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Os desafios da polícia brasileira

Marcos Rolim fala da necessidade de reformas no modelo de segurança pública



Em cinco anos, o número de vítimas de homicídios no Brasil aumentou cerca de 20%. A população carcerária quase dobrou. O efetivo total de policias militares cresceu apenas 5%. Os números refletem o medo da população de sair às ruas, e o agravamento da crise na segurança pública brasileira.

 

A Arco conversou sobre esse tema com o jornalista e professor Marcos Rolim, doutor em Sociologia e especialista em Segurança Pública. Rolim, que é professor da Cátedra de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista, em Porto Alegre, e diretor de Comunicação Social do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, esteve na UFSM para falar sobre “Educação, Intercultura e Direitos Humanos”, em evento promovido pelo Centro de Educação, o Programa de Pós-Graduação em Educação e o Grupo de Pesquisa Kitanda: Educação e Intercultura.

O que significa o título do seu livro A Síndrome da Rainha Vermelha?

Essa é uma alusão que aparece em outros momentos da produção científica na área das ciências sociais, que eu tomo a partir de uma passagem do livro da  Lewis Carroll, Alice No País das Maravilhas. Tem um momento da história onde Alice corre muito com a Rainha Vermelha. De repente elas param e Alice percebe que elas estavam no mesmo lugar. Então ela pondera: “que estranho, rainha, nós corremos tanto e não saímos do lugar”. A rainha então responde: “mas que estranho, aqui para ficar no mesmo lugar é preciso correr muito”. E eu acho que essa passagem é muito interessante, porque ela simboliza a situação vivida pelos policiais brasileiros.

 

Os nossos policiais se sentem um pouco assim, eles passam o tempo inteiro correndo pra ficar no mesmo lugar, como se nós não tivéssemos condições de avançar. Como se não tivéssemos condições de reduzir a criminalidade. A polícia no Brasil está sempre prendendo e mandando pessoas para as prisões, mas os resultados não aparecem. Então eu trato isso como se fosse uma síndrome, a Síndrome da Rainha Vermelha, que é essa ideia de repensar um modelo de polícia e repensar as políticas de segurança para que a gente possa chegar a algum lugar.

 

O que é preciso considerar quando falamos sobre repensar o modelo de polícia que temos hoje?

 

Primeiro, ajuda muito quando a gente compara a experiência de outros países com a nossa. Eu tive a chance de fazer isso em um programa de estudo de um ano na Inglaterra. Meu tema na Universidade de Oxford, durante o ano de 2003 e 2004, foi basicamente as polícias britânicas. Todas as polícias modernas possuem em sua equipe um ciclo completo de policiamento. Qualquer polícia no mundo possui destacamento uniformizado que faz patrulhamento nas ruas, um setor de retaguarda de detetives e investigadores que trabalha junto com esse setor da mesma polícia. Então a polícia faz a prevenção, o patrulhamento ostensivo, faz prisões, investigações, ou seja, todo o ciclo.

 

“O modelo de polícia que temos no Brasil é único no mundo. E é um modelo disfuncional, porque coloca uma polícia contra a outra”

Isso me ajudou a perceber que o modelo de polícia de temos no Brasil é único no mundo. No Brasil, nós temos encabeçadas duas polícias. Cada uma faz uma parte do ciclo de policiamento. Nós temos uma polícia de patrulhamento ostensivo, a Polícia Militar, e uma polícia de investigação criminal, a Polícia Civil. Só no Brasil existe isso. É um modelo disfuncional, porque as polícias precisam de um ciclo completo. Comos elas não têm, começam a invadir as competências umas das outras. O que cria dificuldade de atuação conjunta e disputa entre eles. O modelo coloca uma polícia contra a outra.

 

Nós também temos uma divisão dentro de cada uma dessas metades. A polícia não possui carreira única. Em todas as polícias modernas do mundo há uma única porta de entrada. Todos entram por essa porta, inicialmente nas funções mais simples, por exemplo, no patrulhamento, e depois chegam nas posições mais complexas de comando. Isso significa que todo chefe de polícia foi, um dia, soldado.

 

No Brasil, criamos uma polícia que está no comando, e uma polícia que deve obedecer. Os oficiais podem entrar direto como oficiais, e os delegados podem fazer concurso para  delegados. Os de baixo não podem ascender, a menos que façam concurso. Essa divisão interna é muito ruim nas corporações, porque os de cima não confiam nos debaixo, e os debaixo não confiam nos de cima.

 

O policial olha para frente e não vê carreira, não vê possibilidade de crescimento profissional e por isso ele sai da polícia. Assim nós nunca preenchemos as vagas disponíveis. E não adianta contratar, porque tu contrata e daqui a pouco está faltando policiais de novo. Diante disso tudo, é preciso pensar na reformulação da polícia. É preciso que esse assunto entre na pauta política. Mas a maior dificuldade é que o nosso modelo foi institucionalizado, então esse é o modelo da constituição. Para mudar é preciso reformar a constituição.

 

Podemos perceber o início de um movimento social que pede a desmilitarização da Polícia Militar. O que isso significa?

Eu acho que esse é um avanço importante. As pessoas estão percebendo que o perfil da polícia deve ser muito próximo da cidadania. É preciso uma polícia de proximidade, não autoritária. Nós podemos fazer isso com a Polícia Militar? Poderíamos. Mas a forma militar de policiamento dificulta essa aproximação. Temos uma hierarquia muito rigorosa, critérios de seleção e dificuldade de firmar um modelo de polícia que não seja vocacionado ao combate. A doutrina militar é uma doutrina de combate.

A ideia de polícia moderna é interna, ela investe na cidadania e deseja ser respeitada pelos cidadãos, e não temida. É uma ilusão, entretanto, pensar que simplesmente mudando a Polícia Militar nós vamos ter uma Polícia Civil resolvida. A Polícia Civil no Brasil é uma polícia com muitas limitações também. Então, o tema é mais amplo. É necessário mudar o modelo de polícia e as políticas de segurança.

 

 

No caso do Rio Grande do Sul, existe uma solução breve para a crise na segurança pública?

Eu diria que do ponto de vista de um desafio mais estrutural, de reforma de modelo, as soluções não são breves. Elas exigiriam uma ampla reforma nacional, de discussão, de debate. O que nós deveríamos ter no estado é um projeto de mudança na gestão das polícias, que encaminhasse o sentido da reforma.

  “A forma militar de policiamento tem uma hierarquia muito rigorosa. A doutrina militar é uma doutrina de combate”

Um exemplo concreto é que ainda hoje temos os plantões de polícia, que são organizados em 24 horas de trabalho por 3 dias de folga. Na semana, são dois dias trabalhados. Só que essa ideia de 24 horas não funciona, porque ninguém trabalha todo esse tempo. Ou tu trabalha até certo ponto ou tu trabalha muito mal, porque está cansado. Essa é uma prática que surgiu muito atrás, quando os salários eram ainda mais baixos do que são hoje. Foi uma maneira de legalizar os “bicos”. As pessoas tinham três dias da semana para trabalhar fora. Qual é a instituição no mundo que trabalha 24 horas e folga 3 dias? Isso não existe. Não há como uma instituição com esse tipo de dinâmica funcionar e ainda produzir resultados.

 

Como resolver a superlotação dos presídios brasileiros?

Não acredito que a solução para a superlotação dos presídios seja a privatização, mas podemos pensar na parceria público-privada. Por um lado, a experiência da administração pública de presídios é uma tragédia. O Estado não é capaz de, sozinho, gerir o sistema carcerário. Deveríamos pensar em alternativas onde os agentes sejam remunerados por resultados. Mas, isso não significa que eles ganhem por número de presos, porque aí você cria um mercado do encarceramento.

 

Além disso, deveríamos pensar na reabilitação de presos. Repensar nossos critérios de julgamento. Deveríamos reservar as prisões para pessoas perigosas, que apresentam perigo à sociedade, como homicidas e estupradores. Àqueles que cometem crimes sem violência deveriam receber penas socialmente úteis e com chances de formação profissional e reintegração social, com acesso ao mercado de trabalho.

 

Para finalizar, somos uma sociedade preparada para o armamento?

Nenhuma sociedade está pronta para se armar. Eu concordo que policiais devam portar arma, talvez pessoas que morem em áreas distantes, onde o acesso policial é difícil e demorado. Talvez. Mas legalizar o porte de arma é alimentar uma indústria armamentista que gera muito dinheiro, e que banca a campanha daqueles que apoiam o porte de armas no Senado Federal.  

Reportagem: Andressa Foggiato
Fotografia: Rafael Happke

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