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Restauração ecológica na UFSM a partir da cosmovisão Kayapó

A recuperação das APP’s no campus com o uso de uma perspectiva indígena



Se você circulou pelo campus sede da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) recentemente, deve ter visto placas como essa da foto em alguns lugares, como perto do prédio da Reitoria e do Hospital Veterinário. Conforme o Código Estadual do Meio Ambiente e a Lei Florestal Federal – legislações que regulamentam a preservação do meio ambiente -, as Áreas de Preservação Permanente (APP’s) são espaços, cobertos ou não por vegetação nativa, localizados em zonas rurais ou urbanas, que têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos (como as águas superficiais e subterrâneas), a paisagem, a estabilidade do relevo e a biodiversidade de um local. Além disso, elas têm a capacidade de facilitar o fluxo gênico – transferência de genes entre populações – da fauna e da flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. As APPs também abrigam uma enorme biodiversidade e são responsáveis pela preservação de recursos hídricos e geográficos.

Fotografia horizontal e colorida de uma placa em frente à arvores e ao lado de uma ciclovia. A placa está no lado esquerda da imagem, tem pés altos, é horizontal. Tem fundo branco, faixas verde escuras e texto em preto: "Área de Preservação Permanente (APP). Proibido destruir, danificar, invadir, desmatar, jogar lixo ou entulho. Sujeito À multa e detenção. Lei Federal nº 9605/98". Ao fundo da placa, início de floresta com árvores em vários tons de verde. Do lado direito da placa, faixa de ciclovia em meio a gramado e árvores.
Foto: Estevan Garcia Poll

Dada a importância desses espaços, a preservação e recuperação das APPs são fundamentais para que os habitats degradados ou danificados por ação antrópica sejam renovados. No entanto, deve existir um cuidado extra quanto às práticas de interferência em ecossistemas naturais ao se tratar das Áreas de Preservação Permanente, já que elas são extremamente ricas para o meio ambiente. De acordo com o Engenheiro Florestal e mestre em Engenharia Agrícola pela UFSM, Matheus Gazzola, a restauração ecológica é uma ferramenta estratégica para atenuar os impactos gerados pelas ações humanas nos ecossistemas.

Projeto inovador de restauração ecológica no campus

Para Renato Záchia, professor do curso de Ciências Biológicas da UFSM, a importância da existência de Áreas de Preservação Permanente está na necessidade de preservar as interações que ocorrem entre os seres vivos e o ambiente. O docente salienta que as APP’s são locais específicos para manter essas interações e evitar distúrbios, como enchentes, alagamentos e desequilíbrio de espécies. Záchia explica que, muitas vezes, a cultura humana exerce um comportamento dominador e destrutivo sobre os ecossistemas.

 

O professor idealizou, em 2007, um projeto com alunos moradores da Casa de Estudante (CEU II) e participantes da Casa Verde (que é hoje o Comitê Ambiental) cujo objetivo era plantar árvores com fertilizantes originados na compostagem feita pelos próprios estudantes, a fim de restaurar as áreas no entorno dos córregos do campus. Inicialmente, foi feita a identificação dos quatro braços principais do ‘Lagoão do Ouro’, uma grande sanga que liga a parte norte a sul da UFSM. Os braços  foram batizados pelo professor de ‘Braço do Tambo’, ‘Braço Cohab Fernando Ferrari’, ‘Braço Jardim Botânico’ e ‘Braço da Olaria’. Záchia ressalta que os nomes condizem com os locais em que eles se originam e enfatiza a importância de nomear os córregos para facilitar a proximidade deles com o público.

Descrição da imagem: desenho vertical e colorido de um mapa fluvial em tons de marrom. Há um rio que é apontado no mapa e que cruza toda a extensão dele. Na parte superior, há o 'Braço Cohab'. Abaixo, já no território da UFSM, há o 'Braço Botânico'. Abaixo, dois recortes de imagens em moldura circular. A primeira, na esquerda, tem árvores e um rio. A segunda imagem tem uma placa de área de preservação ambiental em detalhe. Abaixo, os braços 'Tambo' e 'Olaria'.
Mapa fluvial. Arte: Daniel Michelon de Carli.

A seguir, ainda em 2007, a partir das disposições do Código Florestal Brasileiro e com o intuito de impedir as capinagens em torno dos córregos, o professor determinou que o início do trabalho seria nas matas ciliares – vegetação próxima a corpos d’água – e solicitou autorização à Prefeitura de Santa Maria e à Reitoria da Universidade para dar continuidade ao projeto. Então, ele tomou a decisão de basear-se em pesquisas de etnobotânica – estudo da relação existente entre sociedades humanas e plantas – feitas principalmente pelo antropólogo e biólogo estadunidense, Darrell Posey, com povos indígenas do Pará, os Kayapó.

 

Assim, a partir de uma proposta comunitária e colaborativa e com o auxílio de funcionários da Sulclean, da Pró Reitoria de Infraestrutura (Proinfra) e dos estudantes, no ano de 2007 foram plantadas mudas e sementes e colocados restos de matéria orgânica nas matas ciliares próximas ao prédio da Reitoria, que compõem uma parte do bosque que existe até hoje, com o objetivo social de que as pessoas abraçassem a ideia do plantio de árvores e da proteção de áreas degradadas, por ser uma área de alta circulação da comunidade. 

 

“Os povos originários tratam a questão ambiental como um prolongamento da dimensão humana”, explica Záchia. A concepção da natureza para os Kayapó têm como base pensar na cosmovisão de que o planeta é um ser vivo e de que os humanos são elementos que integram esse ser único. 

 

No ponto de vista do professor, não há quem seja superior ou inferior e tampouco há espaço para a colonização de espaços, ou seja, ele considera que as práticas de restauração de ecossistemas dos Kayapó são decoloniais – não perpetuam a dominação de territórios: “A postura dos indígenas deixa de ser de dominação – em que se precisa conhecer e dominar – e passa a ser de contemplação.”

 

Em relação ao comportamento dos Kayapó reproduzido na UFSM, é importante ressaltar que a aldeia observada no Pará ficava em um ecótono – região entre ecossistemas distintos-, diferentemente do que ocorre no campus em Santa Maria, o que fez com que a experiência tivesse de ser adaptada para um novo ambiente. Na Universidade, o professor precisou lidar com outro tipo de bioma e teve que tratar com fatores restritivos, como a aplicação do processo restaurativo em até oito metros de distância da borda dos córregos, ou seja, ele precisou aplicar as técnicas em um espaço menor do que o esperado.

 

O processo integrado com a natureza dos povos originários é lento e engloba a contemplação e a observação da natureza, distinto da postura de dominação exercida pelos povos ocidentais. “Eles juntavam toda a serrapilheira da floresta, que são os animais, plantas, fungos e todos os restos de seres vivos mortos, principalmente troncos de árvores, fragmentavam-os e faziam montes, que eles chamavam de Apêtês, na língua Mebêngôkre, que é como eles se autodenominam”, explica Záchia sobre o comportamento dos povos originários paraenses e aplicado no campus da UFSM. Os Apêtês eram colocados por mutirões em espaços a serem restaurados, formando ilhas de vegetação lenhosa.

 

Esse modelo se assemelha aos Sistemas Agroflorestais Sintrópicos, que reúnem as plantações agrícolas com as plantas que integram a floresta, como no estudo do pesquisador suíço Ernst Götsch. Uma das diferenças do sistema dos Kayapó para o do Götsch é que os indígenas não utilizam a poda para acelerar o processo, e esta também não foi aplicada no projeto na Universidade.

 

Renato Záchia também ressalta a importância de futuramente haver um trabalho transdisciplinar, tanto para que a comunidade acadêmica possa conhecer e observar as APP’s,  quanto  para que os estudantes adotem comportamentos que ajudem na manutenção desses locais, com a base em um interesse coletivo e não em uma norma institucional.

 

O papel da Proinfra

O Setor de Planejamento Ambiental da Pró-Reitoria de Infraestrutura (Proinfra) é o órgão responsável  por tratar das questões ambientais da UFSM. De acordo com a assessora de gabinete do setor, Marilise Mendonça Krügel, no que diz respeito às Áreas de Preservação Permanente, o órgão tem a responsabilidade de conduzir todas as ações relacionadas à proteção e à conservação delas em cumprimento à legislação ambiental vigente.

 

“O levantamento das APP’s foi realizado para o licenciamento ambiental do campus sede em 2014”, explica Marilise. Ela também informou que, na primeira etapa, uma empresa especializada em consultoria ambiental fez a análise topográfica (avaliação das características do terreno), e indicou os locais onde estavam localizadas as nascentes e os cursos d’água. Em seguida, foi feito o trabalho de campo para confirmar esses dados e, então, as APP’s foram demarcadas a partir de um software de sistema de informação geográfica.

 

Na UFSM, que tem uma área total de 1188 hectares, são 297,2 hectares de APP’s. Enquanto 152,3 hectares de APP’s que estão em conformidade com a legislação nacional, outros 144,9 necessitam de restauração. Dessa forma, há urgência em restaurar essas áreas degradadas, o que pode ser feito colocando-as entre vegetação arbustiva/arbórea ou espaços úmidos.

 

Existe um projeto em andamento referente à recomposição das APP’s, que é fruto de um convênio entre a UFSM e a empresa Sustentasul, que trabalha com um planejamento de restauração ecológica que será usada para recompor a vegetação nativa nos 144 hectares de Áreas de Preservação Permanente da Universidade. Em outros momentos, certos órgãos da UFSM já tentaram implantar projetos de recomposição das áreas, mas a maioria não teve progresso ou engajamento da comunidade.

 

Como aponta Marilise, é importante que a comunidade universitária tenha clareza de que as APP’s são áreas protegidas por lei e atuam na proteção dos recursos hídricos e do solo, na manutenção da biodiversidade e, além disso, são corredores ecológicos. “A nossa relação com as APP’s deve ser de cuidado e proteção. A interação das pessoas com estas áreas deve ocorrer de tal forma que não produza impactos ambientais negativos, como o descarte de resíduos, a retirada de plantas ou qualquer prejuízo à fauna”, finaliza Marilise.

 

Expediente:

Reportagem: Isadora Pellegrini, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Fotografia: Estevan Garcia Poll;

Design gráfico: Daniel Michelon de Carli;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição geral: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas.

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