O uso do termo “amigue” em uma postagem na página do Facebook da Universidade Federal de Santa Maria gerou uma série de comentários ofensivos à instituição. A publicação sobre o Dia do Amigo, em julho deste ano, trouxe o chamado pronome neutro como uma forma de incluir pessoas que não se identificam com gêneros binários – feminino e masculino. Apesar da falta de consenso, principalmente por parte daqueles que não respeitam a comunidade LGBTQIA+, a linguagem neutra é tema de pesquisas acadêmicas.
Os pronomes são marcas linguísticas de indicação de gênero para outros elementos da linguagem, como substantivos ou adjetivos. Essas palavras são classificadas de acordo com o gênero que indicam, seja feminino ou masculino. “Pronomes neutros são categorias gramaticais. Quando tratamos do tema da marca de gêneros não binários na linguagem, estamos, antes de tudo, tratando de uma questão relativa à linguagem inclusiva”, explica a professora Eliana Rosa Sturza, do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFSM.
A professora salienta que o uso dos pronomes neutros para se referir a sujeitos, lugares e objetos é uma das formas gramaticais para a aceitação do outro e de seu gênero. Os termos neutros são normalmente utilizados para se referir a seres ou coisas neutras em gênero ou que não se integram nos gêneros binários. Na prática, trata-se da adição de uma terceira letra – além do “a” e “o” – como vogal temática.
Por exemplo, quando alguém se identifica com o gênero feminino, podemos nos referir a esta como “ela” ou “dela”. Quando é masculino temos “ele ou “dele”. E quando uma pessoa não se identifica com os padrões de gênero, ou seja, é não-binária, podemos usar os pronomes “elu” ou “delu”.
Além dos pronomes, os substantivos e os adjetivos também podem ter a vogal temática substituída. Ao falarmos de uma pessoa trans, por exemplo, em vez de falarmos “amiga” ou “amigo”, podemos usar “amigue”. No lugar de “bonita” ou “bonito”, pode-se adotar o adjetivo neutro “bonite”.
Liberdade de escolha
A utilização de termos neutros vai além da teoria: a polêmica se dá devido às mudanças que o seu uso causa na língua portuguesa. Porém, a linguagem inclusiva está diretamente vinculada ao respeito e à diversidade. “A importância do uso da linguagem neutra e da adequação de gênero responde a um movimento político de inclusão, que ocorre conforme a sociedade incorpora novas formas no uso da língua”, ressalta a professora Eliana. Essa inclusão também permite que pessoas não-binárias tenham a liberdade de escolher aquele pronome que as deixa confortável.
Abel Rodrigues, acadêmico do curso de Serviço Social da UFSM, é uma pessoa não-binária, mas opta pelo uso dos pronomes masculinos. “Eu acredito que isso é muito individual, uma questão de conforto. Cada pessoa se sente melhor com determinados pronomes. Para mim, são os masculinos. O uso de pronomes neutros é muito importante para a inclusão de pessoas não-binárias na sociedade, tendo em vista que, ao contrário da ilusão das pessoas, elas existem”, comenta.
Inclusão e diversidade na academia
Debates como o da inclusão pela língua portuguesa através do uso de pronomes, substantivos e adjetivos neutros não se mantêm apenas no âmbito social e político, mas também se tornam objeto de estudo e aplicação na academia. A professora Eliana Rosa Sturza é uma das entusiastas da inclusão da linguagem neutra na UFSM. “A universidade historicamente e, por princípio, se coloca na vanguarda, está atenta ao que ocorre ao seu redor e absorve daí suas grandes questões, suas posições frente aos temas que estão no centro do debate. Não seria e não deve ser diferente em relação à linguagem inclusiva”. A professora salienta que, na UFSM, já existe uma série de políticas que acolhem as demandas necessárias para promover o respeito à diversidade, como a resolução da Política de Igualdade de Gênero, aprovada em 13 de outubro deste ano, e a resolução que assegura o uso do nome social por pessoas trans, de junho de 2015. Para ela, a linguagem inclusiva é mais uma destas políticas .
Eliana orientou o Trabalho de Conclusão de Curso em Letras de Camilla Cruz sobre uso da linguagem inclusiva no ambiente acadêmico. A professora já questionou textos de documentos como regimentos, regulamentos e formulários da UFSM. Mais da metade do corpo docente da universidade é de mulheres, mas a instituição ainda não utiliza o gênero feminino quando se refere, por exemplo, a um cargo de gestão exercido por uma mulher. Isso ocorre porque ainda se adota uma regra gramatical de referir o cargo, e não a pessoa que o ocupa. “Como coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras me causava espanto ver que nas capas das versões de teses para entrega na biblioteca, muitas vezes, o título de uma mulher vinha destacado como doutor e não doutora”, relata Eliana. A flexibilização do uso dos pronomes – feminino, masculino ou neutro – se dá como uma forma não apenas de inclusão, mas de empoderamento e de respeito para com a identidade de cada pessoa.
Apesar das polêmicas em torno do uso da terceira vogal temática, é importante lembrar que qualquer idioma é dinâmico e sofre alterações em função do uso. A língua portuguesa falada no Brasil é diferente da de Portugal. A escrita também passou por mudanças. Basta lembrar que não escrevemos mais “farmácia” com “ph” e que “aterrizagem” com “z”, que já foi erro de grafia, é considerada tão correta quanto “aterrissagem”. O idioma também tem convenções, como o Novo Acordo Ortográfico, que unificou a escrita em oito países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Trata-se muito mais do que o uso do pronome neutro, mas sim da adaptação de toda a língua para que inclua pessoas de gêneros binários e não-binários. Para Eliana, o uso da linguagem inclusiva é uma posição política que tem ligação com o respeito às diversidades. “A adequação de gênero responde a um movimento político de inclusão. A importância do seu uso vai ocorrer conforme a comunidade vai incorporando as formas no uso da língua, e quem faz essa incorporação/inclusão são os falantes da língua”.
Expediente
Reportagem: Alice Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária
Ilustração: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista
Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Martina Pozzebon, acadêmica de Jornalismo e estagiária
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas