Quem passeia pela Avenida Rio Branco de Santa Maria e observa a quantidade de prédios históricos, talvez não imagine que – mundialmente – a cidade tem o segundo maior acervo em via contínua de Art Decó. O movimento artístico que surgiu na Europa, na década de 1920, chegou de forma tardia na cidade, mas deixou profundas marcas na arquitetura local.
Foi a partir de 1940, período em que a cidade vivia o auge da ferrovia, que o primeiro edifício com os traços predominantemente simétricos, formas racionais e funcionais, foi erguido na cidade: o Edifício Cauduro – que abrigou o Hotel Jantzen. A paisagem da Avenida Rio Branco, que ligava o eixo comercial da cidade à Estação Férrea de Santa Maria, foi sendo remodelada aos poucos. Hoje, a avenida conta com o segundo maior número de exemplares do estilo em linha reta, ficando atrás somente da famosa rua Ocean Drive, em Miami.
Com o intuito de identificar as características, elementos, códigos formais e compositivos da arquitetura Art Decó executada na cidade de Santa Maria, a arquiteta Márcia Barroso defendeu sua dissertação de Mestrado, em 2013. O trabalho intitulado “Estudo sobre o Art Decó em Santa Maria/RS: o caso da Avenida Rio Branco e seu patrimônio edificado”, faz uma apresentação da origem da estética e seu desenvolvimento. Vivia-se, na época, o que a arquiteta chama de atmosfera déco. No cenário latino-americano, Cuba e Porto Rico se destacam com amplo acervo histórico. No Brasil, municípios planejados como Goiânia e Rio de Janeiro são referência no estilo. Já em território gaúcho, as cidades de Pelotas e Porto Alegre (principalmente, na Avenida Farrapos) também têm um acervo de grande relevância.
Santa Maria não ficava para trás: “O mais interessante é perceber como Santa Maria queria estar de acordo com o que estava acontecendo no mundo naquela época. A cidade que se localizava em um eixo importante de comércio começou a chamar a atenção, tinha o desejo de se modernizar”, pontua Márcia. Foi a partir de uma rede de apoio ligada ao associativismo da Viação Férrea que o tecido urbano e as construções do núcleo inicial da cidade foram se delineando. A que antes era chamada de Avenida do Progresso, hoje é Avenida Rio Branco e compõe o Centro Histórico de Santa Maria.
A partir do estudo foram constatadas a presença de 16 exemplares arquitetônicos com traços significativos do estilo compondo a espacialidade da principal avenida da cidade. Destes, foram escolhidos quatro prédios para serem objeto de uma análise completa de todos os seus aspectos arquitetônicos, espaciais e de materialidade.
O conjunto gráfico do trabalho é composto por plantas baixas, fachadas e seções verticais, disponível nos arquivos públicos do município. Na pesquisa, são apontados todos os aspectos da configuração material e estilística desta arquitetura.
De acordo com a arquiteta, a análise foi motivada pela necessidade de valorizar e preservar o patrimônio cultural e histórico da cidade; e, para além disso, despertar o sentimento de memória e identidade na população.
Situação atual do acervo
Para além da Avenida Rio Branco, a cidade conta com uma variedade de prédios históricos construídos na época, no entanto, apenas 22 foram tombados pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Entregues à ação do tempo, grande parte se encontra com as estruturas externas e internas danificadas. De acordo com Márcia Barroso, a restauração do patrimônio Art Decó é percebida lentamente, em prédios que são, em sua maioria, de propriedade privada. Alguns ainda apresentam fachada conservada, mas poluída por anúncios e letreiros de lojas. Segundo ela, isso se deve “à falta de investimento público e de um sentimento de identificação por parte da sociedade”.
Mudanças no Plano Diretor
Todas as cidades com mais de 20 mil habitantes – como é o caso de Santa Maria – devem elaborar um Plano Diretor. Previsto na Lei 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade, trata-se de documento-base de orientação política para o desenvolvimento dos municípios. Para que ofereça qualidade de vida para todos, o ideal é que uma cidade cresça de maneira equilibrada, com definições prévias acerca das prioridades do município e das destinações de uso de seu território.
O atual Plano Diretor de Santa Maria é datado de 2005. Em breve, no entanto, podem entrar em vigor as novas emendas, discutidas ao longo dos últimos três anos, após uma série de audiências e reuniões públicas com representantes de 40 entidades. Dentre as 33 propostas discutidas na Câmara dos Vereadores, uma em especial, que diz respeito às regras de construção dos edifícios, chama a atenção da comunidade que se divide no manifesto contrário ou favorável à aprovação.
A proposta de mudança deve impactar consideravelmente o visual da Avenida Rio Branco, conforme prevê o arquiteto Daniel Pereyron, vice-presidente do Instituto de Planejamento de Santa Maria (Iplan) – autarquia municipal responsável pelo planejamento urbano. Isso porque a regulação da altura dos prédios é feita pela cumeeira do prédio da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes (SUCV), onde funcionam as secretarias de Educação e Cultura. A fim de não tirar a importância dos prédios históricos existentes ao redor, as novas edificações não podem ultrapassar essa altura. Porém, a área central da cidade apresenta irregularidade no relevo e o regramento causa dúvidas para o Sindicato dos Construtores Civis de Santa Maria. (Sinduscom-SM). “O Sinduscom propôs que fosse retirada a regulação pela cumeeira e permanecesse só uma das colunas [da lei] que fala da altura máxima. Isso vai permitir um pouco mais da altura aos novos prédios”, explica o arquiteto.
Segundo Pereyron, as discussões em torno do tema, esbarram em visões distintas do visual da preservação histórica, de criação de identidade: “Existem cidades onde há um entendimento de que os prédios que compõem o centro histórico devem possuir todos a mesma altura. Há também lugares onde os prédios históricos são mesclados aos prédios modernos e altos, como é o caso da cidade Buenos Aires.”
No entendimento de Francisco Queruz, presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria (COMPHIC-SM), “a forma como o texto está formulado desprotege a zona 2 – zona Histórica de Santa Maria” uma vez que a maior parte dos prédios não é tombado. Francisco acredita, que a novas modificações abrem brechas para “o centro inteiro ir abaixo, devido à especulação imobiliária”.
Já a arquiteta Márcia Barroso que também companha a discussão, explica que “os planos diretores podem definir áreas que sejam de interesse histórico onde há prioridade de preservação”. Segundo ela, o potencial histórico e cultural de Santa Maria deveriam ser aproveitados tanto pela gestão do município quanto pela iniciativa privada, a fim de gerar ainda mais lucro. “À exemplo do que já vem sendo feito em outras cidades brasileiras, a conservação do patrimônio Art Decó pode impulsionar o turismo local e a geração de renda”, defende.
Reportagem: Tainara Liesenfeld
Gráfico: Pollyana Santoro
Fotografia: Rafael Happke
Mapas: Márcia Barroso