As relações humanas aparecem assim, sem eufemismos ou desculpas. Esse é “Nebraska”, um dos indicados deste ano ao Oscar de melhor filme – e também um momento em que ficção e realidade ficam lado a lado. No filme, Woody Grant, interpretado por Bruce Dern, recebe um informe publicitário que diz que ele poderia se tornar um milionário. Em idade avançada, alcoólatra, com sinais de esclerose e já sem muitas expectativas sobre a vida, essa se torna sua obsessão, mesmo que ele não possa dirigir até a cidade de Lincoln, no Nebraska, para retirar seu prêmio. Depois de muita insistência, o filho David, vivido por Will Forte, decide levá-lo na longa viagem, ainda que acredite que tudo não passe de uma farsa. No caminho eles se deparam com a dura, e muitas vezes até cansativa, relação que tentam desvelar.
“Nebraska” é sobre a descoberta do momento em que os filhos precisam se tornar pais dos próprios pais. Traz a realidade de uma situação que ainda causa desconforto e que, embora renda discussões há tempos, é tema atual. O crescimento da população de idosos reforça essa ideia: segundo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2050 o número de pessoas com mais de 60 anos de idade será aproximadamente três vezes maior do que o atual. A estimativa é ainda que os idosos componham cerca de um quinto da população mundial projetada, o que representa 1,9 bilhões de indivíduos de um total de nove bilhões.
Os dados só reforçam a necessidade de estudos e políticas públicas que sirvam como contribuição para a melhoria da saúde e qualidade de vida nessa faixa etária. Com o crescimento da população idosa, tem aumentado também a demanda, ao longo dos últimos tempos, por Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Seja por fatores demográficos, de saúde, financeiros ou sociais, elas representam uma alternativa que não costuma ser de fácil escolha, tanto para os familiares quanto para o próprio idoso. A curiosidade em compreender esse cenário levou a enfermeira Naiana Oliveira dos Santos a trabalhar com o tema Família de idosos institucionalizados: perspectiva de trabalhadores de uma instituição de longa permanência em sua dissertação de mestrado para o Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM.
UMA NOVA ROTINA
A opção pela institucionalização do idoso está ligada a diferentes motivos, alguns dos quais bastante contestados. Há os casos em que a família não possui condições de prestar os cuidados necessários e então opta pela institucionalização. A busca pelo asilamento também pode vir como uma tentativa de transferência de responsabilidades. Por vezes, a opção parte do próprio idoso, que busca um local no qual tenha atenção, conforto e o atendimento indispensável para suas necessidades básicas. Existem ainda aqueles que estão nas instituições por não possuírem família ou terem sido abandonados por elas, por não terem quem os cuide ou um local onde morar.
Naiana conta que, nas vezes em que foi até as instituições, percebeu a ausência das famílias, que raramente faziam visitas. A carência tida como resultado era sempre expressa no pedido de um abraço, um minuto a mais de conversa ou um simples sorriso.
A fala de um dos trabalhadores entrevistados para a pesquisa reforça essa ideia. Ele diz que a maioria das famílias não aparece há anos e estima, empiricamente, que isso é o que ocorre em torno de 70% dos casos.
O afastamento daqueles que antes eram próximos faz com que os idosos institucionalizados criem novos laços e uma relação de carinho e respeito uns com os outros e também com os trabalhadores da instituição. Apesar disso, Naiana destaca que “os trabalhadores visualizam a ILPI como uma colaboradora no cuidado dos idosos. Por mais competentes e afetivos que sejam, a família dos idosos jamais será substituída”.
A presença constante dos entes queridos é uma forma de incentivo que melhora a qualidade de vida daquele que espera que a idade já avançada não seja uma sentença de esquecimento.
Exemplo disso é dona Arlinda Motta dos Santos. Aos 107 anos, ela hoje reside no Abrigo Espírita Oscar Pithan e faz questão de se manter ativa. Embora não possua mais familiares, ela recebe visitas constantes daqueles com quem viveu durante anos. Cada encontro é esperado com ansiedade. Foi juntamente com eles que tomou a decisão de morar no Oscar Pithan. “O meu patrão disse que já estava na hora de pararmos de trabalhar, tanto ele quanto eu. Sugeriu comprar um apartamento para mim, mas aí o filho dele disse que talvez não fosse a melhor solução e eu concordei, porque também já não tenho mais ninguém para ficar comigo. Então eles me deram o dinheiro e resolvi vir para cá”, explica dona Arlinda.
Há casos, porém, em que o afastamento dos familiares nasce da falta de compreensão e desconhecimento, seja da dinâmica da instituição, das formas de contribuir e mesmo da importância que esse contato tem para o idoso. Por isso, uma dinâmica que insira os familiares na rotina do local é não só útil, mas também essencial. Quando há uma relação de confiança e sinceridade estabelecida entre família, o idoso e os trabalhadores da ILPI, os vínculos afetivos são reforçados e a vivência da situação se torna menos traumática, embora, ainda assim, nem sempre fácil.
Apesar da tentativa das instituições asilares de respeitar as peculiaridades e demandas de seus internos, em geral elas sofrem, principalmente as de caráter público e filantrópico, com dificuldades de ordem econômica. Como há de se supor, os recursos humanos acabam não sendo suficientes para dar conta de demandas tão específicas. A professora de Enfermagem do Centro de Educação Superior Norte–RS (CESNORS) e pesquisadora de temas ligados ao idoso Marinês Tambara Leite entende que por isso, e também pela própria dinâmica de coletividade das ILPIs, o idoso institucionalizado acaba sendo privado dos seus projetos, relações afetivas e traços de sua personalidade.
O asilo é a instância encarregada de acolher a face rejeitada do idoso e, na medida do possível, oferecer aquilo que a sociedade lhe negou.
Muitas vezes ele traz consigo uma enorme carga de dor e sofrimento, pois ter uma ILPI como último refúgio significa habitar um universo paralelo, com um tipo de socialização alternativa, que só em situações bem específicas se toca com o mundo que lhe é exterior”, explica Marinês. Atividades que seriam comuns da vida diária, tais como ir ao supermercado ou visitar amigos e parentes, por exemplo, diminuem drasticamente ou deixam de existir. Essas restrições diminuem o convívio social e podem gerar uma sensação de falta de liberdade.
O APRENDER A CONVIVER
Se a participação dos familiares na vida dos idosos institucionalizados é importante, ela se torna indispensável nos casos em que a opção feita é a de mantê-los mais perto, em casa. Não basta fornecer um lugar onde comer e dormir, é preciso dar os cuidados necessários, que não são apenas materiais. Tempo e boa vontade passam a ser quesitos fundamentais. A enfermeira Marinês lembra que o Brasil possui um aporte legal presente na Constituição com o intuito de garantir ao idoso respeito social e direito de viver e se relacionar melhor em sociedade. No artigo 229 fica determinado que, assim como os pais têm o dever de criar e educar os filhos menores de idade, os filhos maiores devem ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. “Existem idosos, no entanto, cujas famílias são muito pobres ou seus familiares não podem abandonar o mercado de trabalho para assumir tal responsabilidade. Isso faz com que haja um número considerável de idosos que vivem isolados socialmente, mesmo residindo com seus familiares”, pontua ainda Marinês.
Em um contexto social no qual a família assume novas configurações, com menos membros, em que o ritmo de vida costuma ser de uma eterna corrida contra o tempo e as dificuldades financeiras são uma realidade constante, os obstáculos para a manutenção do idoso em seu lar apenas se somam. “Este panorama aponta para a necessidade da adoção de ações e de intervenções de gestores das políticas públicas, isso com o intuito de desenvolver recursos que proporcionem a manutenção da participação da família no contexto de vida”, enfatiza Naiana. Apesar da necessidade de suporte material, mesmo coisas muito simples, como ações de orientação e esclarecimento, podem fazer a diferença, especialmente nos casos em que o idoso é dependente para a realização das atividades da vida diária e requer cuidados diretos.
SEM PERDER O RITMO
Embora as representações sociais construídas em torno da velhice entendam-na como necessariamente ligada a um período de dependência e inatividade, a questão passa muito longe disso. Podem existir limitações, mas elas não são regra e nem fazem do envelhecer um sinônimo de doença. Seu Setembrino Domingues é exemplo disso. Seu trabalho como pedreiro lhe rendeu duas vértebras quebradas e fraturas em quatro pontos da perna. Foram dez meses parado. Vinte anos depois, mais uma queda séria, quatro meses de recuperação e a decisão de ir morar em uma uma Instituição de Longe Permanência para Idosos. “Cheguei aqui e foram uns dois ou três meses sem fazer nada, e eu não consigo ficar parado. Aí comecei a trabalhar na horta aqui do Oscar Pithan e tem uns dez anos que eu cuido dela. O que eu puder fazer sozinho eu faço e o que não dá deixo para o outro dia”, explica seu Setembrino.
Em suas pesquisas na área e vivências, Marinês percebe que nas últimas décadas os idosos estão mais ativos e inseridos, tanto no espaço familiar como na sociedade. O acesso mais amplo aos serviços de saúde e aos bens sociais, tais como educação e renda, tem permitido melhor qualidade de vida. A pesquisadora afirma que “estas novas características expressam o crescente afastamento da tradicional imagem do idoso inativo, aposentado da vida, e sua significativa substituição pela dos idosos dinâmicos, reunidos em grupos geracionais”. Em muitas situações, inclusive, o idoso contribui fortemente no orçamento ou mesmo cabe a ele tomar conta de outros integrantes da família, principalmente os netos.
Outra realidade bastante comum são os idosos que preferem continuar vivendo em suas próprias casas, mesmo que isso possa significar não ter outras pessoas morando consigo. Essa é uma forma de preservar sua autonomia e independência – o que não significa solidão, uma vez que as relações afetivas se mantêm. Mas seja morando sozinhos ou com a família, uma tendência crescente é a participação dos idosos em grupos de terceira idade. Marinês entende que esse é um espaço importante para desencadear, tanto na pessoa idosa quanto na comunidade, uma mudança comportamental diante da situação de preconceito que existe nesta relação.
Para os idosos, a inserção nesses grupos é uma busca por melhor qualidade de vida. É um espaço para realizar atividades que melhoram a saúde física, e também a mental, prevenindo perdas funcionais e recuperando capacidades. Mais ainda, é o desenvolvimento de novas amizades, de poder compartilhar experiências, sejam elas alegres ou tristes. Segundo Marinês, alguns estudos evidenciam que a participação dos idosos nos grupos de convivência leva não só a passar o tempo livre: “São espaços nos quais o convívio e a interação com e entre os idosos permitem a construção de laços simbólicos de identificação, onde é possível partilhar e negociar os significados da velhice, construindo novos modelos e identidades sociais”. É uma nova perspectiva que pode garantir a motivação necessária para seguir em frente e atingir, ou mesmo criar, objetivos para seguir em frente.
Repórter: Daniela Pin Menegazzo
Fotografia: Luciele Oliveira