Em um mundo capitalista globalizado, a realização pessoal está diretamente associada ao consumo. É ele que é capaz de determinar questões como níveis de inclusão ou exclusão social, felicidade ou infelicidade. As pessoas têm como ideais de vida a aquisição de bens e patrimônios pelas experiências que esses são capazes de proporcionar.
Mas o que isso tem a ver com as relações de trabalho? O consumo desenfreado reflete no aumento da produção e intensifica a demanda por mão de obra. Isso pode parecer positivo se visto pelo ângulo da geração de empregos. Porém, o que está por trás dessa lógica, muitas vezes, é a precarização dos trabalhadores com jornadas exaustivas e baixas remunerações. Nesse cenário, o indivíduo vende sua força de trabalho em troca de salário e é o produtor dos bens que a sociedade consome, mas não tem o direito de usufruir daquilo que ele mesmo produz.
A pesquisa “O consumo que nos consome: a transformação da força de trabalho em mercadoria” discute o consumo em massa, a precarização das condições de trabalho e a transformação de pessoas em mercadorias. A autoria é de Jeano Saraiva Corrêa, advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorando pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). O pesquisador conversou com a Arco sobre a relação entre a venda da força de trabalho e a cultura do consumismo. Confira a seguir:
Arco – Como e por que você se interessou por estudar o campo do trabalho e acúmulo de capital?
Jeano Saraiva Corrêa – Acredito que a experiência jurídica enfrentada nos tribunais foi a porta de entrada para o aprofundamento do estudo científico no campo do trabalho, e, logo ao ingressar no mestrado em Direito da UFSM, pude alinhar minha prática à teoria. Lembro-me que, na época, formamos grupos de pesquisadores engajados em estudar as questões sobre o trabalho e a sociedade. E, hoje, continuo minhas pesquisas no doutorado em Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Acredito que ser pesquisador é um privilégio, mas também exige muita responsabilidade na condução dos estudos.
Arco – Aqueles que vendem a sua força de trabalho têm consciência sobre o lugar que ocupam nesse sistema?
Jeano Saraiva Corrêa – O mercado de trabalho é um dos muitos mercados no qual se inscrevem a vida das pessoas. O ritmo acelerado da vida trouxe novas formas de organização social, o que acabou por acostumar as pessoas a esse ritmo. O que se nota é uma gama de variedades tecnológicas (bens e serviços) que impuseram um novo ritmo à vida do trabalhador e redesenharam as formas mais tradicionais de trabalho – que conseguiram moldar o trabalho à necessidade econômica. Tudo sob a influência de políticas que flexibilizaram as estruturas protetivas das leis trabalhistas. Hoje, com escassez de empregos formais, os trabalhadores acabam por ter que aceitar qualquer emprego, sem falar nos trabalhadores informais. Mesmo adquirindo a consciência das reais condições, os trabalhadores são relegados à subalternização das relações, o que desmantela a classe operária e sua consciência como classe.
Arco – Qual é o papel da publicidade na sociedade de consumo?
Jeano Saraiva Corrêa – A publicidade é propulsora do consumo. Obviamente não pode ser analisada de maneira pragmática e tão somente sob o prisma da maximização do lucro: ela funciona como método em potencial, que transfere significados e valores a pessoas. Cotidianamente, somos bombardeados por campanhas publicitárias que incentivam o consumo em que temos a transformação do mero produto em algo que é objeto de desejo e satisfação. A relação de compra e venda é, antes de tudo, a relação de cultura e troca simbólica que permite a reciprocidade entre as pessoas, como também na relação de produção (trabalho).
Arco – Como isso se relaciona com as questões de divisão de classes, concentração de riquezas e a desigualdade social?
Jeano Saraiva Corrêa – O ponto é esse: a concentração de riqueza, a desigualdade social e a divisão de classes não são características exclusivas de nossa era, em que a realidade material influencia na construção social. As relações de produção regulam tanto a distribuição dos meios de produção quanto a apropriação dessa distribuição e do trabalho. Elas expressam as formas sociais de organização voltadas para a produção e resultam em uma divisão no interior das sociedades. Enquanto sistema de poder, o capital valoriza a propriedade privada ao criar leis que, por meio do Estado, garantam o direito e o poder de uma classe dominante sobre a outra.
Além disso, valoriza o domínio dos meios de produção, a exploração de mão-de-obra barata e acúmulo de capital. Não assegura estabilidade econômica, uma vez que o lucro não pertence à sociedade, mas a setores privados. Por conta disso, não gera bem-estar coletivo, pelo contrário, contribui para a desigualdade social. Segundo dados do Oxfam, a concentração de renda nas mãos de poucos aumentou exacerbadamente no começo de 2020: 2.153 bilionários do mundo detém mais riqueza do que 60% da população mundial, que representa 4,6 bilhões de pessoas. Esse abismo global se reflete no Brasil ao ser apresentada, pela revista Forbes, ainda com os dados de 2019, a lista dos 10 maiores bilionários brasileiros. Enquanto isso, o jornal El País escancara a face de um Brasil com 13,5 milhões de miseráveis.
Arco – Podemos dizer que se cria um ciclo entre o trabalho e a autorrealização das pessoas com as mercadorias? As pessoas trabalham para consumir?
Jeano Saraiva Corrêa – Obviamente o consumo é importante para a economia, porém o que está em voga é o consumo de forma fetichista, planificado no inconsciente humano. E o trabalho é um dos meios para se alcançar o consumo. As propriedades qualitativas humanas se perdem em razão da intensificação do trabalho e da pauperização das relações laborais como provas incontestáveis de que os indivíduos são intermediados pelo consumo dos objetos que às vezes eles mesmos produzem. O conflito entre trabalho e realização se dá pelo fato de que o homem organizou a sociedade de tal maneira que, para a maioria das pessoas, o trabalho que fazem não são projetos pessoais de vida, mas apenas de sobrevivência.
Para os pensadores da economia clássica, ao vivermos em sociedade, somos obrigados a nos moldar aos contornos do meio, e ao vivermos numa sociedade capitalista, em que o consumo desenfreado é comum, as pessoas perdem a sua individualidade, e são agora simplesmente consumidores, números.
Arco – Em seus estudos, você indica que, ao vender a força de trabalho, o sujeito se torna “a negação de si mesmo como homem” e passa a agir como mercadoria subordinada à vontade do mercado. Pode explicar essa ideia?
Jeano Saraiva Corrêa – Tenho que o trabalho é uma atividade essencial na inter-relação do homem com a sociedade. O trabalhador, ao vender sua força de trabalho, na qual exista um trabalho precarizado que apenas o escravize em todos os sentidos, ele se torna uma mercadoria. E passa a perceber que a relação que mantém com o capital na esfera produtiva e reprodutiva está baseada num sistema que tem apenas como base de sustentação a exploração da força do trabalho alheio. Significa dizer, que o trabalhador não se satisfaz no labor, ele se degrada, não se reconhece. Ele se desumaniza num mundo orientado para o mercado voraz, em que os serviços têm que estar à disposição 24 horas por dia nos sete dias da semana para que o consumo seja maior e mais tentador.
Arco – Em seus estudos, você indica que, ao vender a força de trabalho, o sujeito se torna “a negação de si mesmo como homem” e passa a agir como mercadoria subordinada à vontade do mercado. Pode explicar essa ideia?
Jeano Saraiva Corrêa – Tenho que o trabalho é uma atividade essencial na inter-relação do homem com a sociedade. O trabalhador, ao vender sua força de trabalho, na qual exista um trabalho precarizado que apenas o escravize em todos os sentidos, ele se torna uma mercadoria. E passa a perceber que a relação que mantém com o capital na esfera produtiva e reprodutiva está baseada num sistema que tem apenas como base de sustentação a exploração da força do trabalho alheio. Significa dizer, que o trabalhador não se satisfaz no labor, ele se degrada, não se reconhece. Ele se desumaniza num mundo orientado para o mercado voraz, em que os serviços têm que estar à disposição 24 horas por dia nos sete dias da semana para que o consumo seja maior e mais tentador.
Arco – Quais são os caminhos para que as pessoas tomem consciência desse sistema e até o confrontem? É possível que isso aconteça? É necessário que aconteça? Por quê?
Jeano Saraiva Corrêa – O caminho é refletir sobre os nossos próprios limites e compreender que o planeta possui limites naturais. Consumimos o equivalente a cinco vezes mais do que o planeta pode nos oferecer e, mesmo assim, vivemos no limite das nossas capacidades. A pandemia só revelou ainda mais os problemas sociais, potencializou a desigualdade social em patamares jamais vistos, concentrou o capital cada vez mais nas mãos de poucos sob o controle de grupos com interesses econômicos bem definidos. Essa diferença de classe é gritante no Brasil, onde atualmente a desigualdade social é uma das maiores do mundo. Há uma imensa massa de desempregados e miseráveis vendendo sua força de trabalho por um salário de fome, enquanto poucos, detentores dos meios de produção e do capital, acumulam riquezas e influenciam, segundo os interesses econômicos, não só os poderes da república, mas uma grande massa disposta, pela cegueira, a viver segundo os interesses desse poder. Os oprimidos de hoje são os pobres, as maiores vítimas deste sistema que apenas explora. Precisamos criar uma nova cultura após a Covid-19, com valores que estavam perdidos e que precisam retornar junto com outros necessários para esses novos tempos vindouros. O coronavírus faz parte do todo para refletirmos sobre as atrocidades que cometemos. Penso que já está mais do que na hora de mudar. Se não conseguirmos, provavelmente virão outros problemas, até aprendermos a nos comportar com responsabilidade.
Expediente:
Entrevista: Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária;
Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.