Para além da chegada da primavera, o mês de setembro é iluminado por mais tons de amarelo, afim de trazer à luz um assunto que, para muitos, ainda é tabu: o suicídio. No Brasil, o movimento começou a tomar força em 2014, quando monumentos históricos e praças passaram a receber tons de amarelo e ganhar maior visibilidade da população. Nesse mesmo ano, o Brasil foi considerado o oitavo país do mundo com a maior taxa de suicídios, a partir de um estudo feito pela Organização Mundial da Saúde. O estudo ainda aponta que a cada 40 segundos – o tempo que você vai levar pra ler esse parágrafo, talvez – uma pessoa comete suicídio no mundo.
Os dados alarmantes servem para reforçar a importância do assunto. Mas como devemos tratá-lo? A melhor saída é ocultar os fatos ou fazer questão de falar sobre isso? É um problema a ser tratado em âmbito familiar ou deve compor também os debates de saúde e segurança pública? Na busca pelo compartilhamento de boas respostas a esses questionamentos, ocorre em Santa Maria o 4º Encontro Regional de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio, uma iniciativa que recebe apoio de diversas entidades santa-marienses que lutam pela causa.
Três dias após o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, ocorrido no dia 10 de setembro, a UFSM sediou espaço para palestras e rodas de conversas para tratar do suicídio a partir de vários aspectos: desde o apoio nas crises até um debate aprofundado sobre possíveis abordagens da rede de atenção psicossocial. Em um desses momentos, palestrou o psiquiatra Renato Piltcher, que atualmente trabalha em Porto Alegre.
Confira a entrevista que a nossa equipe fez com o psiquiatra Renato Piltcher:
Arco: Por que o suicídio ainda é tabu?
Renato Piltcher: O suicídio é menos tabu atualmente, mas ainda assim o é. Da mesma forma que outros assuntos considerados tabus, ele mexe com questões que nos assustam, às vezes nos excitam, nos deixam com receio, pensando se a gente seria ou não capaz daquilo. O tabu tem relação com a cultura, com aquilo que nós homens escrevemos e construímos. Tabu é aquilo que é secreto, que não pode ser mencionado, é perigoso ou indevido. Outra coisa que colabora para que o suicídio seja tabu é aquele senso comum de que “se falar disso, aí vai fazer as pessoas se suicidarem” – o que, quero deixar bem claro, que é inverdade. Existem, inclusive, religiões que não dão para o suicida o direito de ser enterrado ou receber os mesmos rituais que a morte natural traz. Em algumas legislações, o suicídio é considerado crime. Não bastando a pessoa em desespero atentar contra sua vida, em alguns lugares com pouca sensibilidade, é capaz que algum juiz processe a pessoa pelo que ela fez. O outro motivo é uma espécie de desafio de alguma coisa que ou a religião ou a lei dos homens está a proibir.
Arco: Qual o panorama mundial de faixa etária nos casos de suicídio?
Renato Piltcher: Existem duas faixas de pico para tentativas de suicídio: dos 15 aos 30 anos. Existem vários fatores que podem explicar maior incidência dos 15 aos 30 anos: as responsabilidades exigidas de um adolescente que entra na fase adulta; há uma incidência de depressão e esquizofrenia pela primeira vez nessa faixa etária; a turbulência da adolescência; o turbilhão de informações da internet. Como é uma época em que as doenças são menos frequentes – não é comum morrer por “mortes” naturais devido a doenças – a representação estatística do suicídio fica muito maior. Tanto que as mortes violentas – seja por suicídio, seja por acidente de carro – são a maior causa de morte dos 15 aos 24 anos. Estima-se que, do ano 2000 para o ano de 2014, houve um incremento próximo a 10% na frequência de morte por suicídio nessa faixa etária. A outra faixa etária de pico de morte por suicídio é na faixa da terceira idade. As pessoas acima dos 70 anos têm, por vezes, condições físicas ou emocionais mais debilitadas. Elas fazem uma tentativa de suicídio, geralmente, por métodos letais como ingestão de medicamentos, enforcamento ou tiro.
Arco: E com relação a gênero? Há alguma diferença entre homens e mulheres?
Renato Piltcher: Exceto no caso da China – onde a maioria de suicídios é cometido por mulheres – todos os países do mundo têm a maior taxa de suicídios cometidos por homens, mesmo sendo as mulheres as que tentem com mais frequência. Se pensa que para cada suicídio exista pelo menos de 10 a 100 tentativas. É muito mais frequente a tentativa, inclusive, porque dentro de cada um a ambivalência entre “viver” ou “morrer” é enorme; e também porque muitos lugares dificultam o acesso a meios mais violentos. Em lugares onde armas são facilmente alcançadas a pessoa pode, em um momento de impulsividade, agarrar uma arma e, em um segundo, terminar com sua vida. Já em lugares onde o indivíduo é forçado a buscar outro método, isso já pode dar tempo suficiente para despertar a vontade de viver dentro da pessoa ou também para que alguém em torno possa intervir e ajudar.
Arco: Entre os estados brasileiros, o Rio Grande do Sul tem maior incidência de casos de suicídio, e, inclusive, Santa Maria é apontada como uma das cidades com maior índice. A que se deve isso?
Renato Piltcher: Uma explicação é a mesma de por que achamos que na Escandinávia, por exemplo, os casos são mais comuns que no Brasil. Na verdade, isso não quer dizer que haja maior incidência lá, acontece que os casos são mais notificados. Tanto as famílias quanto os profissionais da saúde são mais eficientes em notificar isso e, logo, a estatística sobe. Muitas vezes, o motivo do suicídio é notificado como “acidente” pela família que atravessa fenômenos como “vergonha” após o ocorrido. Já nesses países, as notificações são muito mais verazes. Dentro do Brasil, o Rio Grande do Sul, comparado a outros estados – parte por sua colonização e fortes traços da cultura europeia-, é um lugar onde se notificam casos também com maior veracidade. Outra especulação se refere a áreas indígenas. Os índios sofreram uma aculturação, um dizimar brutal na região sul, e isso pode estar diretamente relacionado a casos de suicídio nessas culturas. Além disso, existem estudos sobre o nível de agrotóxicos na alimentação terem ligação aos casos do suicídio; uma vez que as pessoas ingerem de alguma maneira o agrotóxico, o dano causado no corpo leva anos para ser reduzido. A área fumageira, bastante comum no sul do país, normalmente possui muito agrotóxico e isso pode ser um dos motivos pelos quais as taxas de suicídios são maiores. Além de fatores culturais, se tem também maior acesso aos meios com a questão da caça e o uso das armas de fogo.
Arco: Neste ano, uma questão levada a plebiscito foi a revogação do Estatuto do Desarmamento. Caso aprovada, isso poderia aumentar os números de suicídios no país?
Renato Piltcher: Acho que as políticas públicas deveriam se preocupar mais em facilitar o acesso à “arma do conhecimento”, à escolaridade com liberdade. Isso é uma arma poderosa. Os Estados Unidos, que é um país de “referência” no sentido da busca pela “guerra às drogas” não conseguem melhorar os seus índices, por exemplo. É necessário pensar em outras experiências. Dar arma para a população achando que isso vai reduzir a criminalidade é um equívoco e, além disso, pode dar brechas e “inflamar” momentos de desespero dos indivíduos, tanto nas relações interpessoais como para consigo mesmo. Sem dúvida, portanto, mais armas poderiam estar ligadas a um maior número de suicídios no país.
Arco: Além de ser um problema que deve ser enfrentado por profissionais do ramo da saúde e da segurança pública, o ramo da comunicação também encontra sérios desafios nesse assunto. Como devemos tratar o suicídio?
Renato Piltcher: A mídia tem sim uma importante participação e deve achar um equilíbrio nesse sentido, que deve ser dinâmico. A mídia deve noticiar as coisas sem espetacularizar, deve proporcionar através do seu texto um pouco de reflexão. O que se vê muito hoje é uma espécie de “quem grita mais alto, quem fala a palavra mais horrenda” e isso é muito errado ao tratarmos de um assunto tão delicado como é o suicídio. Deve-se pensar bem no que se faz, abordando com profundidade a questão.
Reportagem e fotos: Tainara Liesenfeld