De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é, pelo 14° ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans e travestis. A frase “que descanse em paz”, dita após o falecimento de alguém, parece não valer para pessoas trans e travestis brasileiras. Em vida, elas sofrem com violências físicas e emocionais causadas pelo preconceito. Mas a transfobia não acaba quando elas morrem: o desrespeito com pronomes, nomes e gênero continua mesmo depois do óbito. Muitas delas são designadas em lápides, noticiários e certidão de óbito com os nomes que tinham antes da transição e com pronomes que não condizem com o gênero com o qual elas se identificavam, elemento que constitui um dispositivo de normalização pós-morte e que atua contra o desejo final das travestis ao lhes negar uma morte digna, de acordo com o estudo “Violência pós-morte contra travestis de Santa Maria”, publicado nos Cadernos de Saúde Pública.
A intenção da pesquisa foi descrever e analisar essas violências que são vivenciadas pelas travestis e que, muitas vezes, culminaram em seus homicídios. A partir do método etnográfico e da coleta de relatos das próprias travestis, a pesquisa compreende o período entre o final de 2019 e o início de 2020, quando a cidade de Santa Maria viu acontecer os homicídios de cinco travestis. Por isso, também apresenta relatos das mulheres assassinadas, algumas vezes poucos dias antes dos acontecimentos.
A primeira inquietação quando ocorre a morte de uma travesti é a de que a família a reconheça como feminino, vestindo roupas e acessórios de mulheres. Na ocasião do assassinato de Nilda, Inês salientou: “Enterrar uma travesti com roupas femininas faz parte da luta. Para garantir que Nilda fosse enterrada como mulher, corremos no necrotério levando um belo vestido, ainda sem uso e um par de sapatos novos. Ao menos ela seria enterrada como gostaria de ter vivido sempre, linda e mulher”. – Trecho do artigo.
Para Martha Helena Teixeira de Souza, uma das autoras do artigo, a transfobia está presente quando uma pessoa trans que não era aceita ou não tinha contato com seus parentes é velada de acordo com as crenças e as vontades da família. É nesses casos que o gênero, a trajetória e a existência daquele indivíduo são desrespeitados e, até mesmo, negados pelos seus familiares. “[No caso de uma travesti], a família, em muitos casos, veste de homem, coloca o nome masculino e se refere à travesti com pronomes masculinos. Família essa que, por nunca ter aceitado a transição, sequer convivia com a travesti e só aparece no funeral”, relata Martha.
O nome na lápide
De acordo com a pesquisa, duas das cinco travestis assassinadas foram identificadas em suas lápides com os nomes masculinos que tinham antes da transição.
“Já vimos outros casos assim. Na hora da morte aproveitam que a pessoa não pode mais reclamar e vestem como homem e chamam como homem. (…) Colocam o nome masculino na pedra. Eu já avisei para todas que não deixem fazer isso comigo”. Assim, o nome masculino que havia deixado de existir, quando gravado na lápide atua como a reiteração das normas sociais que atuam contra o desejo da pessoa morta. – Trecho do artigo.
O desacreditar da narrativa
Martha comenta que as amigas de uma das vítimas, que estavam com ela na hora de seu assassinato, tiveram a preocupação de garantir que a violência tinha sido gravada pois sabiam que, caso não tivessem provas, poderiam acabar culpadas: “Em infinitas vezes elas sofrem violência nas ruas e sequer denunciam, porque elas sabem que ninguém acredita em travesti. Então precisamos acreditar nessas pessoas. Precisamos ouvir elas”, afirma a pesquisadora.
Quando algumas travestis chegaram ao local do assassinato, outras preocupações surgiram. Glória (26 anos, profissional do sexo, branca, com o primário concluído), explicou o motivo: “Ficamos ansiosas com a chegada da polícia, pois sabemos que é difícil acreditarem em nós. Poderiam pensar que teríamos tentado roubar o cara e tantas outras coisas. Foi um alívio quando soubemos que tinha câmera que gravava tudo na rua, pois assim ficaria provado que ela não tinha feito nada”. – Trecho do artigo.
O apagamento da transfobia
Em casos em que a morte de pessoas trans é consequência da violência motivada pelo preconceito, existe o medo de que o assassinato seja tratado por qualquer outro motivo que não a transfobia. Gabriela Quartiero, integrante do coletivo Voe – formado por estudantes, pesquisadores e ativistas reunidos em prol da defesa da diversidade sexual e de gênero -, esteve presente nas manifestações após a morte das cinco travestis. Ela comenta que, em alguns casos, há uma lentidão para a chegada de ajuda no local da violência: “A gente sabe que demora para chegar policias, por ser um local de prostituição, isso é muito negligente”, pontua.
Segundo dados de 2020 da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra ), 90% da população trans feminina trabalham na prostituição, e apenas 4% está em empregos formais. Gabriela entende que a sociedade coloca essas pessoas nesse lugar por não aceitarem elas no ocupando os mesmos espaços.
Há questões como nome civil e nome social que impactam negativamente, limitando o acesso a serviços, escolas, trabalho formal. Ser identificada como travesti propicia manifestações preconceituosas e discriminações. Para muitas, como fonte de trabalho e renda, resta a prostituição. – Trecho artigo
A culpa da sociedade
Antes de pensar na transfobia que acontece após a morte de pessoas trans e travestis, é importante relembrar que essas pessoas convivem com a transfobia desde o momento em que se reconhecem. “Desde o momento que essa travesti se reconhece lá na infância ou pré-adolescência, geralmente quando está frequentando o colégio, a professora faz de conta que não vê, ou tenta encaixar nos padrões [cis]heteronormativos. Muitas vezes por violências vivenciadas no banheiro, que elas até evitam ir para não serem abusadas, acabam saindo da escola. Fica difícil conseguir um emprego sem escolaridade”, relata Martha.
Os discursos transfóbicos estão inseridos na sociedade de uma forma que marginaliza e exclui corpos trans desde a sua infância. As mesmas falas transfóbicas que foram disseminadas nas redes sociais após as mortes das travestis na cidade são as falas que, para Gabriela, colocam e mantêm elas no lugar de vulnerabilidade em que estão, além de dificultar a inserção delas na sociedade.
“A família muitas vezes abandona e elas acabam indo morar com outras travestis. E aí que vem a rua. Elas vão se prostituir para sobrevivência. Nesse momento aumentam as violências. Então, quem joga elas nesse mundo é essa sociedade. Que é hipócrita, que faz discurso moralista, de família, de Deus, de pátria, de tudo. E depois chega na hora e joga essas pessoas lá”, comenta Martha.
Verônica: a mãe loira de Santa Maria
Verônica é uma das cinco travestis que foram assassinadas em Santa Maria no período estudado. Ela foi morta com uma facada em dezembro de 2019. Conhecida como “mãe loira”, Verônica foi responsável por criar e manter o Verônica Alojamento, espaço que acolhia mulheres trans e LGBT+ desde 2006 e era uma das poucas casas de acolhimento para pessoas transexuais no Brasil. Ela era conhecida e servia de inspiração para muitas mulheres trans e travestis da cidade e foi coroada madrinha da 5ª Parada LGBT Alternativa, que ocorreu no início de dezembro de 2019 – onze dias antes de seu assassinato -, como forma de homenagear o que ela significava para Santa Maria. Na ocasião, o mote da homenagem foi a frase: “Que bom te ter viva”.
“A Verônica era como se fosse a indestrutível, que nada iria acontecer. Terem matado ela foi muito marcante. Não era qualquer uma, era a mulher que sustentava e amparava outras mulheres trans (…) ver ela em uma situação de vulnerabilidade, sendo esfaqueada, foi terrível”, relata Gabriela.
Verônica é uma das mulheres trans que teve seu nome e pronome respeitados após a morte. Para Gabriela, a alteração dos documentos, que ela já tinha feito, foi importante neste processo. Mesmo assim, pessoas próximas ficaram atentas para ter certeza que não haveria qualquer desrespeito. Martha, que esteve presente na identificação do corpo de Verônica, comenta: “Eu estava no reconhecimento do corpo e eu lembro de o rapaz do Instituto Médico Legal chamar nome masculino e eu ter que chamar atenção”, relembra.
A transfobia pós-morte com a Mãe Loira veio em comentários pelo Facebook. Pela importância que ela tinha para a comunidade LGBT+, coletivos e ativistas lutaram para que ela fosse velada na Câmara de Vereadores santa-mariense, o que mexeu com o conservadorismo presente na cidade. “A Verônica ser velada na Câmara atingiu os limites da sociedade conservadora. Por isso que a morte dela chamou mais atenção, porque ela mexeu muito mais com as estruturas da sociedade”, conta Gabriela.
Para as entrevistadas, o velório de Verônica ser na Câmara de Vereadores escancarou a transfobia da comunidade de Santa Maria, mas também mostrou a força da comunidade LGBT+ da cidade. “Não tem como a gente se conformar com uma morte causada pela transfobia, mas tem como a gente utilizar da nossa força reivindicar. A morte da Verônica trouxe a Casa Verônica para a UFSM, isso é uma coisa histórica. Transformar essa sensação de injustiça e dor em luta. É dessa forma que a gente vai ressignificar a morte dessas pessoas”, comenta Gabriela.
Verônica ganhou um documentário produzido pela TV Ovo, o trailer já está disponível.
A Casa Verônica
Na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a partir da resolução UFSM N. 064, que instituiu a Política de Igualdade de Gênero na Instituição, foi definido que a Universidade possuiria um espaço de acolhimento às pessoas em situação de violência de gênero. Para dar conta dessa demanda, foi criada a Casa Verônica. O nome do ambiente foi escolhido a partir de uma consulta com a comunidade. De 1500 votos, 39% escolheram o nome de Verônica como forma de homenagear e manter sua memória viva.
De acordo com a coordenadora da Casa, Bruna Loureiro Denkin, “A política de Igualdade de Gênero foi uma conquista da comunidade acadêmica da UFSM e comunidade externa, após mais de 5 anos de discussões e reivindicações. Então, o Espaço Multiprofissional Casa Verônica pretende ser um espaço de acolhimento a pessoas em situação de violência de gênero dentro da universidade, não excluindo o acolhimento em outros âmbitos”.
As atividades propostas pelo projeto se baseiam em três eixos: Eixo 1 – Promoção da Igualdade de Gênero; Eixo 2 – Enfrentamento e Responsabilização em Casos de Violência; e Eixo 3 – Assistência. Como previsto, a assistência deve ser feita por três profissionais, uma psicóloga, um advogado e um assistente social. As ações podem ser acompanhadas na página no Instagram.
Bruna entende que pela Universidade estar inserida em uma sociedade ainda estruturada pelo racismo, machismo, lgbtfobia e outros preconceitos, essas questões também precisam ser enfrentadas dentro da comunidade acadêmica. “Por estar em um espaço de educação de formação, nos cabe enquanto instituição e enquanto servidores, propor e executar políticas públicas de enfrentamento às múltiplas violências e desigualdades, bem como promover a mudança cultural para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária. É um caminho ainda recente que precisa ser feito, mas também acredito ser muito importante a articulação das universidades com vistas a somar esforços para o enfrentamento e combate às violências, pois é um caminho que não se percorre sozinho, se faz necessário contar com parcerias, apoio e ações estratégicas”, finaliza.
Expediente:
Reportagem: Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo;
Design gráfico: Vinicius Gumisson Motta e Lucas Zanella, estagiários de Desenho Industrial
Edição de Produção: Samara Wobeto;
Edição geral: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas