidade naturalmente, expondo pessoas ao vírus, não é eticamente adequado. É preciso ter muito cuidado. Os locais onde isso é aplicado estão esquecendo do conceito de que toda vida deve ser preservada”, salienta o médico.
Embora o debate sobre a eficácia da imunidade de rebanho seja atual, não é de hoje que esse termo é usado, ele foi empregado em outras pandemias, como a da Peste Negra e a da Varíola. Em relação à Covid-19, não há consenso sobre a porcentagem exata necessária de pessoas com anticorpos para que a imunidade seja alcançada. Entretanto um modelo matemático desenvolvido recentemente pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra, e a Universidade de Estocolmo, na Suécia, aponta que a imunidade coletiva ao coronavírus só será alcançada quando 43% da população apresentar anticorpos para a doença, o que poderia significar um risco muito alto para saúde pública.
Em entrevista à BBC Brasil, o epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, afirma que “esperar a imunidade de rebanho é absurdo e antiético, pois isto levaria anos para se concluir e o número de óbitos que teríamos se esperássemos que o Brasil atingisse esta imunidade seria apocalíptico”. Hallal é coordenador de um estudo, desenvolvido na UFPel, que apontou que o Brasil possui, atualmente, em julho de 2020, 3,8% de brasileiros que já tiveram contato com o vírus, o que indica que a imunidade de rebanho demoraria muito tempo para ocorrer no país.
O diretor do departamento de doenças contagiosas da Organização Pan-americana de Saúde, da Organização Mundial de Saúde, Marcos Espinal, elenca ainda outra dificuldade para a funcionalidade do modelo de imunização de rebanho. “Os estudos mais recentes mostram que os anticorpos necessários para caracterizar imunidade de rebanho, aqueles que podem realmente destruir a doença, começam a desaparecer depois de três meses que a pessoa teve a infecção”, explica. Desta maneira, a possibilidade da imunidade coletiva fica ainda mais difícil de ser alcançada.
Apesar de controversa, a estratégia da imunidade de rebanho foi, inicialmente, a adotada para tentar combater o coronavírus no Reino Unido. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, afirmou, em março, que a melhor saída era esperar pelo aumento da imunidade local. Porém, depois da publicação de um estudo da Universidade Imperial College, de Londres, mostrando que o modelo não reduziria o iminente grande número de mortes no país, o governante voltou atrás e passou a adotar novas medidas preventivas, como o isolamento social.
Outro país que adotou a estratégia da imunidade de rebanho, o governo da Suécia admitiu, em junho, que a imunidade está demorando mais do que o inicialmente previsto pelas autoridades locais. Diferente dos países vizinhos, a Suécia adotou medidas mais leves contra o coronavírus, permitindo uma maior circulação de pessoas, mantendo aberto o comércio e escolas. Assim, atualmente possui mais de 5 mil mortes causadas pela Covid-19, enquanto Dinamarca e Noruega, que optaram por adotar o isolamento social desde o início da pandemia, têm menos de 700 mortes registradas em cada país.
O que dizem os especialistas
Rosecléia Timm Lopes, 36 anos, Bióloga, formada pela Universidade de Pitágoras (Unopar), polo de Cruz Alta, alerta para uma possível ineficácia desse modelo. “Não acredito que isso seja eficaz, pois a quantidade de pessoas que precisam ser infectadas para que se crie uma imunidade coletiva pode ser ainda maior do que se acreditava antes, e isso demoraria muito tempo”, explica.
Segundo ela, “a memória imunológica que cada corpo tem em relação ao vírus se diverge devido à reação diferente que cada organismo tem ao ter contato com o novo vírus, por isso algumas pessoas precisam de respirador, outras nem sabem que tiveram contato com o vírus”, conclui.
O médico, Marcos Lobato, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Maria, afirma que a possibilidade de imunização de rebanho neste momento não deve ser adotada como estratégia para conter o avanço da doença. “A imunidade coletiva será importante quando se trabalhar com uma vacina. Neste momento atual, isso é uma irresponsabilidade. Pessoas que advogam isso estão fora de um modelo ético mínimo. Fazer isso seria admitir, para essas pessoas, que vidas são dispensáveis pois teríamos que ter uma grande proporção da população exposta e contaminada, resultando em muitas mortes”, afirma Marcos Lobato.
Ivaniza Batista, médica e professora adjunta no Departamento de Saúde na UFSM, campus de Palmeira das Missões complementa. “Em relação a imunidade, temos que entender que nosso sistema imune é capaz de produzir uma resposta rápida, quando estamos diante de um patógeno, então, é possível adquirir a imunidade contra a Covid, sim”, porém, como alertado por outros especialistas, o tempo de imunidade é a grande dúvida. Além disso, Ivaniza alerta que cada organismo se comporta de maneira diferente diante das doenças. “ O vírus, nem é considerado um ser vivo completo, ele é mais um parasita composto de uma camada de gordura e dentro desta camada existe uma proteína que atacam as células humanas, entretanto cada organismo se comporta de forma diferente por diversos fatores, seja de idade, de um sistema imunológico mais forte ou de ter ou não outras comorbidades”, ressalta a médica.
Médicos e especialistas consultados pela nossa equipe concordam que se este modelo for adotado, provavelmente terá como resultado um alto número de óbitos no país e ressaltam que, como ainda não se tem um tratamento comprovado para a Covid-19, o melhor remédio é o isolamento social.
O medo de quem já foi contaminado
Uma estudante da UFSM, campus de Frederico Westphalen, de 22 anos, que preferiu não se identificar, foi contaminada com a Covid-19 no final de maio deste ano, ela conta que passou por dias difíceis e de muita luta contra o próprio corpo para conseguir melhorar. A estudante conta que tem medo de se contaminar novamente “pelo fato de ser uma doença nova e não se saber muita coisa a respeito desta, não sei quanto tempo dura minha imunidade, dois ou três meses, se posso ser contaminada de novo” conta a estudante.
A aposentada Maria Soletti, 74, conseguiu se salvar da Covid-19 com tratamento domiciliar, mas passou conta que teve medo de precisar de internação. Embora recuperada, permanece o medo de contrair novamente o vírus. “Agora que não saio de casa, eu sei como que é a infecção e sei também que não é nada agradável, então meus cuidados após ter contraído o vírus tem sido dobrados” conclui a aposentada.
Texto: Douglas Cavalini e Igor Mussolin
Apuração: Alice Rodrigues, Igor Mussolin, Jeferson Matielo, Yasmin Vilanova
Edição: Alice Pavanello