Uma sala de professores atravancada de caixas. Um mapa envelhecido da França colado na parede à direita de quem entra. Duas escrivaninhas, uma em frente à outra, uma mesa redonda entre elas e várias cadeiras ao seu redor. Uma estante com livros e caixas azuis de plástico que chamam a atenção em um espaço onde cada centímetro é disputado. A inscrição na porta de entrada identifica o lugar: Fundo Documental Neusa Carson (FDNC).
São mais de 500 documentos compondo o arquivo da pesquisadora que dá nome ao Fundo, pertencente ao Laboratório Corpus. Guardados em caixas azuis de plástico, estão provisoriamente empilhados na estante da sala da coordenadora executiva do projeto, Simone de Oliveira, pós-doutoranda em Letras da UFSM. A idealização de um Fundo Documental para guardar os arquivos da pesquisadora Neusa Carson partiu da professora do curso de Letras da UFSM e coordenadora geral do projeto, Amanda Eloina Scherer.
O acervo, doado por Hugo Carson – filho da professora –, atualmente está em fase de organização. A intenção, de acordo com Simone de Oliveira, é digitalizá-lo e disponibilizá-lo o mais breve possível. Dentre os materiais doados, estão artigos, trabalhos, certificados de participação em eventos e correspondências trocadas com pesquisadores e universidades nacionais e estrangeiras. No entanto, não existem registros em fotografias dos macuxis ou da pesquisadora em seu trabalho de campo – à época, os indígenas temiam que a máquina fotográfica pudesse “tirar a alma” dos retratados. Entre as raridades do acervo, estão os diários de campo da pesquisa de doutorado de Neusa, Phonology and Morphosyntax of Macuxi (Caribe).
Natural de Santa Maria, Neusa foi professora do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria nas décadas de 60, 70 e 80. Em sua tese de doutorado, realizou um estudo de descrição do Macuxi, língua indígena do então Território Federal de Roraima. Para tanto, embrenhou-se na Roraima dos anos 80 e passou dias convivendo com as tribos indígenas da região. Seu objetivo era reunir dados sobre uma língua pouquíssimo estudada, visando à preservação da cultura e da história de seus falantes. Em seu diário, Neusa fez anotações atentas sobre a língua – fonologia, entonação, derivação – e sobre a cultura Macuxi.
Através dos apontamentos feitos pela pesquisadora, é possível visualizar diversos aspectos das tribos por onde passou. Além da descrição da língua Macuxi, ela escreveu sobre suas moradias, sua alimentação, sua rotina de trabalho e sobre a divisão de tarefas entre homens e mulheres. Explicou também alguns de seus rituais, lendas, celebrações e histórias. Seus ouvidos e olhos vigilantes perceberam ainda algo não tão explícito quanto os sons e o vocabulário de uma língua: o processo de desagregação cultural que os indígenas da região estavam sofrendo após o contato com os homens brancos.
Mais que um registro pessoal para suas pesquisas científicas, os diários de Neusa guardam as histórias de muitas pessoas que cruzaram o seu caminho. E, nas entrelinhas, também ficaram rastros da sua própria trajetória.
TRECHOS DO DIÁRIO DE CAMPO – NEUSA CARSON (BRASÍLIA, 15 A 18/04/84)
ALIMENTAÇÃO, MORADIA E CULTURA
Suas malocas consistem de casas de quatro cantos, modernamente. Tradicionalmente, elas eram feitas circulares, com uma técnica especial. O material usado mais comumente é adobe (taipa) para as paredes, com cobertura de palha (buriti). Os macuxis vivem em vilas circulares em grupos de até 300 pessoas (aproximadamente 50 famílias).
Eles ainda caçam e pescam sendo esta a sua ocupação primária e uma fonte de nutrição para todos. As mulheres, tradicionalmente ocupam-se das lavouras ou roças de mandioca, feijão, milho e outras plantas deste tipo. O pão é feito por elas, de mandioca, depois de bem ralada. A mandioca, depois de fermentada de modo especial é também a base de dois tipos de bebida: “cassiri” e “pajuarú”.
O grupo vive entre 3 e 4 graus norte e 60 a 61 graus oeste. Seu território compõe-se principalmente de savana, o que quer dizer vegetação baixa e esparsa e palmeiras de buriti nas margens dos riachos. Os macuxi localizam-se na bacia do Rio Branco, especialmente seus afluentes Tacutu e Uraricuera. Ainda encontram-se caça, pesca e frutos em abundância nesta área. A área compreende 213.000 km² e aproximadamente 35.000 índios vivem aí. A área cultural é a Norte-Amazônica.
Antes de sair o sol, os familiares se reúnem para uma refeição. Esta consistia, na ocasião, de uma sopa e pão de beju feito de farinha de mandioca. Então a mulher segue para sua roça de mandioca; é um dia de muito sol, de verão. Lá, ela cuidadosamente corta os troncos superiores dos vários pés de mandioca, depois os arranca do solo ressequido, o que faz sua tarefa mais difícil.
Suas canções e rituais tradicionais estão desaparecendo gradualmente. Suas histórias geralmente apresentam hábitos humanos personificados através de animais.
MITOS E RITUAIS
Para os rapazes se tornarem homens fortes e bons caçadores e pescadores eles devem passar por certos rituais que são dirigidos por um parente mais velho. Para ser bom pescador, um rapaz recebe pequenos cortes nas pernas e braços com espinho de arraia ou osso de aguti. Pode ser esfregada pimenta vermelha, ardida, nos cortes. E também um amendoin especial, sagrado é assado e esmagado em pó com uma pequena batatinha (alucinogênica) de uma planta, esmagada com outras raízes; todas são misturadas e passadas nas pernas do jovem caçador ao mesmo tempo que o pajé faz algumas preces, para que o homem tenha pernas ágeis e rápidas.
Após a primeira menarca (ou período menstrual) – eesem sá – quando a jovem é colocada em uma rede bem alta na casa, ela é ensinada sobre os costumes do seu povo. Ela aprende sobre o casamento (wémirima ou aniáyá), as relações sexuais (èskú), o nascimento (eesémpó). Ela não pode andar no sol quente logo após sua 1ª menstruação. Suas mãos e braços são colocados em um ninho de formigas pequenas, ardedeiras, para que as bebidas que ela prepara para seu marido sejam doces.
Em outros tempos costuma haver urnas funerárias onde tanto o homem quanto a mulher eram enterrados em uma posição fetal. Os objetos pessoais do morto, tais como colares, cestas, arco e flechas eram enterrados com o morto. A casa era destruída e reconstituída em uma nova posição ou em um estilo diferente. O nome do falecido não era dado a outra pessoa por vários anos […] Hoje em dia o índio é enterrado em sua própria rede e o seu cemitério não é muito longe de sua maloca.
CANÇÕES, DANÇAS E TRADIÇÕES
Os indígenas costumavam ter celebrações festivais na época da troca de artefatos entre os grupos, com danças, cantos e comidas típicas. Os yanomani, grupo ainda dedicado à caça com arco e flecha e ainda dados a encontros menos amistosos com grupos, trocavam seus excelentes arcos e flechas pelas excelentes redes de algodão (as deles são de buriti) dos macuxi; ambos os grupos sempre prezaram muito as melhores canoas da região que é feitio dos maiongongues.
Enquanto trabalha, a vovó canta e conta histórias. As canções, cantadas pelas mulheres no seu trabalho falam sobre o pão que elas fazem para esperar a caça que o irmão ou o namorado irá trazer; as canções religiosas eram traduções dos cantos de igrejas cristãs, ensinadas pelos missionários; e danças antigas, como Tukui (“beija-flor”), cantada e dançada em celebrações inter-tribais.
Tukui é a palavra para beija-flor em macuxi. É uma dança para representar a amizade entre malocas e até tribos. A dança é executada quando os visitantes chegam, o que tradicionalmente ocorria mais ou menos na metade das estações (seca ou chuvosa). A tribo hospedeira serve comida e bebida especialmente preparadas para a ocasião e são trocados objetos de feitio das tribos, ao estilo de uma feira.
No passado os homens tocavam flauta de osso ou bambu (taquara) e usavam máscaras representando um macaco, um jacaré ou um peixe. Suas roupas, segundo vovó D. constava de um cocar e saia de folhas de buriti. Seus cabelos, especialmente os das crianças, era decorado com penas do peito do pato, preso com resina das árvores. Seus tornozelos eram decorados com castanhas para fazer o som de guizo. Em suas mãos havia um bastão para marcar o compasso.
CONTATO COM OS BRANCOS
A cultura indígena tem sofrido mudanças através do contato com os colonizadores brancos o que provavelmente iniciou logo após a chegada de Cristóvão Colombo ao Mar Caribe. A propósito, Kariwa é a palavra para “homem branco” em vários dialetos caribes e também para “magro”, inclusive em macuxi.
Os brancos que aqui vieram primeiro (fim do século XVIII) trouxeram gado, que necessita enormes porções do território para sobreviver. Em tempos mais recentes, a construção de estradas e no momento a mineração de ouro, diamantes, estanho e bauxita em diferentes pontos do território atraem mais e mais pessoas alheias à cultura indígena do Território.
Alguns dos grupos indígenas tentam ajustar-se à nova situação. Alguns tornam-se criadores de gado. Alguns tentam estabelecer suas próprias minas, e alguns vendem canoas, farinha de mandioca e grãos para os colonizadores/mineradores/fazendeiros. Alguns indígenas simplesmente trabalham para os brancos nas fazendas e minas. Frequentemente eles são mal pagos, ou recebem roupas usadas e utensílios em troca, pelo seu trabalho. Embora não estejam bem habituados com a economia ou o sistema de pagamento do homem branco, isto não parece importante. De fato, se eles recebem dinheiro, há a tendência em usá-lo em quinquilharias, como óculos de sombra, pasta-executivo, rádios, relógios, bebidas e doces. As mulheres jovens muitas vezes se tornam prostitutas para os mineiros, e todo o grupo se torna portador de doenças previamente desconhecidas.
DESAGREGAÇÃO CULTURAL
Hoje em dia o macuxi se veste como o branco, cozinha seu alimento, usando seus próprios utensílios, ou panelas e outros utensílios domésticos de alumínio. Eles principalmente fervem sua comida, e já usam o sal; iniciam o fogo riscando um fósforo, usam sabão para lavar a si e aos seus utensílios. Têm lâmpadas à querosene e alguns tem radinhos de pilha, toca-discos portáteis, filtros para água, fogão à gás e outros utensílios deste tipo.
É assim que os costumes antigos, e com eles a língua, são pouco a pouco deixados de lado. Portanto, a tendência, especialmente para os homens que deixam a tribo para procurar emprego é abandonar sua cultura. Desconhecendo os valores do homem branco, eles são deixados de mãos vazias. O resultado final é a desagregação cultural.
As mulheres tendem a permanecer na vila e ensinar sua língua aos filhos. Elas permanecem também monolíngues por mais tempo que os homens. Mas assim que as crianças iniciam sua escolarização, são forçados pelo sistema vigente a aprender português desde o 1º minuto.
*Optou-se por não corrigir pequenos deslizes de ortografia ou concordância para preservar a grafia original da pesquisadora em seu diário de campo
QUEM FOI NEUSA CARSON?
Neusa Coden Martins nasceu em Santa Maria (RS), no dia 27 de julho de 1944. Aos 21 anos, iniciou sua graduação em Letras – Inglês, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Imaculada Conceição, atual Centro Universitário Franciscano. Em 1968, então com 24 anos e recém-formada, tornou-se professora do curso de Letras da UFSM.
Pouco tempo depois, em 1970, viajou para os Estados Unidos, onde fez sua dissertação de mestrado e conheceu o norte-americano William Carson, com quem se casou, em 1972. Esse também foi o ano em que Neusa, retornando ao Brasil, tornou-se oficialmente professora assistente da UFSM.
Com a intensificação das pesquisas, Neusa passou a se interessar cada vez mais pelos estudos de Linguística e aprofundou as investigações sobre o que viria a ser sua tese de doutorado – um estudo de descrição do Macuxi, língua indígena do estado de Roraima.
Neusa Carson faleceu de câncer, no dia 16 de dezembro de 1987, aos 43 anos de idade.
Repórter: Camila Marchesan Cargnelutti