A jornada de trabalho de um professor não acaba junto ao término do expediente. Preparar materiais, corrigir provas e organizar os conteúdos das disciplinas são apenas alguns dos afazeres para além do espaço físico da sala de aula. Além disso, os baixos salários, os parcelamentos, a carga horária excessiva e os ataques referindo-se aos professores como ‘doutrinadores’ são questões que afetam tanto a vida pessoal, quanto a saúde mental dos profissionais.
A pandemia da Covid-19 somou-se aos desafios enfrentados pelos professores. Assim como para os alunos, a sala de aula teve de ser substituída pelo escritório, pelo quarto ou até mesmo pela cozinha dos docentes. Com o distanciamento social, as adversidades aumentaram: a falta de recursos para ministrar aulas remotas; a sobrecarga de trabalho – pela necessidade de auxiliar alunos nas redes sociais após o fim do expediente; o uso excessivo de telas e, em alguns casos, a dificuldade para utilizar as plataformas digitais. Tudo isso aliado, possivelmente, à preocupação de perder o emprego – como é o caso de docentes de escolas privadas – e também a problemas financeiros familiares decorrentes da pandemia.
Foi a partir desse contexto e das suas consequências na saúde mental dos profissionais da educação que a professora Naiana Dapieve Patias, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e Elenise Abreu Coelho, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM, desenvolveram o projeto de extensão “Trabalho e saúde mental dos professores durante e após a pandemia de Covid-19”.
A iniciativa surgiu a partir das mudanças ocorridas no projeto de pesquisa da Elenise em decorrência da pandemia. A investigação agora consiste em avaliar as características de trabalho dos docentes relacionados à saúde mental – sobretudo, com a síndrome de burnout ou síndrome do esgotamento profissional, um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico. A pesquisa foi desenvolvida por meio de uma coleta online em nível estadual com professores da rede básica – que engloba a educação infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.
A mestranda comenta que, ao aprofundar-se no assunto, percebeu a necessidade de um espaço de escuta e de fala para os docentes. Diante disso, o projeto começou a realizar rodas de conversas de forma online, focado no tema “ser professor(a) durante a pandemia: desafios e possibilidades”, sendo uma forma de acolhimento para os profissionais.
Espaço de escuta e acolhimento
As ações, que seguem até hoje no formato remoto, começaram a ser colocadas em prática em dezembro de 2020. As atividades são desenvolvidas na plataforma Google Meet, com escolas que manifestem interesse em participar do projeto. Diante disso, duas instituições, uma da rede pública e outra da rede privada, de duas cidades da região central do estado do Rio Grande do Sul já participam das ações. Abrangendo 15 profissionais da educação infantil ao nono ano do fundamental, sendo 12 mulheres e 3 homens.
O projeto possui duas fases: a primeira já está acontecendo por meio das rodas de conversa e a segunda consiste na realização de grupos com professores a partir de encontros temáticos estruturados com base nas principais demandas apresentadas. Elenise relata sobre a primeira roda de conversa e o quão importante foi escutar os docentes, “muitos deles comentaram sobre a questão da volta às aulas, como ninguém escutou a opinião deles. Então, a nossa ideia é justamente proporcionar esse espaço de escuta e de acolhimento”.
O artigo “Saúde mental docente e intervenções da Psicologia durante a pandemia” de autoria de Elenise e de Naiana, em conjunto com Ana Claudia Pinto da Silva e Tais Barcellos Pellegrini, apresenta diversas questões apontadas pelos docentes nas rodas de conversa, realizadas nessas duas escolas. Nesse sentido, aspectos como a adaptação às aulas remotas, a relação com a família dos alunos, a transformação do domicílio em espaço de trabalho e as implicações na saúde mental são alguns dos fatores destacados pelos profissionais.
Diante disso, vale ressaltar as diferentes demandas entre escolas públicas e privadas. Na rede pública, a sobrecarga dos docentes somou-se à preocupação e ao sentimento de impotência em relação às dificuldades de acesso dos estudantes às aulas online. A vulnerabilidade social já era existente, mas foi ainda mais exposta pela pandemia e não afetou apenas o ensino-aprendizagem dos alunos em decorrência da falta de recursos tecnológicos: a alimentação de qualidade é um fator importante para o desenvolvimento intelectual. Com as escolas fechadas e a crise econômica do país, a insegurança alimentar tem se destacado entre os fatores de disparidade social.
Durante as conversas, Elenise ressalta que as professoras perceberam quando alguns familiares iam até a escola para retirar o material dos filhos com o intuito de saber se não havia distribuição de cestas básicas. “Quando falamos da profissão docente, estamos nos referindo a uma profissão com componente afetivo e relacional muito forte – entre professor e aluno. Então, quando falamos no contexto pandêmico – com as desigualdades socioeconômicas -, isso também gera um desgaste muito grande para o professor”.
Já na instituição privada, foi ressaltada a alta exigência das famílias dos estudantes em relação às atividades escolares, junto com a falta de compreensão da realidade de cada profissional. Todavia, é apontado também que o contexto permitiu aos docentes conhecer o dia-a-dia das famílias, proporcionando um entendimento maior sobre cada aluno.
“Estou presenciando várias dificuldades, pois muitos estudantes não possuem acesso a dispositivos eletrônicos ou às vezes quando possuem é apenas um, no qual há necessidade de compartilhar com os outros irmãos ou familiares. Não tive experiências positivas, pouca adesão”*.
“Uma coisa que eu vejo é que é muito difícil contar com a colaboração dos pais. Os pais às vezes parecem que não entendem que a gente está fazendo o nosso melhor, estão sempre exigindo e exigindo porque pagam. Parece que não tem uma compreensão com esse momento”.
“Eu acho que a vantagem foi que a gente também pôde conhecer a família dos nossos estudantes. Porque às vezes a gente não entende e até interpreta o comportamento de um aluno de forma equivocada, quando a gente entra na casa dele e vê como são as relações da família, a gente entende muita coisa”.
Trabalho e saúde
Segundo dados do Censo Escolar de 2017, divulgados pelo Ministério da Educação, 80% de todos os docentes da rede básica de ensino são mulheres. No decorrer das rodas de conversas, Naiana comenta que percebeu a problemática relacionada às questões de gênero: “mulheres historicamente possuem uma sobrecarga maior. E, no relato das professoras, o que nós escutamos é que elas estão exaustas. São mães também, possuem o trabalho remoto e, muitas vezes, precisam acompanhar os filhos nas atividades escolares, cuidar das tarefas da casa ou até mesmo ajudar algum familiar doente”.
“Para mim foi bem difícil, porque eu tenho um filho pequeno que precisa de mim para tudo. Ele também não estava indo para a escolinha, então como eu estava em casa, ele achava que eu estava ali disponível para ele. […] Além das demandas da escola, dos alunos e dos pais e/ou cuidadores destes alunos, tenho minha mãe que reside comigo, ela é idosa e depende muito do meu auxílio”.
Além de todos esses fatores, os períodos de lazer tornaram-se raros na rotina dos profissionais da educação. A transformação do local de descanso para um espaço de trabalho, juntamente ao uso excessivo de computadores e de celulares, contribuiu para o aumento do esgotamento mental.
Vale ressaltar a importância de momentos de descontração e de autocuidado durante a semana, os quais permitem diminuir o estresse e a ansiedade da rotina de trabalho. “Nas rodas, escutamos relatos de como é bom para eles aquele momento. Nós, enquanto seres humanos, queremos dar conta de tudo. Vamos trabalhando e esquecendo da nossa saúde mental. E é nesses momentos de fala que os profissionais se dão conta que durante a rotina eles não possuem esse espaço de conversar sobre suas dificuldades, seus sentimentos. Enfim, as rodas proporcionam isso.”, reflete Elenise.
“A gente não consegue desligar, não tem aquela separação […]. Eu montei um escritório aqui no meu quarto, comprei um quadro, está tudo aqui. Então parece que estou sempre ativo, à disposição do meu trabalho”
“Estou trabalhando 15 horas por dia ou até mais, isso é bem desgastante psiquicamente […] passei a tomar medicação para ansiedade. […] quase “surtei”, pois queria abraçar o mundo”.
Valorização da educação
Diante do cenário de retomada às aulas presenciais na maior parte do país, vale ressaltar que as preocupações apresentadas pelos docentes são em relação aos descumprimentos dos cuidados sanitários por parte dos alunos: falta de distanciamento, uso incorreto da máscara e a não utilização de álcool em gel. Os estudantes, em sua grande maioria, ainda não receberam nenhuma das doses da vacina, assim estão mais suscetíveis a contaminar-se e, por consequência, transmitir o vírus.
É importante lembrar que mesmo com a retomada para o presencial, a pandemia ainda não acabou. Os efeitos na saúde mental vão continuar presentes, pois envolvem tanto fatores da vida pessoal, quanto externos, como aqueles relacionados à situação socioeconômica e sanitária do país. “O professor é a referência da criança, depois da família. A criança e o adolescente os enxergam como um super-homem, uma mulher maravilha. É importante lembrar que, antes de serem professores, são pessoas com uma vida privada que cometem erros e acertos”, reflete Naiana.
Posto isso, integrantes do NEDEFE realizaram cartilhas – “Profissão professor(a) durante a pandemia da Covid-19” e “Ser professor em tempos de pandemia” – para auxiliar na saúde mental dos docentes. Nelas são descritas dicas de organização para ajudar na diminuição da sobrecarga do trabalho, lembram da necessidade de momentos de lazer e apresentam a importância do professor para a sociedade.
*Os relatos foram retirados do artigo e não são identificados para assegurar o sigilo da identidade dos professores.
Expediente
Reportagem: Eduarda Paz, acadêmica de Jornalismo e voluntária da revista Arco
Ilustração: Yasmin Faccin, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista
Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes, estagiária de Jornalismo e bolsista; e Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas