Boas histórias não envelhecem com o passar do tempo. No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre a linguagem nas quais elas são contadas. Até mesmo os clássicos mais famosos precisam se atualizar para continuar a encantar as novas gerações. Esse é objetivo do livro Trilogia da Terra Espanhola, que traz as peças Bodas de Sangue (1933), Yerma (1934) e A Casa de Bernarda Alba (1935), de Federico García Lorca, em nova tradução, feita pela professora Luciana Montemezzo, do Departamento de Letras Estrangeiras e Modernas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Lançado de forma online no início deste ano pela editora Bestiário, o livro é o primeiro no Brasil a reunir as três peças de teatro em uma única edição. Além disso, ele contém um estudo crítico literário feito pela professora para situar os leitores sobre a vida e a obra de um dos artistas espanhóis mais influentes do século 20 e sobre os critérios de tradução utilizados por ela. Segundo Luciana, o estudo é destinado tanto para os leitores entenderem o universo lorquiano quanto para companhias teatrais que desejem encenar as obras.
A tradução das peças de Lorca foi o tema da tese de doutorado defendida por Luciana na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2008. “Costumo dizer que esse livro é meu terceiro filho, porque desde o doutorado até a publicação passaram 18 anos, então Lorca já é da família”, brinca a professora. A tese se transformou em livro entre 2019 e 2020, quando Luciana fez estágio de pós-doutorado na Facultad de Traducción e Interpretación da Universidad de Granada, região onde Lorca cresceu e foi assassinado.
Neste período, além da pesquisa bibliográfica para o estudo apresentado no livro, a pesquisadora foi às ruas conversar com as pessoas e se adaptar ao espanhol da região de Huelva, que Luciana salienta ser diferente do falado na capital Madri. O objetivo desse trabalho de campo foi tentar trazer, para a língua portuguesa, essas características únicas da forma mais fiel possível. A transposição das falas líricas (cantadas pelos personagens) do espanhol para o português e a atualização de alguns termos utilizados na tradução são algumas das diferenças entre o livro e a tese de doutorado da pesquisadora.
Qual é a cor do vestido da noiva? É galinha ou piranha?
Assim como o idioma, práticas culturais se transformam com o tempo e podem alterar o sentido original da obra, por isso requerem atenção dos tradutores. Um exemplo é a noiva, personagem do livro Bodas de Sangue, que entra na igreja com um vestido preto. De início, Luciana acreditou que a cor da roupa era uma metáfora do autor para o luto. Mas as aparências (e as vestimentas) também enganam. Depois de pesquisar, a professora descobriu que o uso do vestido preto era comum em cerimônias sociais na época. “Mantive a cor original no texto porque, como tradutora, não posso interferir na obra”, conta a pesquisadora.
Para elucidar esse detalhe, ela inseriu uma nota em que explica o contexto da cor do vestido e sugere que a noiva entre com vestido branco em uma eventual montagem teatral. Ao levar a peça para o cinema em filme homônimo, o cineasta Carlos Saura fez essa adaptação.
No texto de A Casa de Bernarda Alba, Luciana encontrou uma dúvida que durou desde a entrega da tese de doutorado em 2008 até 2016, ano em que foi a Granada pela primeira vez. Em uma das cenas, uma criada disse que pisaria na protagonista Bernarda e a deixaria amassada no chão como se fosse um lagarto. Logo depois, uma vizinha chama a personagem que dá nome à peça de “vieja lagarta recocida” . A diferença entre o gênero masculino e o feminino chamou a atenção da pesquisadora.
Ela consultou outras traduções, e todas mantiveram essa diferenciação. Como a dúvida persistiu, Luciana recorreu ao dicionário. Foi então que percebeu que a palavra no feminino é usada em tom depreciativo, como p***, mas também para designar uma pessoa astuta ou traiçoeira. Luciana escolheu a primeira opção.
Como Lorca usou um animal como metáfora no original espanhol, ela achou que teria que fazer o mesmo em português. Luciana ficou em dúvida entre galinha e piranha. Para decidir qual termo iria empregar, ela utilizou um método aprendido nas técnicas de tradução: perguntar a pessoas sem nenhuma ligação com o trabalho. Assim, ela começou a perguntar para amigos próximos sobre qual era a diferença entre um animal e outro. “Escolhi os homens porque havia considerado a hipótese de o adjetivo estar referido à moral feminina e achei que os homens poderiam me dar respostas mais espontâneas”, explica Luciana.
Mas a protagonista é tão traiçoeira que enganou até mesmo a professora. Ela só foi perceber que Lorca usou “lagarta” com o sentido de víbora quando chegou na Espanha. Com a descoberta, a dúvida sobre qual animal utilizar na tradução retornou e, por isso, consultou José Antonio Pinilla, professor da Universidad de Granada e tradutor de português. “Estávamos no gabinete de português da universidade, ele estava lendo, levantou a cabeça e disse: ‘víbora”’, lembra. Luciana quase não acreditou na facilidade com a qual ele solucionou seu dilema de anos.
Outras traduções
Antes da Trilogia da Terra Espanhola, Bodas de Sangue (1933) havia sido traduzida três vezes, a primeira pela poeta Cecília Meirelles (1944), seguida por Antonio Mercado (1977) e Rubia Goldonni (2004).
Yerma (1934) tem duas traduções, uma de 1944 também feita por Cecília Meirelles, e outra em 2000, por Marcus Motta.
A Casa de Bernarda Alba (1936) tem três traduções, uma de 1975, feita por Alphonsus de Guimaraens Filho, e a outra realizada em 2000 também por Marcus Motta. Clarice Lispector e Tati de Moraes traduziram a obra em 1968. Essa versão, no entanto, nunca foi publicada e permanece arquivada na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
Nem mesmo o trabalho de poetas e escritores conceituados foram capazes de resistir ao tempo. “Acho o texto da Cecília Meireles belíssimo, superior a qualquer outro, inclusive o meu, porque é um poeta traduzindo outro. Mas existem palavras que estão fora de uso e isso precisava ser atualizado, porque as traduções envelhecem”, analisa Luciana.
Se a versão antiga de um livro já atrapalha a imersão do leitor na obra, é preciso ter ainda mais atenção quando se trata de teatro, já que os espectadores não têm a opção de voltar às partes que não entenderam, a não ser que assistam toda a peça novamente. “Na linguagem atual, tragédia e comédia ficam muito próximos e isso me preocupava muito, porque as peças são sobre tragédia, mas basta um deslize para uma fala trágica virar risível”, enfatiza a pesquisadora.
Rua Federico García Lorca: esquina entre arte e política
A trilogia foi escrita em um período de forte polarização política, que culminou na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), travada entre republicanos e nacionalistas. A vitória dos nacionalistas deu início à Ditadura Franquista, que durou 37 anos. Por conta de suas obras, Lorca se tornou inimigo dos conservadores espanhóis e uma das primeiras vítimas da guerra. “A situação política se reflete nas peças de forma gradual. Em Bodas de Sangue há uma crítica política muito velada, em Yerma já aparece um pouco mais”, detalha Luciana.
A última cena de Yerma se passa em uma procissão realizada por mulheres que desejam engravidar, uma menção à Romaria Cristo Del Paño, que ocorre desde o século 17 até hoje, na província de Granada. Durante a liturgia, uma anciã diz a Yerma que quem realiza o milagre da concepção não é Cristo, mas sim os homens que vinham de fora.
Após a estreia da peça, a reação do público se dividiu entre ovação pelos jornais de esquerda e acusações de blasfêmia pelos jornais conservadores. “Meu coorientador de tese costumava dizer que Yerma foi a primeira bala que matou Lorca. A partir dali, ele virou inimigo de toda a ala conservadora do país”, comenta.
Em A Casa de Bernarda Alba, a crítica política se acentua mais uma vez, mas Lorca nunca soube qual foi a recepção da crítica: 30 dias depois de finalizar a obra, o escritor foi assassinado pelo governo espanhol e até hoje seus restos mortais não foram encontrados. Por conta da guerra e da ditadura, a peça estreou nove anos depois, em Buenos Aires, e só foi apresentada na Espanha em 1964, com o país ainda sob ditadura.
Outro aspecto que fez de Lorca um inimigo público foi o fato de nunca ter escondido que era homossexual. “Ele vivia em uma condição cômoda, pois sua família tinha recursos financeiros e aceitava sua sexualidade. Mesmo assim, ele foi morto também por ser homossexual”, analisa a pesquisadora.
Mesmo após sua morte, Lorca não deixou de receber ataques. Luciana conta que monumentos em sua homenagem frequentemente são alvos de hostilidade. Em Granada, onde Lorca foi assassinado, monumentos às vítimas de perseguição política já foram pichados com a palavra “mentira”. Uma rua que leva seu nome na cidade de Huelva, província de Granada, teve a placa pichada com palavra “maricón”, equivalente ao termo “viado” em português. “Eu ouvi coisas muito parecidas com as que a gente ouve aqui sobre ditadura: pessoas questionando o porquê procurar os corpos das vítimas desaparecidas, dizendo que quem gosta de osso é cachorro”, relata a pesquisadora.
Segundo Luciana, outro diferencial do livro Trilogia da Terra Espanhola é mostrar que não apenas a obra, mas também a vida e os desafios que Lorca enfrentou em sua época continuam atuais e sem tanta necessidade de tradução. “Ele é um autor que não só marcou sua época, como ele ainda reverbera no nosso futuro”, finaliza.
Sobre aTrilogia da Terra Espanhola Desde o início, a ideia de Lorca era escrever uma trilogia sobre o universo da Andaluzia, região ao sul da Espanha. No entanto, ele nunca escreveu a peça final, pois foi morto pela ditadura espanhola. Com o tempo, a crítica especializada em sua obra colocou ‘A Casa de Bernarda Alba’ como parte final da trilogia por ter temática e aspectos comuns às duas obras anteriores.
Bodas de Sangue (1933) : Narra a história de um casamento entre camponeses. A Noiva, um dos personagens principais está prestes a se casar, ela segue apaixonada por Leonardo, seu ex-noivo. No dia do casamento da Noiva, Leonardo surge para seduzi-la. O que era para ser uma simples cerimônia se torna em uma série de perseguições pelo deserto espanhol.
Yerma (1934): Yerma é uma mulher que vive o drama de não poder engravidar, mas mantém a esperança de ter um filho. Para isso, ela busca ajuda de todas as formas possíveis, enquanto enfrenta a indiferença do marido, Juan, que não demonstra nenhum interesse em compartilhar sua angústia. Esse conflito de interesses não só desgasta a relação, como a torna cada vez mais preocupante.
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Expediente:
Reportagem: Bernardo Salcedo, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Design gráfico: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo e bolsista; e Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb, jornalista.