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Dossiê Mudanças Climáticas: Segurança alimentar em xeque

Eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos afetam a produção mundial de comida e intensificam a insegurança alimentar em comunidades locais



Milho, soja, feijão, arroz, leite, carne bovina e frango tiveram aumento significativo de preços em 2022. Além da crise econômica, os eventos climáticos extremos que atingiram o Brasil em 2021 e 2022 também são motivos do maior custo dos alimentos. Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro registraram enchentes com centenas de mortos, de acordo com o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres do Ministério do Desenvolvimento Regional (S2ID/MDR). Além disso, no sudeste e sul do país, principalmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul, a ausência de chuvas provocou uma estiagem severa que, no estado gaúcho, é a segunda maior já registrada, de acordo com o Monitor de Secas do Brasil, da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Tanto o excesso quanto a falta de água afetam a produção de alimentos: a agricultura funciona por meio de ciclos e de cadeias de produtividade e, caso haja desequilíbrios em alguma etapa, a safra pode ser prejudicada. De acordo com o relatório de 2021 do Painel Intergovernamental sobre o Clima (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), com a intensificação dos fenômenos das mudanças climáticas, a produção de alimentos brasileira será menor, principalmente em função da maior frequência dos eventos climáticos extremos, como secas, enchentes e incêndios.

Para Dilson Bisognin, professor no Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o aumento da temperatura impacta todas as populações de plantas, inclusive no crescimento de patógenos – como bactérias, fungos e vírus – e plantas daninhas mais resistentes, além de afetar os animais. “Qualquer mudança no ambiente vai afetar a vida do planeta. Mínimas mudanças têm um enorme efeito nas populações. Por exemplo, em 2022, os meses de restrição hídrica tiveram um enorme impacto nas plantas e microorganismos”, explica o docente. Segundo o relatório “Mudanças Climáticas e Eventos Extremos no Brasil”, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), durante os últimos 50 anos, a América do Sul teve ampliação de intensidade e frequência dos eventos climáticos extremos. Isso aumenta os custos econômicos e sociais e impacta principalmente os setores da agricultura, da geração de hidroeletricidade, os centros urbanos e a biodiversidade.

4 pilares

A segurança alimentar se baseia em quatro pilares: disponibilidade, utilização, estabilidade e acesso.

Com base em dados do relatório do IPCC 2020 – 2021.

DISPONIBILIDADE

Resultado dos processos de produção, armazenamento, processamento, distribuição e troca de alimentos. Se a produção é afetada, as outras etapas também serão. Em uma estiagem, a ausência de água na produção pode acarretar, por exemplo, a falta de tomate na prateleira do supermercado.

UTILIZAÇÃO

Modo como se utilizam os alimentos (envolve a composição nutricional, a preparação e a qualidade). As mudanças climáticas influenciam o modo como os alimentos serão consumidos. Na safra de tomate prejudicada pela estiagem, a pouca disponibilidade eleva os preços, o que impacta a capacidade de compra das pessoas, que deixam de consumir o alimento.

ESTABILIDADE

Capacidade das pessoas em acessar e usar alimentos diariamente. Em um cenário de aumento do preço dos alimentos, que é intensificado pelos eventos climáticos extremos, uma família de média ou baixa renda pode não ter dinheiro para comprar comida de qualidade todos os dias.

ACESSO

Capacidade de obter comida com preços acessíveis. Os itens mais afetados com o aumento de preços costumam ser os cereais e produtos de origem animal. O acesso influencia a estabilidade alimentar.

Sistemas produtivos

Os últimos relatórios do IPCC, inclusive o de 2022, apontam que as mudanças climáticas podem afetar diferentes sistemas produtivos, como a pecuária, a polinização, a aquicultura e a agricultura familiar (veja detalhes na próxima página). Além disso, são os locais mais vulneráveis que têm maior possibilidade de serem atingidos pelos efeitos de eventos climáticos extremos. “Os alimentos, nos últimos tempos, têm sido encarados enquanto mercadoria e não são produzidos com a finalidade de consumo e de alimentar as pessoas”, argumenta Cleder Fontana, docente no Departamento de Geociências da UFSM e líder do Núcleo de Estudos em Geografia, Agricultura e Alimentação (NUGAAL). Ou seja, a produção de commodities – em grande escala, como os grãos – deve continuar crescendo globalmente e gerar riscos à segurança alimentar, devido à conversão de áreas produtoras de alimentos em áreas produtoras de matéria-prima para os agrocombustíveis.

Efeito cascata

De acordo com Juliano Barin, docente no Departamento de Tecnologia e Ciência dos Alimentos da UFSM, elementos como os insumos, a água, o solo e o trabalho humano também são parte integrante dos sistemas produtivos alimentares. “São cadeias que estão interligadas. Por exemplo, o milho é muito usado para ração animal. Então, se tiver uma quebra na produção do milho, o preço da carne vai aumentar, especialmente a de frango. Qualquer alteração climática que tenha uma quebra na produção vai impactar em efeito cascata”, explica.

1. Quando há estiagem, a safra de milho é prejudicada (tanto para a colheita do grão quanto para o corte da planta).

2. Para o gado, a ração e a silagem (milho picado e fermentado) tem custo maior e menos qualidade. O frango também é afetado, a ração, que é a base da alimentação, é feita de milho, cujo custo fica maior.

3. Com isso, os preços do leite, dos ovos, da carne de gado e de frango aumentam. Nos supermercados, nem todas as pessoas conseguem adquirir estes e outros itens básicos da alimentação.

Insegurança alimentar e fome

Somente no Brasil, são mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, de acordo com dados do 2º inquérito sobre insegurança alimentar produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Conduzida em 2022,
a pesquisa mostra que só quatro a cada dez famílias têm acesso pleno à alimentação. Os números altos mostram um cenário preocupante. Os relatórios do IPCC alertam que a insegurança alimentar e a fome podem aumentar com o cenário de maior frequência
e intensidade dos eventos climáticos extremos. No entanto, para Cleder Fontana, é preciso cautela na análise, uma vez que a fome não é causada apenas pelas mudanças climáticas. “Temos que pensar que a fome é um problema, sobretudo, político. E quando fazemos a relação de mudanças climáticas, aquecimento global e fome, corremos o risco de dar uma explicação simplista, de que a fome é um problema que deriva de uma condição natural, apesar de que os dois problemas guardam similaridades, pois ambos são sociais”, alerta. O docente reforça que abordar outros aspectos que causam a fome e a insegurança alimentar não vão contra o consenso científico da existência das mudanças climáticas e seus efeitos.

Mesmo assim, de acordo com estudos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as mudanças climáticas vão impactar, de forma negativa, os pilares da segurança alimentar. De acordo com o IPCC e a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCDD), os mais afetados serão os produtores e consumidores de baixa renda, principalmente por conta da ausência de recursos que possibilitem o investimento em adaptações, tanto em sistemas produtivos quanto no consumo. “Com certeza pode afetar as populações e produções locais, que abastecem as pessoas com alimentos, especialmente no contexto em que as pessoas não têm recursos financeiros para comprar”, afirma Cleder.

Insegurança alimentar e fome

Com base em dados do relatório do IPCC 2020 – 2021.

PECUÁRIA: impactado pela combinação de temperaturas mais altas, a variação da precipitação, a concentração de
dióxido de carbono atmosférico (CO₂) e a disponibilidade da água. Consequências são a diminuição da oferta e o aumento do preço de carnes, problemas na reprodução, na saúde animal e na qualidade das pastagens, além do aumento de doenças.

AGRICULTURA FAMILIAR: eventos como estiagens e inundações, principalmente, impedem a produção de alimentos que, muitas vezes, são, além da única fonte de renda, também a fonte alimentar das famílias do campo.

POLINIZAÇÃO: afetado, principalmente, pelo aumento de patógenos mais virulentos, como o fungo Nosema cerana, que se prolifera em temperaturas mais altas.

AQUICULTURA: inundações trazem perda na produção, mais risco de doenças, algas tóxicas e parasitas, aumenta o risco de eutrofização (ausência de oxigênio na água, que leva à morte de plantas e animais) e pode provocar a escassez das sementes silvestres.

Insegurança alimentar e fome

Em documento de 2021, o IPCC alerta que ao menos um terço da produção de alimentos está em risco como resultado do aquecimento
global. Apesar de a agricultura familiar figurar como a mais afetada pelas mudanças climáticas, o agronegócio não fica de fora. Dilson Bisognin concorda com essa afirmação e alerta que, uma vez que há alterações em pragas e doenças de plantas, que se tornam mais resistentes, cultivares mais adequadas devem ser desenvolvidas, tanto para cenários de temperaturas mais altas quanto para o enfrentamento dos patógenos. O docente ainda afirma que o cenário brasileiro é preocupante, uma vez que houve redução e restrição de recursos para a ciência e o desenvolvimento tecnológico. “Nós vamos ter que ter uma preparação a longo prazo, e nós não temos uma preocupação a longo prazo. Vamos ter muita dificuldade em ter pessoas qualificadas, tecnologia e ciência para dar resposta a isso. A partir
do momento que se tira recurso da ciência e da tecnologia, está atrasando toda a resposta”, evidencia Dilson.

Um exemplo de como os eventos climáticos extremos afetam o agronegócio está na estimativa feita pela Associação das Empresas Cerealistas do Estado do Rio Grande do Sul (Acergs) em maio de 2022: 65% da safra de milho do ano foi comprometida, o que corresponde a uma perda de quatro milhões de toneladas e R$ 6,3 bilhões. Na soja, a redução da produção no mesmo período é de 48,7% (10,2 milhões de toneladas ou R$ 32,4 bilhões), de acordo com a Rede Técnica Cooperativa (RTC), filiada à Cooperativa Central Gaúcha Ltda (CCGL). No entanto, o setor do agronegócio tem mais recursos para lidar com o cenário, principalmente por meio do uso e desenvolvimento de tecnologias. Para Dilson, apesar de ser fundamental, a tecnologia não pode ser a única solução para a problemática. “A tecnologia é excludente, e as mudanças climáticas vão favorecer e justificar novas tecnologias”, afirma. Para o docente, a agricultura familiar é mais afetada pelos eventos climáticos extremos já que tem menos recursos financeiros para investir em tecnologia. 

Em 2010, Dilson coordenou um estudo no Departamento de Fitotecnia sobre os efeitos da evolução das temperaturas no cultivo de batatas. Na época, a conclusão da pesquisa já apontava que o aumento do CO₂ e de temperatura resulta em consequências para este cultivo, como o menor crescimento da planta, redução do ciclo de desenvolvimento, menor produtividade e mais risco de doenças. “A grande resposta desses estudos é mostrar qual é o impacto que pode ter uma alteração muito pequena de temperatura, que vai causar grandes consequências, porque ela afeta todas as populações de seres vivos. Vão surgir novos patógenos, cada vez mais difíceis de serem controlados porque eles vão chegar em um ambiente que está em desequilíbrio”, destaca Dilson. O docente também afirma que hoje, mais de dez anos depois, o cenário é diferente e que, na época em que desenvolveu a pesquisa, havia mais possibilidades e condições de remediação das consequências. “Estamos muito atrasados”, pontua.

Outro estudo que mede esses impactos foi desenvolvido no campus da UFSM de Cachoeira do Sul. Com as estimativas de crescimento de temperatura de 1º a 1,5º, a produção leiteira no Rio Grande do Sul pode diminuir até cinco litros por dia. “À medida que aumenta a temperatura, vai aumentar o calor e o estresse calórico e, no verão, vai ter muito prejuízo na produção de leite”, afirma Zanandra Boff de Oliveira, docente do curso de Engenharia Agrícola na UFSM Cachoeira do Sul.

Para a pesquisadora, apesar de ter uma cadeia mais desafiadora, a produção não vai diminuir: “Vamos conseguir avançar para encontrar a melhor forma de produzir diante desse contexto. Talvez com aumento de custo, mas não um desequilíbrio. Não acredito que vai faltar produto. Vamos evoluir junto com o problema”. Soluções possíveis seriam sistemas de pastoreio com mais sombras ou galpões de alimentação com ventilação para a redução do estresse corporal, tipo de construção que demanda investimento.

Reportagem: Samara Wobetto
Diagramação: Evandro Bertol
Ilustrração: Noam Wurzel.

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