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Velhinha’ ativista contra a AIDS

O conhecimento oriundo de uma avó portadora de HIV



“Uma velhinha feliz!” Nestes tempos em que todos somos “stalkers” no mundo virtual, esta é a frase que aparece em destaque no perfil da servidora pública aposentada Beatriz Pacheco, no Facebook. Bia, como ela gosta de ser chamada – “sem isso de senhora! Se a gente está conversando, que possamos ficar bem à vontade uma com a outra” – é uma mulher de 67 anos, viúva, mãe de quatro filhos, ativista da luta contra o HIV/Aids. Em 1997, quando estava perto dos 50, pronta para se tornar avó e casada pela terceira vez, descobriu-se HIV positivo e tornou-se, então, uma das primeiras mulheres a assumir publicamente a doença, em busca de um futuro com mais conhecimento e menos preconceito.

 

Após o diagnóstico, Bia e o marido Carlos, já falecido, passaram a procurar os veículos de comunicação para expor a situação. A partir de Porto Alegre, onde moravam, organizaram eventos, mesas de negociações com empresas, semanas de conscientização por todo o Rio Grande do Sul. Após a morte do marido, Bia continuou o trabalho. Deu entrevistas e participou do documentário universitário “Codinome Beija-flor”, dirigido pelo estudante da Unisinos, Higor Rodrigues. Tudo isso por acreditar na capacidade que o conhecimento tem de ampliar a prevenção e diminuir o preconceito.

 

Como foi a descoberta do teu HIV?

Eu peguei HIV com o meu segundo marido. Mas até ele falecer, nada tinha se falado sobre HIV nas nossas vidas. Em 1996, eu tive problemas de pele. Os médicos examinavam e diziam que não era nada, que era uma alergia. E me davam cremezinho e eu passava os cremezinhos, os antialérgicos, e nada adiantava. Eu passei em oito médicos diferentes e eu já tinha feridas pelo corpo todo. E ninguém se dava conta do que eu tinha. Os médicos já estavam pesquisando câncer de pele e leucemia. Então, eu ia ao médico e eu brincava que eles me tiravam bifes. Eles faziam biópsia de tudo e era tudo inconclusivo. Eu já estava desesperada, porque eu já tinha feridas no rosto, quando a minha nora disse que tinha um amigo do pai dela que era dermatologista. E a minha sorte era que esse dermatologista atendia justamente no posto de saúde que atendia pessoas com HIV. Ele também tirou uns bifes, fez a mesma coisa, e um dia, num constrangimento extremo, ele me chamou na sala e disse “a senhora se importaria de fazer um exame de HIV?”. Eu estourei na gargalhada e disse “meu senhor, eu sei que eu tenho quase 50 anos, mas eu só tive três homens na minha vida, meus três maridos. Eu não sou uma mulher promíscua”. Mas eu disse isso dando risada e ele olhou bem sério para mim e disse assim: “a senhora acha que HIV e Aids têm alguma coisa a ver com conduta moral?”. Aí eu fiquei chocada, olhei para ele e disse “não têm?” e ele disse “não, senhora”. Aí eu fiquei constrangida e disse “não, eu quero fazer o exame, sim. O senhor acha que eu posso estar com HIV?”, eu nem sabia a diferença entre HIV e Aids. Aí ele disse “sim, sim, eu quero que a senhora faça”. Eu fui fazer o exame ainda rindo, porque eu tinha certeza absoluta que isso não era para mim.

 

“a senhora acha que HIV e Aids têm alguma coisa a ver com conduta moral?”. Aí eu fiquei chocada, olhei para ele e disse “não têm?” e ele disse “não, senhora”

 

E como a senhora reagiu quando chegou o resultado?

Naquela época os exames eram muito demorados, porque eles iam para fora, não sei onde eram feitos, mas não era aqui e levava três meses para vir o resultado. Quando eu busquei o meu resultado, eu ainda brinquei e disse “tchau, tchau, gente, eu vou lá buscar o meu resultado de HIV positivo”, mas dando risada, porque eu tinha certeza que não tinha nada. E aí, eu fui. Eu não fiz em posto de saúde, eu fiz em laboratório comum. No posto de saúde, o exame de HIV tem todo uma conduta de explicação antes e depois, quem entrega o resultado é um psicólogo ou o médico mesmo. Agora, no laboratório, eles te atiram assim o resultado num envelopezinho e tu sai. E eu abri o exame e estava escrito “reagente”. A gente lê o que quer ler. E eu pensei “se o meu organismo reagiu, eu não tenho nada” e segui. Depois eu parei e li de novo e pensei “não, se é reagente, é porque reagiu e, se reagiu, é porque é positivo” e era exatamente o que estava escrito nas letrinhas miúdas. Meu mundo caiu. Eu liguei para o Carlos e falei “Carlos, eu tenho Aids” e ele disse “eu estou indo para casa” e eu pensei que ele vinha me dizer que ia ficar tudo bem, que eu não tinha nada. Mas ele chegou transtornado, com muito medo, gritou muito e então desmaiou. Eu fiquei apavorada.

 

Como era a medicação quando você descobriu o HIV?

Era um coquetel enorme e ainda não existia no Brasil. Chegou logo depois, mas a minha carga viral era muito alta, de 1 milhão/litro de sangue. Para poder tomar a medicação eu precisava que esse número chegasse em 200/litro de sangue. E eu não conseguia. Me deram uma expectativa de vida de 18 meses naquela época, em 1997. Então a gente começou a comprar os remédios no exterior. Custava uns 2800 dólares. Nós fizemos muitas dívidas. Em alguns dias, precisávamos escolher entre pegar ônibus ou comprar pão. Depois comecei a receber o medicamento, mas tinha muitos efeitos colaterais.

 

Que tipo de efeitos colaterais?

Eu tive alterações corporais: as pernas afinaram e a gordura foi para o abdome. A meta era alcançar a carga viral indetectável, mas eu só consegui depois de 1999, quando chegou esse remédio novo, que foi o único que realmente baixou minha carga viral. Só que aí eu tive Síndrome de Steves-Johnson, que causou necrose na pele.  Não queriam me atender no hospital. Os médicos tinham medo. O maior preconceito que eu sofri durante todo esse tempo veio dos médicos.

 

Beatriz e seus três filhos e sua filha

Você falou que pegou HIV no segundo casamento? Se importa de falar um pouco sobre como descobriu isso?

Bom, para te explicar um pouquinho: eu fui casada por 30 anos com o pai dos meus filhos e me divorciei. Depois, passado algum tempo, eu tive um outro companheiro, que era um homem bem mais velho do que eu e tinha sido alcoolista quando jovem, então ele tinha uma saúde bem frágil. Isso era 1992. De tempo em tempo, ele se hospitalizava para fazer transfusões de sangue, porque ele tinha deficiência de vitamina K. Nessa época, pouco se falava de HIV e, quando se falava de HIV ou Aids, se falava em grupos de risco, que eram os homossexuais, os usuários de drogas, os hemofílicos e as prostitutas. Ele era bem mais velho que eu, eu já tinha 40 e poucos anos, nós já éramos um casal maduro, então a ideia de passar HIV assim, um casal fixo, parceiros fixos, não existia. Nós vivemos juntos dois anos e meio, ele faleceu, segundo os médicos, de cirrose hepática, que era o que ele já tinha, em decorrência do excesso de álcool na juventude. Nem os médicos naquela época se deram conta de que, numa das transfusões de sangue ele se infectou com HIV. Ele faleceu sem que nada se falasse da existência de HIV na nossa vida.

 

E como o Carlos entrou na sua vida? Qual o papel que ele teve na descoberta do seu HIV?

Depois do que aconteceu, eu imaginei que não era para eu ter outro parceiro, eu ia tocar a minha vida cuidando dos meus quatro filhos. E toquei a vida adiante, mas excluí a ideia de ter um homem na minha vida. Com a minha idade, a minha geração era assim: a gente só ia para a cama com o marido. Eu até então tinha tido dois homens na minha vida e era só. Passados quase cinco anos, eu reencontrei um amigo de infância, só que nós não nos reconhecemos quando nos reencontramos e foi tudo por acaso. E a gente se encantou um pelo outro, e, depois, conversando, veio à tona que nós já nos conhecíamos da infância. E foi uma daquelas coisas muito malucas. Eu já perto dos 50 anos e ele também, nós fomos viver juntos, apaixonados um pelo outro. E meus filhos brincavam muito comigo e diziam que nós dois eram dois “envelhecentes”, velhos metidos a adolescentes, porque foi assim uma coisa de se olhar e se gostar. E eu estava com ele há um ano e meio quando comecei a ter problemas de pele, que eram, na verdade, uma catapora, porque o vírus ataca o sistema imunológico.

 

Eu recebi o meu resultado em março de 1997 e ainda tivemos que esperar mais três meses até chegar o resultado do exame do Carlos. Quando chegou e deu negativo, eu achei que ia explodir de felicidade, porque eu não tinha infectado o homem que eu amava. Mas depois eu fiquei com medo, eu pensei “eu sou velha, não sou bonita e tenho HIV. Esse homem vai me largar”. Mas ele fez uma das coisas mais lindas que ele podia ter feito. Me pediu perdão e disse que queria que nós colocássemos a cara para o mundo ver. Nós queríamos mostrar a vida completamente normal que nós levávamos.

 

A maioria das pessoas que têm o vírus do HIV não sabe. Então, eu quero que as pessoas saibam que o perigo não sou eu, que assumo. O risco está nessas pessoas

 

 

Você teve medo dessa exposição?

Não, o Carlos me dizia para me mostrar e eu sabia que ele e os meus filhos, que era quem importava, iam estar comigo. Não me esconder foi uma das melhores coisas que eu fiz. A maioria das pessoas que têm o vírus do HIV não sabe. Então, eu quero que as pessoas saibam que o perigo não sou eu, que assumo. O risco está nessas pessoas. O risco está em todo mundo que tem vida sexual ativa e não se protege.

Reportagem: Kauane Müller
Fotografias: Facebook

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