As previsões meteorológicas apontavam para um temporal, mas o dia 10 de outubro foi marcado pelo intenso sol em Santa Maria. Na rua Alberto Pasqualini – antiga 24 Horas -, no centro da cidade, a alegria de muitas crianças e adultos foi proporcionada por grupos de voluntários, que se mobilizaram e promoveram uma ação de Dia das Crianças para filhos de catadores de material reciclável e pessoas em situação de rua.
Naquele domingo, foram distribuídos presentes e servidos lanches, incluindo uma variedade de doces. Mariluci, que estava com as duas filhas pequenas, celebrava que as meninas ganharam, além de brinquedos e livros, também uma cesta básica. Além das filhas dela, outras dezenas de crianças corriam e brincavam na área do evento. Entre os adultos, um homem muito ativo caminhava de um lado para o outro oferecendo alimentos e verificando se todos estavam satisfeitos. Reinaldo Santos é acadêmico do curso de Relações Internacionais da UFSM e um ativista da causa da população em situação de rua e em vulnerabilidade social. Ele é voluntário em vários projetos voltados para a população em situação de rua em Santa Maria, entre eles o UFSM nas Ruas: mais portas, menos muros para catadores de materiais recicláveis e pessoas em situação de rua, projeto de extensão criado em 2018 e vinculado ao curso de Terapia Ocupacional e ao Observatório de Direitos Humanos da Pró-Reitora de Extensão (ODH/PRE) da UFSM.
O artigo 5° da Constituição Federal define que todos são iguais perante a lei e têm o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Apesar disso, no Brasil, muitos não têm acesso a alguns direitos básicos, como saúde, alimentação, trabalho e moradia. Essa é a realidade de aproximadamente 160 mil de pessoas que vivem em situação de rua, segundo levantamento feito pelo projeto Intocáveis em março de 2021. Os autores do estudo estimam que esse número seja ainda maior, uma vez que há subnotificação.
As ações do UFSM nas Ruas vão além do assistencialismo, que, embora tenha um papel importante para quem tem fome ou frio, não resolve os problemas estruturais. “Não basta oferecer só o pão e o agasalho. É preciso garantir a todos e todas os direitos sociais que, por meio de políticas públicas implementadas pelo Estado, cheguem a essas pessoas”, reflete Amara Lucia Battistel, coordenadora do projeto.
Antes da pandemia de Covid-19, havia um grupo de trabalho composto por discentes, docentes e voluntários de diversas áreas da UFSM que promovia ações na praça Saldanha Marinho, na região central da cidade. Entre as atividades, eram feitas rodas de conversas, práticas de esportes, brincadeiras e encontros musicais, que inclusive resultaram no grupo chamado “Samba na Praça”. “Essas atividades ocuparam um espaço significativo, tanto no cotidiano desses indivíduos, quanto para nós, que começamos a nos sentir inseridos no território e acolhidos por eles”, lembra Amara.
Aos poucos, o projeto ganhou grandes proporções e aumentou o número de participantes. Muitos deles não estavam em situação de rua, porém viviam em vulnerabilidade social, já que vivenciavam precárias condições de trabalho.
Após a pandemia
Com a chegada da pandemia, muitos projetos da UFSM precisaram se adaptar para continuar com seu caráter extensionista e de prestação de serviços para a comunidade santa-mariense em tempos de distanciamento social. Com o UFSM nas Ruas isso também aconteceu, mas, diferentemente de outros projetos, a necessidade de fazer a adaptação para o modelo remoto representou um grande desafio para os voluntários, visto que o público atendido não tem acesso aos recursos tecnológicos para tal. Assim, o projeto passou a se integrar às ações do Comitê Emergência Rua (CER), que consiste na reunião de diversos grupos que tem por intuito auxiliar a população em situação de rua e em vulnerabilidade social no cenário da pandemia.
Através do CER, o UFSM nas Ruas efetuou muitas ações de arrecadações de materiais de higiene, alimentos, roupas, álcool em gel, colchões, lençóis e diversos outros objetos necessários para a implementação de um centro de acolhimento, que funcionou como um abrigo temporário para as pessoas em situação de rua, a fim de prevenir o contágio pela Covid-19, no ano de 2020. Nessas ações, que aconteceram no Centro Desportivo Municipal (CDM), também foram oferecidas oficinas de artesanato, pintura e jogos.
Para comemorar o Natal e o Ano Novo, foram arrecadados alimentos para duas ceias, que foram servidas para um grupo de catadores no centro da cidade e na Casa de Passagem Maria Madalena. Em um cenário de crise sanitária e econômica, uma ação como essa só foi possível graças ao auxílio do voluntário Reinaldo Santos: “Sempre que posso eu me encontro com as pessoas em situação de rua, janto com eles, ouço suas dores e me voluntario para acolhê-los”.
Valdomiro Silva, que vive em situação de rua há aproximadamente oito anos, afirma que o UFSM nas Ruas é importante porque representa quem mais precisa. As ações propostas pelos voluntários do projeto de extensão permitem que ele e outras pessoas saiam da invisibilidade e tenham suas vozes escutadas pela população e pelo poder público. Os impactos da pandemia também atingiram quem vive nas ruas. Valdomiro conta que, apesar de se candidatar a muitas vagas de emprego, não é selecionado para nenhuma, o que o faz ficar dependente da solidariedade para sobreviver. Assim como ele, muitas pessoas passaram a viver em situação de vulnerabilidade no Brasil desde o início de 2020. “Vejo alguns amigos meus morando em albergues. Amigos que eu nunca imaginei que chegariam a essa situação. Mas, com os aluguéis subindo e a falta de emprego, muitos precisam recorrer a projetos como o UFSM nas Ruas”, afirma.
Para dentro da academia
Além de atuar com redes de solidariedade e de promoção da cidadania, o UFSM nas Ruas busca fomentar o debate dentro do ambiente acadêmico sobre o contexto da população em situação de rua e de catadores de materiais recicláveis. Através dos “Seminários de Políticas Públicas para as Pessoas em Situação de Rua”, o projeto possibilitou a fala e a presença desses cidadãos que muitas vezes se sentem à margem da sociedade. As duas primeiras edições do seminário aconteceram no Auditório Imembuí no Prédio da Reitoria da UFSM, em 2018 e 2019. A participação de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade nesses eventos teve um valor simbólico, já que muitos deles sequer conheciam o espaço físico da Universidade.
Amara comenta que o seminário inicialmente causou certo impacto na comunidade acadêmica, mas fica feliz em saber que o evento instigou uma quebra de estigmas ao permitir o acesso dessa população à Instituição. “Compreendemos que esse espaço ajudou a promover direitos, garantiu protagonismo e gerou um sentimento de pertencimento a indivíduos que vivenciam a extrema vulnerabilidade social”, afirma.
A professora enxergou a necessidade de trazer a discussão também para dentro do curso do qual é docente. Depois de consultas sobre conhecimentos técnicos com profissionais do campo social em Santa Maria e Porto Alegre, Amara criou a disciplina complementar de extensão“Terapia Ocupacional Social e a População em Situação de Rua”.
A participação em um projeto como o UFSM nas Ruas contribui na formação profissional dos acadêmicos do curso que passam a olhar para os direitos humanos e inclusão social e, assim, vislumbrar soluções possíveis para uma sociedade mais justa e inclusiva. “Graças à experiência proporcionada pelo projeto, foi possível compreender o cuidado de forma integral, enxergando que os indivíduos possuem diferentes necessidades, desejos e realidades, influenciando em nossa atuação profissional”, expõe Mariana Mozzaquatro, bolsista do projeto e acadêmica do curso de Terapia Ocupacional.
Uma nova fase do projeto
Graças a uma parceria com a Casa de Passagem Mundo Novo, o UFSM nas Ruas irá compor o quadro de atividades do Espaço de Ações Comunitárias e Empreendedoras, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão, localizado no Prédio da Antiga Reitoria. O projeto terá um espaço para acolher indivíduos em situação de rua. Interessados de outras áreas da Universidade podem contribuir na formação desse novo local que visa ampliar as ações e criar um ambiente de pertencimento para as pessoas em situação de rua.
Por um Natal sem fome
Junto a outras redes de solidariedade que compõem o CER, o UFSM nas Ruas está organizando o “Natal Sem Fome para catadores e pessoas em situação de rua”. Serão duas refeições nos dias 25 de dezembro de 2021 e 1° de janeiro de 2022.
Expediente
Reportagem: Luís Gustavo Santos, acadêmico de Jornalismo e voluntário
Ilustração: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e voluntário
Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes e bolsista de Jornalismo; Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Martina Pozzebon, acadêmica de Jornalismo e estagiária
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas