Teve um ano em que o ponto de partida do ônibus para o campus da UFSM era na Rua Professor Braga. Depois mudou para a Astrogildo de Azevedo. Não importa, a fila sempre foi imensa. Lembro das cartelinhas com as passagens destacáveis que comprávamos com antecedência, porque era mais barato, e enfiávamos naquelas pastas pretas que todo mundo usava, cada uma com o símbolo de sua faculdade. A minha, da Comunicação Social, tinha o desenho de uma gaiola aberta e um passarinho fugindo, alçando voo, com o famoso Poeminha do Contra, de Mario Quintana, escrito ao lado da gravura: Todos esses que aí estão/atravancando o meu caminho/eles passarão/eu passarinho! Aliás, enquanto 9 entre 10 diretórios e centros acadêmicos dos cursos de jornalismo pelo país afora levavam o nome de Vladimir Herzog, o nosso DACOM da UFSM fora batizado com o nome do poeta do Alegrete. O que não nos tornava menos contestadores.
Éramos todos poetas, claro, mas acreditando que um poema tinha a potência de um tiro. No ocaso da luta armada, alfinetávamos os generais do poder com versos que, em tempos de abertura política, nos mantinham no conforto de nossa revolta pequeno burguesa. O hall do prédio 21 era um furdunço permanente, com faixas, cartazes e desenhos contra a agonizante ditadura militar. Não havia internet e, na pré-história dos blogs, mais do que nos jornais laboratórios curriculares, queríamos mesmo era escrever na Pô-ética!, a revista independente de poesia que imprimíamos no mimeógrafo do diretório. Era a chance de ouro para xingar os milicos e cantar as gurias, quase sempre em versos de pé quebrado e rima pobre.
Ostentar uma careca reluzente e andar com a indefectível pastinha preta debaixo do braço era um flagrante sinal de status. Os bixos entravam no ônibus com orgulho e prestígio, mesmo depois de passar por trotes humilhantes em quase todas as faculdades. Não na Comunicação. Entrei para o curso de jornalismo com o cabelo batendo nos ombros e tive as melenas preservadas pelos veteranos, cujo trote foi convidar o Schmitão, colega mais velho e hábil ator de teatro, para fingir ser um professor carrasco que nos aterrou com exigências absurdas e uma prova rigorosíssima com peso 100 logo no primeiro dia de aula.
No ano seguinte, minha turma, já veterana, convenceu o mesmo Schmitão a se apresentar aos calouros como o pró-reitor de assuntos extraordinários responsável pela suposta extinção da faculdade de Comunicação Social e a transferência dos recém-ingressos para outras instituições bem longe de Santa Maria. Empunhando a lista de calouros num papel amarfanhado, Schmitão, de terno engomado e cara de fascista, anunciava a transferência de fulano para Rondônia, de sicrano para o sertão da Paraíba, e assim por diante. Houve choro, ranger de dentes e protestos acalorados, até que o primeiro desmaio nos obrigou a esclarecer tudo e desfazer o trote.
Passamos quatro anos reclamando de tudo e de todos. Da qualidade do transporte, do preço do RU, da falta de equipamentos, dos professores, do reitor, dos poderosos de Brasília, do presidente dos Estados Unidos, de qualquer um que fosse, na nossa concepção difusa, contra a educação pública e contra o povo brasileiro. Esse espírito contestatório, por mais que soe ingênuo para alguns, me formou como cidadão. Como continuo acreditando que é possível mudar o mundo, sonho de nós outros naqueles verdes anos, eu continuo reclamando. Talvez com mais foco, virtude que só a experiência confere, mas, creio, com a mesma ênfase de outrora. Só não tenho mais aquela cabeleira, mas o que está na cachola é a mesma aspiração de menino sonhador.
*Marcelo Canellas é jornalista formado na UFSM e repórter especial da Rede Globo.
**O texto acima foi publicado originalmente na editoria Recordações da terceira edição da Arco, em janeiro de 2014.