Com a era industrial e o aumento das atividades, surgiu também a divisão do trabalho em turnos. Esse formato é uma forma de organizar o trabalho em jornadas, que podem ser em horários distintos do dia ou da noite, de maneira fixa ou em forma de rodízio. Na área da saúde, essa divisão é necessária para oferecer atendimento 24 horas – no entanto, estudos mostram que trabalhadores do turno noturno podem ter sua saúde e a vida pessoal comprometida.
Um estudo realizado em 2021 pela doutoranda em enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Ariane Cattani, constatou o predomínio de profissionais noturnos com má qualidade de sono e mais favoráveis ao surgimento de doenças.
A alternância do dia e da noite, denominada ritmo circadiano, é o que determina o ritmo biológico e realiza a oscilação satisfatória das funções corporais.. Como explica a doutoranda, que também participa do Grupo de Pesquisa em Saúde do Trabalhador, Trabalho e Bem Estar, esse ritmo é responsável pelos níveis elevados de atividade durante o dia, momento propício para maior disposição. O ciclo circadiano ainda é influenciado por fatores ambientais como a temperatura, clima e exposição luminosa, além de questões sociais como horário de serviço, horário de alimentação e outras atividades que fazem parte da vida cotidiana.
Os enfermeiros, médicos e demais trabalhadores da saúde que atuam durante a noite têm seu ciclo alterado. Alguns conseguem adaptar-se facilmente, já outros não. Isso pode ser explicado pelo cronotipo: cada indivíduo tem um diferente, o que significa que algumas pessoas são mais ativas durante o dia, e outras, à noite.
Cronotipo matutino: o pico de produção de melatonina ocorre antes da meia-noite. São indivíduos que precisam ir para a cama cedo e são mais ativos nas primeiras horas do dia. Em geral, dormem entre as 22h e 6h da manhã. Cronotipo vespertino: o pico acontece bem mais tarde, às 6h da manhã. São aquelas pessoas que rendem melhor à noite, mas precisam prolongar o descanso até o início da manhã. O horário de sono costuma ser entre 3h e 11h. Cronotipo intermediário: O pico de melatonina ocorre às 3h da manhã. Dormem geralmente entre meia-noite e 8h da manhã, mas se adaptam bem aos diferentes turnos de trabalho. |
Buscar compreender se você é matutino, vespertino ou intermediário pode ajudar a remediar efeitos do trabalho na vida pessoal. Ariane fala que a quebra do ciclo e a não adaptação aos horários podem elevar os níveis de cortisol – o hormônio do estresse -, o que gera consequências graves. Estressado, o profissional não atinge o desempenho esperado para sua função e aumenta as chances de erros ou acidentes de trabalho.
O trabalho noturno exige a privação do sono. Para muitas pessoas, isso pode ser prejudicial, uma vez que nem sempre conseguem repor as horas não dormidas durante o dia. Como informa Rosangela Marion Da Silva, enfermeira e docente do curso de enfermagem na UFSM, o sono diurno não tem a mesma qualidade do noturno. Isso se explica principalmente por fatores como alta luminosidade e barulho intenso. A melatonina, hormônio que também induz o sono, é responsável por administrar essa energia humana. Ela é liberada no escuro e determina em que momento do dia o indivíduo é mais produtivo ou desperto. Por isso, se torna difícil suprir as horas de sono perdidas durante a noite. A enfermeira ressalta que pequenos intervalos para cochilos durante o plantão são necessários ao profissional para evitar a exaustão.
Por que o sono é necessário?
Para Rosangela, dormir é fundamental para o correto desempenho das funções humanas: “Uma pessoa não consegue sobreviver sem dormir, esse descanso é indispensável e deve ser feito da forma adequada, criando uma rotina”. O sono é crucial para manter o equilíbrio psíquico, emocional e metabólico, restabelecendo a disposição para fazer as atividades do dia a dia. Segundo a docente, o sono é classificado como uma necessidade fisiológica. É por meio dele que o organismo consegue repor as energias para funcionar por completo.
O número ideal de horas de sono, suficiente para reparar as energias, costuma ser em média de seis a oito horas por dia. Para algumas pessoas, cinco horas são suficientes para enfrentar as tarefas diárias, mas outras passam o turno de trabalho cansadas se não dormirem o tempo adequado.
Consequências da falta de sono:
Mais que um horário diferente para as tarefas laborais, o turno da noite representa mudanças na secreção dos hormônios reguladores do sono e do estresse. De acordo com a doutoranda Ariane, que realizou sua pesquisa com trabalhadores do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), o indivíduo que não dorme pode apresentar sinais de cansaço, ansiedade, falta de disposição e nervosismo. Ariane também constatou que o descanso contribui para a alteração de humor, pois uma baixa qualidade do sono gera estresse e irritabilidade. Logo, o profissional sofre alterações no ciclo da melatonina, o que aumenta o risco de doenças graves. Isso acontece porque, ao trocar o dia pela noite, o ritmo biológico – relacionado à luz natural – é contrariado.
Ariane ressalta que todos os problemas gerados pela falta do descanso podem estar interligados, sejam eles físicos, mentais ou sociais. Dentre as consequências, ela destaca o aumento da vulnerabilidade a doenças coronarianas e cardiovasculares. O desenvolvimento dessas enfermidades gera danos aos principais vasos sanguíneos do coração, por isso requer atenção especial. Desconforto ou dor no peito e falta de ar podem ser sinais dessas doenças
O aumento de peso também é registrado em grande parte dos profissionais de enfermagem, como informa Ariane. Ela explica que, quando a pessoa está com sono, o corpo libera um hormônio chamado grelina, que estimula a fome e o consumo irregular de lanches durante a madrugada. Isso colabora para o aumento da massa de gordura. Em decorrência disso, a diabetes também é um problema recorrente nesse grupo de trabalhadores.
Sobre as alterações psicológicas, a doutoranda ressalta que a falta de sono afeta as funções cognitivas, que incluem a percepção, atenção, memória, pensamento, linguagem e aprendizagem. Essas funções estão localizadas no córtex frontal do cérebro, que é abastecido pelo sono. Com a falta deste, a cognição fica comprometida.
O ritmo acelerado e grande demanda de atenção exigidos ao profissional de enfermagem estimulam o estresse. Aliado a isso, a má qualidade do sono contribui para o aumento de cortisol, que facilita a irritabilidade. Os elevados níveis desse hormônio podem contribuir para a depressão, ansiedade e doenças cardiovasculares. Além disso, o cortisol em excesso também gera problemas de concentração e de memória, problemas digestivos, enxaqueca, aumento da pressão arterial, redução da libido sexual e fadiga.
Diversas outras alterações hormonais podem ser registradas em trabalhadores noturnos, assim, as reações são diferentes em cada indivíduo. Por esse motivo, Ariane ressalta que, em vários casos, é comum que o profissional se torne mais suscetível a infecções e tenha sua imunidade comprometida.
Higiene do sono: como praticar?
Ariane explica que existem métodos que podem melhorar a qualidade do descanso. A higiene do sono contempla um conjunto de ações a serem praticadas pelos profissionais de saúde, bem como outras pessoas afetadas pelo mesmo problema. Para a doutoranda, há ações institucionais que podem repercutir em uma assistência que melhore a qualidade de vida do indivíduo, como “ofertar espaços para que os trabalhadores possam se informar e discutir sobre os fatores que podem comprometer a sua saúde, com o objetivo de instrumentalizá-los para o cuidado de si”.
Intervenções socioeducativas para mudança de hábitos podem ser adotadas nas diferentes instituições para auxiliar esses trabalhadores. A doutoranda explica que gerar um ambiente agradável na hora de dormir, com atenção para temperatura e luminosidade é essencial para recuperar as horas perdidas durante o trabalho. Outra dica é não ingerir bebidas estimulantes como café ou álcool antes de dormir. Técnicas de relaxamento, que incluem canções e meditação também são aliadas nesse momento.
Apesar de o sono noturno não se igualar ao diurno, Ariane afirma que dormir durante o dia é importante para equilibrar o ciclo do indivíduo. Por isso, ela também recomenda a criação de uma rotina equilibrada durante o dia, que consiste em recuperar o sono, cuidar da alimentação e praticar exercícios físicos constantemente.
A pesquisa na UFSM
Em entrevista à Arco, Ariane conta sobre sua pesquisa realizada com 139 profissionais de enfermagem que atuam no HUSM, localizado dentro do campus da UFSM. Destes, cerca de 80% relataram péssima qualidade do sono e afirmaram não conseguir recuperá-lo completamente. A doutoranda e demais co-autoras do trabalho utilizaram do Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh para avaliar os efeitos do trabalho noturno. Com isso, constatou-se que 56,9% dos enfermeiros apresentam adoecimento físico em decorrência de seu trabalho, já 23% apresentam sinais de adoecimento psicológico e 27,3% relataram ter problemas sociais, o que sugere um precoce adoecimento social.
Rosangela Marion Da Silva também fez parte da pesquisa e percebeu que a privação do sono afeta aspectos físicos e mentais, funções cognitivas e emocionais, pode deprimir o sistema imunológico e provocar distúrbios metabólicos. Além disso, a falta do descanso necessário aumenta a secreção de cortisol, contribuindo para distúrbios gastrointestinais, peso corporal, distúrbio de comportamento, hipertensão e osteoporose, situações que podem estar relacionadas ao comprometimento da saúde do trabalhador do turno noturno.
Outra questão levantada durante a pesquisa foi a sobrecarga atribuída às mulheres devido às atribuições domésticas e familiares ainda prevalentes. Ariane menciona que a maioria das mulheres entrevistadas relatou sentir-se esgotada com tantas tarefas diárias, o que, aliadas às poucas horas de sono, contribuem para o esgotamento físico e mental. A conclusão da pesquisa foi de que a saúde do trabalhador que atua no turno noturno precisa ser (re)planejada por meio de ações institucionais e sociais que sensibilizem os profissionais para a importância do cuidado de si.
Expediente:
Reportagem: Tayline Alves Manganeli, acadêmica de Jornalismo e voluntária;
Design gráfico: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;
Relações Públicas: Carla Costa;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.