A Filosofia da Ciência, campo tradicional no pensamento filosófico, tenta entender e problematizar tópicos básicos do pensamento e da própria formação da Ciência. Cada ramo do conhecimento científico tem suas especificidades, e o pensamento filosófico sobre determinada ciência pode ser aprofundado e especializado. Dentre eles, a Filosofia da Biologia é o ramo da Filosofia da Ciência específico para os estudos biológicos. Um dos principais tópicos de discussão dessa área são as teorias da evolução natural e, em um nível mais particular, as teorias da evolução humana.
Em meados do século XIX, as discussões sobre a evolução das espécies na natureza ganharam grande importância. A Origem das Espécies, famosa obra de Charles Darwin lançada em 1859, revolucionou as perspectivas biológicas, intensificando as discussões sobre o tema da evolução e da seleção natural. Ao mesmo tempo, o tema colocou novas perguntas e deu novas cores a determinados aspectos fundamentais da Biologia.
Com graduação em Física, especialização, mestrado e doutorado em Filosofia, o professor da Universidade de Brasília Paulo Cesar Abrantes desenvolveu sua pesquisa nas áreas de Filosofia da Ciência, História da Ciência e Filosofia da Mente. Atualmente, sua pesquisa concentra-se em Filosofia da Biologia. Conversamos com o professor Abrantes sobre suas propostas teóricas, e o resultado da entrevista você confere agora.
Qual é o foco da Filosofia da Biologia?
A Filosofia da Ciência normalmente é dividida entre uma filosofia geral da ciência e filosofias de ciências específicas. A Filosofia da Biologia se enquadra dentro dessas filosofias de ciências especiais. Porque cada ciência coloca problemas filosóficos que são particulares a ela, para além dos problemas que seriam, supostamente, comuns a todas as ciências, que são objeto da Filosofia geral da Ciência.
No caso específico da Biologia, eu trabalho, sobretudo, com questões de fundamentos de biologia evolutiva, como o conceito de espécie, construção de nichos, o status da própria teoria da evolução, relação entre evolução e desenvolvimento, perspectivas adaptacionistas e construtivistas, a própria noção de “adaptação”, a noção de aptidão biológica… São conceitos que colocam problemas tanto para o filósofo, como para o biólogo. Esses são problemas muito diferentes dos problemas que são colocados em Filosofia da Física, ou das Ciências Sociais, ou da Matemática.
Como é feita essa ponte entre a Filosofia e a Ciência?
A Teoria do Conhecimento coloca questões muito gerais, do tipo “O que é conhecimento?”, “O que é verdade?”, “O que é justificação?”. A Filosofia da Ciência trata de problemas mais específicos. Você tem uma teoria científica e pergunta “o que é justificação de uma teoria científica?”, “tem sentido se falar em verdade no domínio da ciência?”. A Filosofia da Biologia desce para questões ainda mais específicas, que têm a ver diretamente com a Biologia, que teria características diferentes de outras ciências.
A sua primeira formação foi em Física. Como foi essa transição da Física para a Filosofia da Biologia?
A Física foi uma graduação que eu fiz nos anos 1970. Eu fui professor de Física durante muitos anos no ensino médio, e, desde essa época, eu achei que a Filosofia da Ciência e a História da Ciência poderiam contribuir para um ensino de ciências. Então eu comecei a trabalhar primeiro com História da Ciência, depois com Filosofia da Ciência e me distanciei um pouco da Física. Comecei a trabalhar como filósofo e, dentro da Filosofia, trabalhei com diferentes áreas, até com Filosofia da Mente e com Teoria do Conhecimento.
Os problemas nessas áreas, a meu ver, para serem adequadamente tratados, precisam de alguma referência à Biologia. Por exemplo, a noção de função, que é muito utilizada em Filosofia da Mente, precisa ser informada pela noção de função em Biologia. Então eu comecei a me interessar por Biologia, depois por Biologia Evolutiva, a partir dos problemas que eu enfrentava como filósofo em áreas como a Filosofia da Mente e a Teoria do Conhecimento. Na verdade, é uma longa trajetória.
Esses questionamentos que foram sendo formulados lhe direcionaram ao estudo da evolução humana?
Para a evolução biológica, de um modo geral, e, depois, para a evolução humana. Outro tema que me interessou desde o início é em que medida a gente pode aplicar a ideia de evolução em domínios que não são domínios biológicos. Tem sentido em se falar em evolução do conhecimento? Há toda uma área da Teoria do Conhecimento que se chama Epistemologia Evolucionista, que tenta adaptar modelos da evolução biológica para tratar da evolução do conhecimento. Eu acho que a evolução cultural é, de certa forma, uma ampliação dessa ideia de que os modelos biológicos têm uma aplicação maior do que simplesmente a organismos e seres vivos.
Como funcionariam, dentro dessa teoria, as conexões entre a evolução biológica, a evolução cultural e a evolução social?
Essa foi outra área em que trabalhei bastante: a questão da analogia e do raciocínio analógico. Você pode buscar analogias entre processos biológicos e processos em outras áreas. Mas para explorar essas analogias, você tem que pegar, por exemplo, mecanismos de seleção natural e formulá-los de uma maneira abstrata, de modo que possam ser aplicados a processos que não são biológicos.
Os três elementos no processo do mecanismo de seleção natural são: variação, herança e aptidão diferencial. Você pode usar essas noções e aplicar, por exemplo, à cultura: variação cultural; herança cultural; aptidão de grupos culturais ou de variantes culturais. A própria noção de reprodução poderia fornecer algum tipo de instrumento novo para se pensar temas que são tradicionais.
Há um autor já falecido, chamado David Hull, que propôs uma teoria evolucionista da própria ciência. Ele tentou aplicar conceitos emprestados da teoria da evolução para pensar a maneira como os cientistas trabalham, como produzem conhecimento, como funciona a comunidade científica. Foi uma tentativa de extensão. Em que medida são simplesmente analógicos ou não é uma grande discussão.
Nós temos conhecimento de várias teorias sociais que tentam explicar a formação da cultura humana. A tentativa de aproximação da Filosofia e da Biologia conversa de alguma forma com essas teorias sociais?
Acho que tem que haver essas conexões, mas é muito difícil estabelecê-las. Eu defendo que a interação entre essas várias abordagens vai depender muito do tipo de problema que está sendo tratado. Acho que a colaboração entre especialistas pressupõe que eles entendam que um determinado problema requer um tratamento e conhecimentos de especialistas mais diversos. E há muita gente que, ao mesmo tempo em que adota instrumentos da Biologia, está atenta à maneira como outras teorias em Ciências Sociais lidam com questões que lhe são próprias, com outros instrumentos. Tem que haver uma abertura de espírito.
“O tempo dirá se essas abordagens biológicas no domínio da cultura vão oferecer alguma coisa para além daquilo que as chamadas “ciências da cultura”, as Ciências Sociais, já vêm trabalhando desde o século XIX”.
A Filosofia da Biologia, em específico, vai ver o surgimento e o desenvolvimento da cultura como algo natural também?
Nas teorias de coevolução gene-cultura, com as quais eu trabalhava, você não pode desvincular – no caso humano, pelo menos -, evolução cultural e evolução biológica. Os teóricos dessa orientação acham que a cultura passou a funcionar como um sistema de herança, em interação com um sistema genético de herança, e isso tem implicações muito importantes para a evolução humana.
Mas quando você diz que a cultura começa a funcionar como um sistema de herança, você tem que saber o que é um sistema de herança. São problemas de fundamentos em Filosofia da Biologia. Há vários temas de fundamentos de biologia evolutiva sendo discutidos entre aqueles que se dedicam à evolução humana particularmente.
Quais as perspectivas quanto ao futuro da sua pesquisa?
Estou muito interessado agora na própria ideia de evolução cultural. Por exemplo, quais são as características de um sistema de herança, é uma das questões que eu estou trabalhando nesse momento. Quais são as similaridades entre o sistema cultural de herança e o sistema genético de herança?
Só para dar um exemplo mais concreto: o gene funciona como um replicador muito eficiente. Genes produzem genes. Tem toda uma série de mecanismos celulares que fazem com que as replicações das moléculas de DNA ocorram sem muito erro. Tem uma fidelidade muito grande em um sistema genético de herança, os genes têm uma longevidade muito grande. Exatamente pelo fato de a replicação genética ser tão fiel, você pode retraçar linhagens de genes por várias gerações.
Existe alguma coisa similar no domínio da cultura? Será que quando eu estou falando para você agora sobre esse conceito de herança, ao apresentar para os seus leitores essas coisas que eu estou apresentando aqui, você vai replicar essas ideias de uma maneira fidedigna ou vai modificá-las introduzindo modificações, erros etc.? Provavelmente, sim. Provavelmente, o que está acontecendo aqui, esta transmissão cultural, não tem as mesmas características da condição genética, nem em termos de comunidade, nem de longevidade, os canais são os mais diversos.
Os genes, por exemplo, são transmitidos de pais para filhos. Nós não temos, eu e você, nenhuma relação de parentesco, e, no entanto, potencialmente, eu estou transmitindo para você – e você para mim – elementos de cultura, variantes culturais.
“Evolução da cultura não deve ser confundida com coevolução gene-cultura, que não deve ser confundida com evolução cultural. Acho que cabe ao filósofo fazer essas distinções.”
Será que essas variantes funcionam da mesma maneira que genes? Elas funcionam também como replicadores? Será que existem linhagens de variantes como linhagens de genes? A transmissão delas se dá de maneira semelhante à transmissão de genes? A gente sabe que não, porque aqui, por exemplo, estão passando variantes culturais entre eu e você que não têm nada a ver com os canais pelos quais os genes se transmitem.
Essas questões estão me interessando no momento: se a gente pode, com pertinência (porque pode ser totalmente não pertinente), usar a expressão “evolução cultural” em sentido análogo ao que se usa a expressão “evolução biológica”, e o que é que se ganha com isso. Pode não se ganhar nada com isso. Pode ser, simplesmente, uma transferência não fértil de conceitos de uma área do conhecimento para outra área do conhecimento. Acho que o tempo dirá se essas abordagens biológicas no domínio da cultura vão oferecer alguma coisa para além daquilo que as chamadas “ciências da cultura”, as Ciências Sociais, já vêm trabalhando desde o século XIX. Nada garante…
Isso coloca toda a discussão da cultura em uma nova perspectiva, considerando que a evolução biológica se dá em uma escala temporal muito maior que a que estamos acostumados nas Ciências Sociais. Como seria possível pensar a cultura a partir disso?
O que você colocou é perfeitamente correto. A dinâmica cultural é muito mais rápida que a dinâmica biológica. Então, se nós podemos falar de evolução cultural, isso se dá em um ritmo completamente diferente do ritmo biológico. Isso não inviabiliza que se possa falar de evolução cultural. O fato de você ter ritmos diferentes não quer dizer nada. Não é um obstáculo. Nós sabemos, por exemplo, que bactérias evoluem muito mais rapidamente que nós. A evolução de uma simples bactéria pode se dar em horas. O fato de se dar rapidamente a evolução de uma população de bactérias não impede que você use o termo evolução para essa população de bactérias.
Mas existem três tópicos muito diferentes. O primeiro é a evolução cultural e a rapidez que se dá essa evolução. Outro tópico completamente diferente é se essa evolução cultural vai ter algum tipo de impacto na evolução biológica e vice-versa, apesar de os seus ritmos e mecanismos de base serem completamente diferentes. Muita gente defende que, apesar dessas diferenças, essas duas evoluções interagiram e, especificamente no caso da evolução humana, tiveram consequências muito importantes. Se você observar em um intervalo de tempo suficientemente longo, a dinâmica cultural impactou a dinâmica biológica.
Um terceiro tópico, que não pode ser confundido com esses dois, é se a gente pode falar da origem da cultura também usando conceitos importados da biologia. Para isso, você tem que definir cultura e abordar questões do tipo: há culturas em outras espécies animais? Ou a cultura é um fenômeno especificamente humano? Se é um fenômeno especificamente humano, como surgiu? Por que nós, humanos, somos capazes de produzir cultura, em algum sentido do termo (existem mais de 150 definições diferentes de cultura), como se deu a passagem de animais que não tinham cultura para animais que têm cultura? Em algum sentido da palavra “cultura”, chimpanzés têm cultura, mas, aparentemente, por todos os indícios que a gente tem hoje, não há evidências de que esses animais são capazes de acumular cultura. Então, o que aconteceu, na linhagem humana, que possibilitou com que a cultura se acumulasse?
Isso vale para qualquer área da cultura. Como se acumula cultura? Como uma geração lega à outra geração alguma coisa muito diferente do que ela herdou da geração anterior? Aparentemente, nós, humanos, somos os únicos animais capazes de acumular cultura. A Biologia tem algo a dizer sobre isso? A Psicologia tem algo a dizer sobre isso? Esse é o tópico “origens da cultura”.
Evolução da cultura não deve ser confundida com coevolução gene-cultura, que não deve ser confundida com evolução cultural, que foi por onde nós começamos a nossa entrevista. Então, eu acho que cabe ao filósofo fazer essas distinções. O próprio conceito de cultura é um problema; como definir cultura, caracterizar essas distinções de processos, e o que está envolvido em cada um desses processos.
Eu acho que uma das tarefas da Filosofia é essa: esclarecer conceitos que, às vezes, estão um pouco embaralhados. A própria noção de evolução é um problema. Muitas pessoas entendem as mais diversas coisas quando elas usam a palavra evolução. Então, é preciso ter muito cuidado. Não entendam evolução no sentido que as pessoas usam, no meio da rua. Em que sentido a palavra “evolução” está sendo usada? Eu acho que isso é um trabalho filosófico, o que não quer dizer que os cientistas também não estejam envolvidos com problemas conceituais.
Reportagem: Matheus Santi
Fotografias: Rafael Happke