Troca de letras, dificuldade de reconhecer palavras, esforço na leitura em voz alta e confusão na pronúncia. Essas são algumas das dificuldades relatadas por Luciano Schuch, atual reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que tem dislexia, um transtorno de aprendizagem caracterizado pelo déficit na organização do código linguístico e na decodificação fonológica (processo de converter os grafemas em fonemas para gerar a pronúncia da palavra lida).
Os primeiros indícios da dislexia foram notados desde cedo pelos professores, quando a turma estava conseguindo se alfabetizar, exceto ele. “Minha maior dificuldade na infância foi aprender a ler e a escrever. Nunca consegui ler um texto em voz alta sem travar na leitura”, conta o professor. Na época, o distúrbio era pouco estudado e, apesar de nunca ter reprovado na escola, Schuch pegou recuperação todos os anos na disciplina de língua portuguesa. No primeiro vestibular que fez, esteve entre os candidatos com as maiores notas das provas objetivas, mas reprovou por zerar a redação: “Só consegui ser estudante da UFSM após decorar as diferentes formas de fazer a redação e adaptá-las ao tema, modificando algumas palavras”, relata o reitor.
Dislexia: subtipos, incidência e tratamentos
A dislexia implica no aprendizado e na realização das tarefas de leitura e escrita. Ela é compreendida como um transtorno do neurodesenvolvimento que se enquadra no subgrupo de transtornos específicos de aprendizagem. O distúrbio é caracterizado por três subtipos: fonológico, visual e misto.
Conforme a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), o distúrbio atinge entre 5% e 17% da população mundial. Apesar da alta incidência, a dislexia é pouco compreendida pela sociedade. Foi somente a partir de 2021 que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) passou a oferecer recursos de acessibilidade para estudantes com dislexia, como mais tempo de prova, auxílio ledor e auxílio transcritor.
O dia 10 de outubro marca o Dia Mundial de Conscientização da Dislexia, que visa esclarecer o assunto e alertar para o diagnóstico precoce. Conforme a professora do Departamento de Fonoaudiologia, Simone Nicolini de Simoni, o conhecimento por parte da população é necessário para a identificação precoce do distúrbio, pois a dislexia não é uma doença, logo não tem “cura”, por isso deve-se ter um apoio pautado na saúde e na educação. “O tratamento adequado deve estar centrado na escola, nos gestores educacionais, professores, profissionais e no envolvimento e apoio assíduo da família para estimular e otimizar as condições do indivíduo com dislexia”, afirma Simone.
As principais abordagens terapêuticas adotadas pelos profissionais são baseadas nos princípios básicos da aprendizagem, na leitura, no processo de transformação grafema-fonema (encontrar a pronúncia de um vocábulo dado na sua forma escrita) e no reconhecimento global da palavra, organizando estímulos verbais, visuais e auditivos. A professora Simone explica que, para o tratamento, podem ser utilizados recursos como: integrações sensoriais; exposições lúdicas e esquemáticas por meio de recursos audiovisuais; mapas mentais; organização lógica; atividades de memória; organogramas, gráficos, e conteúdo organizado visualmente, além de outras estratégias para mobilizar os processos cognitivos.
"No quarto ano, eu ainda não estava plenamente alfabetizado, e, para os mais críticos, até hoje não estou"
Para o professor Luciano Schuch, o suporte familiar e profissional teve papel fundamental, pois foi graças aos pais e à fonoaudióloga que ele conseguiu se alfabetizar: “No quarto ano, eu ainda não estava plenamente alfabetizado e, para os mais críticos, até hoje não estou.” Além da facilidade com números e raciocínio lógico, o apoio recebido também permitiu que devolvesse habilidades de comunicação e memorização, bem como outras estratégias para driblar as dificuldades com a leitura e a escrita. “Mesmo hoje, como reitor, não consigo fazer um discurso escrito para ler na hora do pronunciamento. Apenas organizo o raciocínio para que seja sempre espontâneo, falado”, complementa.
Entre outras situações, ele percebe a dificuldade de identificar onde colocar entonação na palavra. Schuch conta que não lê sílaba por sílaba; ele começa a leitura e adivinha os vocábulos ou até mesmo frases inteiras, e por isso comete erros com frequência. Em outros momentos, tende a “engolir” palavras: “Só descubro que “engoli” quando a leitura é em voz alta e alguém sinaliza, ou quando releio algo que escrevi e percebo a falta de sílabas ou de palavras inteiras, especialmente elementos de ligação.”
Apesar dos deslizes na leitura, o professor universitário não abandona o hábito de ler histórias de dormir para o filho de nove anos, e comenta: “Com frequência, ele me corrige pelas trocas de palavras que mudam o significado da frase ou a tornam engraçadas e sem sentido. Damos risadas juntos.”
Nos últimos anos, a difusão do conceito de neurodiversidade, que define as variações naturais do cérebro humano, tem contribuído para desestigmatizar a percepção negativa que existe em relação aos transtornos neurodivergentes. Anualmente, no mês de outubro, organizações do mundo inteiro se mobilizam em torno de ações de sensibilização sobre a dislexia.
Professora Simone salienta a necessidade de ações inclusivas e da busca de recursos eficazes por meio da pesquisa científica: “Com os recursos necessários (essas pessoas) conseguem se destacar nas atividades que realizam e conquistar carreiras de sucesso, pautadas em talento, inteligência e criatividade”. Além disso, a docente enfatiza a necessidade de entender que todo o aluno tem suas diversidades, o que não difere do aluno com dislexia.
Entre tantos outros elementos que constroem a subjetividade dos indivíduos disléxicos e fazem parte dos seus cotidianos, o transtorno é apenas um deles. Sobre preconceito e rotulações negativas, o professor Luciano afirma que, esses sim, podem limitar o potencial de qualquer indivíduo. Com o tempo, o atual reitor da UFSM aprendeu que não precisava sentir medo e vergonha, e esse foi o pontapé para o seu êxito: “Pode ser mais difícil e tenho que transpirar mais que muitas pessoas, mas sempre me adapto e sigo em frente. Me “atiro” nos desafios da vida sem medo de ser julgado e tem dado certo”, finaliza Schuch.
Expediente:
Reportagem: Jéssica Medeiros, acadêmica de Jornalismo e estagiária;
Design gráfico: Cristielle Luise, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista;
Fotografia: Pedro Amaral, editor da TV Campus;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Camilly Barros, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária; e Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e voluntária;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas.