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Documentários queer

Pesquisa premiada da UFSM discute a representação de personagens LGBT em filmes do sul do país



Uma trajetória de pesquisa que nasce de um desajuste social. É assim que Dieison Marconi, que ganhou o prêmio de Melhor Dissertação de 2016 pela Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), define seu percurso acadêmico.

 

A dissertação “Documentário queer no Sul do Brasil (2000-2014): narrativas contrassexuais e contradisciplinares nas representações das personagens LGBT” teve orientação do professor Cássio Tomaim, no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM. A pesquisa analisa como são representadas personagens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nos documentários produzidos na região sul do país durante 14 anos. Ou, pelas palavras de Dieison, o objetivo do trabalho é dar um close.

 

Dieison é jornalista, e atualmente faz doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As motivações da pesquisa, suas considerações sobre os documentários analisados e a importância do prêmio foram alguns dos temas abordados na entrevista para a revista Arco.

 

Como foi a escolha desse tema de pesquisa e por quê?

A escolha desse tema foi tanto pessoal quanto política. No primeiro ano da graduação, entrei para o Moviola, grupo de pesquisa e extensão que trabalha com cinema, documentário e memória. Nessa época eu ainda me sentia muito desajustada, me sentia monstruosa e estava em processo de sair do armário. Quando entrei para o Moviola, comecei a me perguntar: por que não estudar os modos de produção de gênero e sexualidade nos filmes documentários? Minha trajetória de pesquisa brotou de um desajuste social. A universidade me ajudou a perceber que eu não devia me sentir culpada e continuar me machucando por me sentir tão desajustada dentro dessas estruturas sexuadas e generificadas da nossa cultura. Mas para sair do armário e tirar o peso das costas, eu senti que precisava aprender como essas estruturas funcionam, eu senti que precisava de bons argumentos para combater as violências a que eu era subjugado por ser bicha. Então, percebi também que eu queria muito entender as operações que elegem algumas pessoas como humanos, outros como desumanos e outros como inumanos. Querendo ou não, o sexo/gênero é uma categoria primária de reconhecimento. E pessoas como eu, que destoam das marcas inteligíveis de sexo/gênero são sim desumanizadas ou, pior, não são consideradas humanas. Qual a humanidade que as pessoas veem em uma travesti brutalmente assassinada? Nenhuma. Quais são os códigos que nós estamos acostumados a utilizar para definir o que é e o que não é um humano? Então vem daí a escolha desse tema de pesquisa.

 

Por que você escolheu analisar especificamente documentários?

Primeiro, porque o documentário, desde as primeiras revistas especializadas em cinema no Brasil, sempre foi discriminado, como sinônimo de um país e de um cinema subdesenvolvido. Em segundo lugar, ao contrário do filme de ficção de longa-metragem, que sempre foi considerado a vitrine do nosso cinema, o filme documentário também sofreu com um apagamento na historiografia clássica do cinema brasileiro. Além disso, são poucos os estados brasileiros que produzem (de forma contínua) filmes de ficção de longa-metragem. Nesse caso, podemos citar São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Mas todos os estados do país produzem documentários ou mesmo ficção e documentários de curta e média metragem. Além disso, os (poucos) estudos em cinema queer no Brasil raramente lançam um olhar sobre o filme documentário. Então, não podemos deixar que a ideia totalizante de estudos sobre “cinema queer” omita o fato de que o documentário nem sempre é objeto de pesquisa desses estudos. Quais são e como são os documentários queer no Brasil? O que os filmes documentários dizem sobre as pessoas LGBT? O que é documentário queer? Foram essas perguntas que persegui. Além disso, vejo o filme documentário como um campo muito frutífero de explorações estéticas e narrativas. Isso é um prato cheio para ser devorado por uma estética e uma política queer.

 

“Eu queria muito entender as operações que elegem algumas pessoas como humanos, outros como desumanos e outros como inumanos. Pessoas como eu, que destoam das marcas inteligíveis de sexo/gênero são desumanizadas ou, pior, não são consideradas humanas”

 

 

 

Como foi a seleção dos 19 filmes que fizeram parte da pesquisa?

Para essa pesquisa eu me situei na região Sul do Brasil. Resolvi fazer o recorte de documentários com personagens gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). A partir daí, eu realizei o mapeamento dos documentários com personagens LGBT que a região Sul produziu entre 2000 e 2014. A partir do início dos anos 2000, cresceu bastante a produção de documentários no país e as LGBT tornaram-se mais recorrentes em produtos midiáticos. E 2014 foi o ano que entrei no mestrado.

 

Busquei mapear os filmes nos Dicionários de filmes brasileiros, na Cinemateca Brasileira, nas Cinematecas de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, nos documentos da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e em muitos festivais de cinema do país, principalmente naqueles voltados para à diversidade sexual e de gênero. Também usei tags para pesquisar no Google e no Youtube. Após fechar o mapeamento, selecionei apenas os filmes feitos por produtoras de cinema, grupos/coletivos de ativismo e ONGs. Descartei filmes feitos por universitários, por exemplo. Então, fiz uma análise dos 19 filmes selecionados. Sempre faço a ressalva de que não afirmo que esses foram os únicos filmes que a região Sul produziu em quatorze anos, mas que foram aqueles que consegui encontrar durante o processo de mapeamento. Logo, a preocupação também foi mais qualitativa do que quantitativa.

 

Dieison com colegas no dia da sua banca de defesa da dissertação de mestrado

 

Como você avalia, de forma geral, a produção de documentários sobre a temática LGBT no Sul do Brasil, no período da sua análise?

Considerando que desde 1995 a região [sul do Brasil] produziu mais de 300 documentários (entre longa, curta e média metragem), e que eu encontrei apenas 19 filmes com personagens LGBT realizados por produtoras de cinema/grupos de ativismo, podemos dizer que temos uma produção muito pequena. O que noto nesses filmes, com personagens LGBT, é que as temáticas que eles mais abordam coincidem com os temas que o documentarismo aqui do Sul aborda de modo geral. Em Santa Catarina e Paraná, por exemplo, o tema memória/história está na preferência dos realizadores, representando de 20% e 25% das produções. Aqui no Rio Grande do Sul os temas comportamento (19%) e Artes em geral (18%) predominam, mas 14% dos nossos documentários tratam de assuntos relacionados à memória/história.

 

É por isso que os documentários com personagens LGBT que cartografei para a minha pesquisa tratam de personagens LGBT históricas, como a Gilda [“Gilda, o beijo na boca maldita”, dirigido por Yanko Del Pino], Caio Fernando Abreu [“Sobre Sete ondas verdes Espumantes”, de Bruno Polidoro e Cacá Nazário] e Ivo [“Ivo e suas Meninas”, de Betânia Furtado]. Há também os filmes que se dedicam a retratar momentos históricos, como a cena LGBT na Porto Alegre dos 1970, 1980 e 1990 [como “Meu tempo não parou”, de Jair Giacomini e Sílvio Barbizan, e “Flores de 70”, de Vinícius Cruxen]. Outras temáticas abordadas foram sexualidade e envelhecimento, sociabilidades LGBT e reivindicações sociais e políticas. Então, tudo faz parte de um cenário diversificado de produção de documentário dos últimos 15 ou 20 anos.

 

Na sua pesquisa, você destaca a grande concentração de produções sobre a temática LGBT em uma mesma produtora, a Avante. E situa as contribuições de um reconhecido grupo ativista de Porto Alegre, o Somos, na construção dos roteiros. Na sua opinião, essa colaboração é capaz de expandir os modos de compreensão dos personagens para além do “senso comum” midiático?

Na verdade, não é que o Somos contribui na produção dos roteiros dos filmes feitos pela Avante Filmes. A Avante e o Somos produziram, juntos, alguns curtas-metragens. Acho muito interessante que a maioria dos filmes gaúchos que tratam das questões de gênero e sexualidade das pessoas LGBT tenham sido realizados pela Avante, que é comprometida com essas questões.

 

Em 2015, o Felipe Matzembacher e o Márcio Roelon lançaram o primeiro longa-metragem de ficção da Avante Filmes, o “Beira Mar. Os guris estão tendo um reconhecimento muito bacana. E o Somos é um grupo de ativismo que já tem um capital simbólico muito forte em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, já são muitos anos de atuação. Até o momento, a atuação do grupo tem sido em áreas diversas, incluindo a comunicação e o audiovisual. Eles contribuem para uma produção de sentidos diversos a respeito dessas pessoas de sexo/gêneros dissidentes.

 

“Eu sou uma bichona que tenta fazer ciência. E durante muito tempo a ciência nos produziu como doentes e anormais. A ciência ainda faz isso. Enquanto a ciência não produzir e disseminar novos conhecimentos, vamos continuar matando travestis na rua”.

 

 

Chamou atenção o caso do filme produzido pelo Grupo RBS, que você define como “higienizado”, onde as personagens “sofrem um apagamento” em sua representação. Como você avalia que a “representação” LGBT se configura na relação com as audiências?

De acordo com o tipo de abordagem das pessoas LGBT, eu dividiria os filmes mapeados em dois grandes grupos. No primeiro estão justamente aqueles filmes que se dispõem a apresentar uma estética e resistência de combate aos estereótipos e discriminações por meio do assimilacionismo. Nisso, eles se aproximam muito das reivindicações do ativismo LGBT brasileiro: casamento homoafetivo, leis de identidade de gênero, criminalização da homofobia e da transfobia, etc. Então, esses filmes exigem reconhecimento, visibilidade e inteligibilidade dentro de uma ordem reinante: sexuada, generificada, heteronormativa e cisnormativa.

 

E há um segundo grupo que está muito mais preocupado em quebrar com essa ordem reinante, são filmes que estão dispostos mais a incomodar do que se acomodar aos níveis de inteligibilidade cultural. São esses filmes que são realmente queer, pois perturbam tanto na forma narrativa quanto no conteúdo e na estética: são poéticos, performativos, reflexivos, estranhos, questionadores, desconstruidores. É claro que, neste ponto, são tanto as personagens quanto o olhar do diretor que possibilita essa estética queer.

 

O filme “Ivo e Suas Meninas”, da RBS, é justamente um filme que tenta higienizar ou castrar a diferença e a subversão de Ivo. Ivo foi uma drag queen (ou, talvez, uma travesti) que administrou uma casa de prostitutas em Uruguaiana nos anos 1940/1950. Então, imagina só: uma bicha, cafetina, drag queen na região da Campanha nos anos 1940? Gente, isso é uma história incrível! Mas isso foi muito sutilizado durante todo o curta-metragem, pois ficou se tentando provar a “gauchidade” da personagem. Então, ficou essa tensão entre a performatividade não normativa (drag queen) e a performatividade normativa (o gaúcho). Eu acho essa tensão ótima, mas durante a análise deu para perceber que foi essa última que prevaleceu. Ivo pode ter sido muito queer, mas o filme não é. Ainda assim, é através dele que podemos entender que a RBS já tem um projeto de memória para seus filmes que está apoiada em fortalecer a identidade tradicional do gaúcho.

 

Por que você escolheu a Teoria Queer?

Os Estudos ou Teoria Queer é uma perspectiva teórica que encontrou terreno fértil nas normas sexuadas e generificadas da cultura ocidental para se dedicar de forma antiassimilacionista, grosseiramente direta e antinormativa às críticas da identidade, à política identitária, às grandes narrativas, aos discursos hegemônicos e conservadores da sexualidade. Ela é mais radical do que algumas outras vertentes da filosofia, da sociologia e da antropologia. Escolhi justamente por isso, porque vejo nela um potencial teórico, prático, epistemológico e político muito grande. Além disso, ela não é apenas um campo de estudo. É também uma vertente de ativismo e inspira (e é inspirada por) movimentos artísticos e cinematográficos, como o cinema queer.

 

Ainda existe, na comunidade científica de Humanidades, uma certa restrição a essa vertente teórica? Você poderia explicar como a Teoria Queer se forma e qual a sua importância para os estudos de gênero?

Não sei se há uma restrição à Teoria Queer nas humanidades, nos últimos tempos tenho notado uma certa popularização desses estudos aqui no Brasil. A vinda de Judith Butler para o Brasil, em 2015, é só mais uma mostra disso. Aqui no Brasil, desde os anos 2000, temos gestado com mais profusão uma vertente de estudos queer. Mas o nascimento da Teoria Queer data do início dos anos 1990, nos Estados Unidos. E ela nasce se apropriando justamente desse termo desqualificador e pejorativo, o queer, e tenta politizá-lo. Em inglês o queer é um uma ofensa, um xingamento: bicha, traveco, esquisito, nojento, estranho. Aí já se nota uma crítica radical às normas de sexo/gênero da nossa cultura que são responsáveis pelas violências e silenciamentos daqueles que não se conformam a essas regras. Ela tem influência das obras de Michel Foucault, dos estudos de Jacque Derrida, dos Estudos Culturais e do Feminismo. Mas nem tudo é feito de influências, pois a Teoria Queer perturba muitas ideias do próprio feminismo de uma sociologia/antropologia canônica.

 

Sobre o prêmio da Compós. Seu trabalho “conversa” muito com outras áreas de Humanidades, como Antropologia, por exemplo, onde os estudos de Gênero tem ganhado cada vez mais destaque nos últimos anos. O que significa essa premiação no âmbito das pesquisas em Comunicação?

O prêmio da Compós é o mais importante das pesquisas em Comunicação. Então, para mim é simbólico que a Compós tenha premiado um trabalho com esse tema, que levanta questões e reflexões tão caras para a nossa sociedade. Me orgulho de receber um prêmio falando das travecas, das sapatonas, das bichas, de homens trans, de pessoas bissexuais e de toda essa gente abjeta. Eu sou uma bichona que tenta fazer ciência. E durante muito tempo a ciência nos produziu como doentes e anormais. A ciência ainda faz isso. Nosso problema é epistemológico e, enquanto a ciência não produzir e disseminar novos conhecimentos, vamos continuar matando travestis na rua.

 

Reportagem: Gabriele Wagner de Souza

Fotografia de capa: Tainan Tomazetti

Infográficos: Nicolle Sartor
Fotografia: Neli Mombelli

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