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Entre lutas e estereótipos: a resistência de agricultores familiares e a relação com o consumo de mídia

Acadêmico da UFSM analisa o consumo de mídia e a forma como as questões relacionadas à classe social estão presentes no dia a dia do meio rural



As famílias que moram no meio rural cada vez mais congregam diferentes formas de se comunicar, seja através do rádio – companheiro em um canto do galpão -, da televisão que reúne a família na hora do almoço, ou então do celular, usado como instrumento de comercialização de verduras e legumes e também como ferramenta de pesquisa para as decisões da propriedade, 

 

Essa comunicação se mostrou em transformação durante os dois anos de pandemia. A incorporação das tecnologias digitais no cotidiano dos agricultores familiares foi acelerada. O celular e os aplicativos de mensagens passaram a fazer ainda mais parte das atividades diárias. As rotinas mudaram, e alguns agricultores passaram a fazer reuniões com colegas feirantes diretamente da propriedade através de uma vídeo-chamada. Os jovens não tinham mais aulas na escola, mas dentro do quarto ou na cozinha de casa, dividindo os sons do meio rural com as lições passadas pelos professores através de plataformas online.

Descrição da imagem: Ilustração horizontal e colorida de um agricultor ao lado de uma plantação. Ele está na direita da imagem, sentado de costas em uma cadeira de madeira, e segura um celular preto touchscreen nas mãos. Na tela, um feed de notícias. Do celular, três balões de representação de fala com símbolos dentro: um "i", uma moeda e três pessoas interligadas por uma linha triangular. Ele tem pele branca, olhos escuros, cabelos castanhos, veste camisa xadrez verde e branca, calça azul marinho, botas pretas e usa um chapéu de palha na cor dourada. Ao lado direito, sobre um banco de madeira redondo, um rádio vermelho. Ao lado esquerdo da imagem, plantação em seis carreiras de terra, com plantas recém nascidas na cor verde. Ao fundo, em um morro, uma casa vermelha com duas janelas. Aos lados da casa, árvores e arbustos em verde escuro. O gramado é na cor verde claro. Em frente a porta da casa, um caminho de terra. Ao fundo, o céu azul e, no canto superior direito, o sol amarelo.

Da mesma forma, vimos os meios de comunicação se tornarem ainda mais importantes no compartilhamento de informação, principalmente sobre as formas de prevenção ao coronavírus. Por outro lado, os mesmos meios se tornaram alvos de críticas por parte dos pesquisados, na medida em que os informantes diziam “ora, só falam disso”, ao se referirem à cobertura da pandemia, que ocupava parte da programação diária dos veículos de comunicação. 

Se, por um lado, as relações dos agricultores familiares com os meios de comunicação ganharam novos contornos, alterando em certo ponto o consumo de mídia, por outro, as leituras feitas por eles da forma como a mídia representa o rural pouco ou nada mudaram em relação às pesquisas anteriores que investigam o tema. A mídia é apontada como o principal caminho para alcançar visibilidade à agricultura familiar perante os governos e, ainda, como uma esperança para que a sociedade reconheça o trabalho feito no meio rural. Mas também é vista como algo que acentua as dificuldades do setor, ao evidenciar aspectos negativos, como pautas vinculadas a desastres ambientais, períodos de seca e quebra na produção, o que, segundo eles, reforça uma imagem negativa do trabalho no meio rural.

Além de compreender o consumo de mídia por famílias do campo, nos desafiamos a investigar como o meio em que essas famílias estão inseridas pode determinar as formas como a informação, a propaganda e os mais diversos tipos de conteúdos são consumidos. O trabalho resultou na dissertação “O consumo de mídia por agricultores familiares e as mediações de classe social e Economia Solidária”, apresentada por mim em abril de 2021 ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria, com orientação da professora Veneza Mayora Ronsini.

 

Utilizamos a teoria das mediações, proposta pelo colombiano Jesús Martín-Barbero, que nos ajudou a perceber como cada mediação atua no cotidiano, na construção da identidade de classe dos agricultores familiares e também como ocorre o consumo de mídia. Nossos informantes foram participantes do Projeto Esperança Cooesperança de Santa Maria, um movimento social em que centenas de agricultores familiares, artesãos, quilombolas, indígenas e tantos outros estão há mais de 30 anos. A iniciativa, baseada no modelo de Economia Solidária, nos chamou atenção pelo modo de organização e foi ali, em um movimento organizado, que procuramos os nossos informantes. Queríamos compreender qual é o papel do consumo de mídia mediado pela Economia solidária e pela classe social na formação da identidade de classe desses agricultores familiares.

O que são mediações? 
Podem ser entendidas como os lugares que estão entre a produção do conteúdo midiático e a recepção por quem consome qualquer meio de mídia. O autor colombiano sugere que são três lugares de mediação que interferem e alteram a maneira como os receptores recebem os conteúdos midiáticos: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. As mediações são os lugares em que a cultura se concretiza, mudando o modo como os receptores absorvem a mensagem dos meios.

Resultados

Como toda pesquisa, seguimos um rigor metodológico que, em função da pandemia do coronavírus, precisou ser adaptado para conseguirmos alcançar nossos objetivos. Em cada família pesquisada, encontramos a essência da agricultura familiar, pois é essa formação estrutural que garante sua manutenção e o trabalho na propriedade, já que os princípios da agricultura familiar estão na utilização da força de trabalho da família. Também é a partir da família que podemos interpretar a relação dos informantes com a mídia, já que os diferentes meios estão presentes em praticamente todos os momentos do dia, seja como organização da ritualidade familiar ou nas leituras do modo de vida, de valores e de tradições que eles contrapõem ou reproduzem. A seguir, destacamos mais alguns resultados oriundos da dissertação:

Estereótipos e permanência no campo

Identificamos também que o meio rural ainda é cercado por estereótipos, colocando, muitas vezes, os agricultores familiares em uma situação de desconforto, como vemos na fala de um deles:

 

“Eles brincam bastante sim, me chamam de colono, essas coisas e tal, é o que eles falam, acham que a pessoa que mora no campo, ela não é muito inteligente.”

 

O caso que destacamos foi relatado por um adolescente de apenas 15 anos, mas que presenciamos em todas as famílias em função da origem no meio rural. Se os pais enfrentaram essas situações ao longo da vida, os filhos desses agricultores ainda passam pelos mesmos episódios. Essa situação faz com que os agricultores familiares procurem permanecer e conviver com pessoas em posição social semelhante, na busca de evitar constrangimentos pelo fato de serem agricultores. Presenciamos aí um tipo de violência para se encaixar no modelo de uma sociedade que valoriza aspectos da vida capitalista. 

 

Encontramos uma preocupação entre as famílias que vivem no meio rural: a permanência (ou não) dos filhos no campo, que é legitimada pelos dados estatísticos. Porém, entre os jovens participantes do Projeto, existe um grande interesse em dar continuidade às atividades da família. Podemos dizer que o pertencimento ao movimento social de Economia Solidária pode ser um fator que cria maior fixação do jovem no meio rural, contrariando os dados estatísticos. 

 

A falta de incentivo por parte dos governantes e de políticas públicas concretas para o agricultor familiar e, ainda, a extinção, nos últimos anos, de secretarias e ministérios voltados para a Economia Solidária apareceram nos relatos dos agricultores, que se sentem esquecidos por parte dos governos. É a partir da mediação do trabalho e das insatisfações com as mais variadas instituições que os agricultores familiares procuram o movimento de Economia Solidária. Bourdieu (2013) destaca que são essas lutas que mobilizam o indivíduo a buscar melhorias de sua condição, porém, entendemos que a valorização econômica não se dá na mesma medida que a valorização perante os iguais e uma parte dos clientes.

Mídia e rotina

Em relação ao consumo de mídia entre os agricultores familiares, fica evidente que a mídia exerce grande influência no cotidiano dos informantes. Como organizadora das rotinas, dos espaços de entretenimento, como ferramenta de estudo e de pesquisas, e, aos poucos, na organização do trabalho e na incorporação das redes sociais e aplicativos para a comercialização de produtos. O rádio, a televisão e o celular são os mais utilizados no cotidiano. O rádio é ouvido no galpão, no deslocamento entre a propriedade e outros lugares, ou então dentro de casa, principalmente na cozinha, pelas mulheres, durante os afazeres domésticos. A televisão é utilizada por todas as gerações, seja para informação através da TV aberta ou então para entretenimento em plataformas como YouTube e Netflix. 

 

O celular também é usado em todas as gerações, mas com funcionalidades e aplicações diferentes, que variam conforme a idade. Os jovens sabem utilizar todas as funções: ligações, redes sociais, aplicativos, músicas e jogos, mas nem sempre o fazem, principalmente pela dedicação às rotinas de trabalho da família. Entre as mulheres, o consumo se mostrou  mais voltado para a atualização de redes sociais e busca por informação. A internet está cada vez mais presente no meio rural, bem como os equipamentos que permitem seu acesso. Porém, o uso desses meios ainda fica condicionado às rotinas de trabalho e aos valores familiares. É uma incorporação que se dá de forma mais lenta que nos contextos urbanos, mas que mostra que esses meios, principalmente pela aceleração causada pela pandemia, fazem parte do cotidiano dos agricultores familiares e seu uso se dá de diferentes formas, variando conforme o capital cultural e econômico.

Busca por reconhecimento e nova forma de vida

A questão central nas reivindicações dos agricultores familiares se dá por reconhecimento. A valorização da agricultura familiar através de  políticas públicas aparece de forma simbólica e cultural e que não se reverte em valorização econômica. Desse modo, ao longo dos anos, os agricultores familiares têm adotado estratégias de sobrevivência. O movimento de Economia Solidária se mostra como uma alternativa de resistência, uma esperança para que juntos consigam melhorar as perspectivas de vida. De fato, entre os informantes é possível observar que houve uma melhora nas condições de vida a partir da organização nesse modelo, mas não uma melhora economicamente efetiva, que lhes deixe em uma situação confortável. Essa mudança garante o que o próprio projeto propõe: apresentar uma nova forma de vida. Por exemplo, muitos agricultores buscavam maneiras de parar com o plantio de fumo e arroz, comuns na região central do Rio Grande do Sul.

Divisão nas decisões familiares

Percebemos que, no modelo de Economia Solidária, o protagonismo das decisões familiares, normalmente atribuído ao homem, tende a ser dividido entre o casal e os jovens, pois todos têm papel importante nas discussões. Porém, mesmo entre os adeptos desse modelo, a igualdade nas decisões vai variar conforme os capitais cultural e econômico, bem como com o nível de engajamento e conhecimento do modelo de Economia Solidária. Aliás, são diversos os pontos em que o engajamento e o nível de participação podem ajudar a definir o comportamento das famílias. Observamos que estes interferem no consumo de mídia e nas leituras da representação midiática do rural e na incorporação de novas práticas agrícolas na propriedade, como no caso da legalização e na diversificação de produtos, o que, consequentemente, resulta em mais renda.

Economia Solidária: incentivo e valorização à agricultura familiar

Ainda nesta pesquisa, ficou evidente que a construção da identidade de classe está vinculada às relações que os agricultores familiares estabelecem com a mídia. Toda a construção identitária é comunicada ao mundo e aos outros sob a forma de representação, pela forma como algo é “mostrado e visto”. Assim, a noção da situação de classe se estabelece através das leituras feitas da representação midiática. A forma como o rural é mostrado, através de reportagens e programas que falem do campo, deixa claro a posição de inferioridade dos agricultores familiares em relação aos grupos rurais com maior poder aquisitivo. A Economia Solidária se mostra como uma forma de valorização e até de incentivo ao trabalho dos agricultores familiares. A ação coletiva em torno de um movimento social propicia maior representatividade e organização aos agricultores, mas , mesmo que tente se opor ao capitalismo, esbarra no próprio sistema.

Expediente:

Texto: Maurício Rebellato, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (POSCOM/UFSM);

Ilustração: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;

Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ludmilla Naiva, acadêmica de Relações Públicas e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;

Relações Públicas: Carla Isa Costa;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.

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