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“Não há educação sem participação”

Educador português, António Nóvoa, aborda desafios da formação docente



Um professor disponível e também um ouvidor, que acredita na Educação como motor da liberdade. Alguém que ama bibliotecas, pessoas e vidas. Isso é parte do que define e consta na biografia de António Sampaio da Nóvoa, reitor honorário da Universidade de Lisboa, candidato nas últimas eleições presidenciais de Portugal e referência quando se trata de formação docente. Ele participa de diversas atividades nessa área e analisa com atenção o cenário educacional brasileiro.

 

Nóvoa acredita no trabalho do professor quando desenvolvido de forma coletiva para responder aos desafios da educação que se apresentam. Ele defende a construção de uma “escola do trabalho”, em que o conhecimento seja produzido de maneira cooperativa e relacional. Nesse sentido, “o trabalho do professor é decisivo, mas ele deve ser capaz de colocar os alunos em situação de aprendizagem, de descoberta, de relação com o conhecimento, com a ciência e com a cultura”, pontua.

 

O professor esteve na UFSM durante o 1º Encontro Regional de Ensino de Ciências (Erec), que ocorreu no final de março, para falar sobre “Um novo tempo para a formação de professores”. A revista Arco entrevistou o educador que abordou questões como intercâmbio entre universidades, formação continuada e o processo de transformação do modelo escolar em função das tecnologias. Confira!

 

Nos últimos anos ocorreram incentivos maiores entre universidades brasileiras e portuguesas para que estudantes e professores realizassem intercâmbio. Que benefícios essa troca de experiências pode trazer ao estudantes e professores participantes desses programas, às instituições e ao saber produzido a partir dessa cooperação?

 

Vivemos num mundo globalizado, aberto. Precisamos conhecer outras experiências, outros ambientes, conhecer e pensar para além da nossa realidade imediata. A internacionalização das universidades é muito importante. No nosso caso, Brasil e Portugal, este intercâmbio é ainda mais significativo porque nos junta numa língua comum. É a partir da nossa língua e da nossa cultura que devemos construir a internacionalização, e não a partir da ideia vaga de uma globalização sem raízes.

 

O senhor tem feito várias palestras sobre formação de professores aqui no Brasil, prestado assessoria a várias universidades brasileiras, orientando inclusive trabalhos de doutorado. Como o senhor tem percebido o interesse do professorado brasileiro quanto à necessidade de estar sempre se atualizando na profissão?

 

Há um interesse grande por parte dos professores brasileiros para se atualizarem. Os sacrifícios que fazem para participar em eventos diversos revela bem esse interesse. Mas aqui surge um equívoco e um problema. A formação continuada não se deve fazer, primordialmente, a partir destes eventos (ou cursos), mas a partir de uma reflexão partilhada no espaço da escola. Cito de cor Lee Shulman quando ele diz que a formação continuada e o desenvolvimento profissional dos professores não podem ser dominados por pessoas e grupos, muito bem pagos, que, evento após evento, vão dando cursos e palestras sobre os mais diversos temas e modas, do cérebro à aprendizagem, das novas tecnologias à inovação. Em vez disso, as nossas energias e o nosso dinheiro devem ser investidos em grupos de pesquisa com os professores, num trabalho conjunto entre os professores para estudarem e refletirem sobre a sua própria prática, desenvolvendo assim novas práticas, novas escritas, novas inscrições, novas formas de trabalho docente. Isto é que é formação continuada.

 

De que maneira o professor pode se manter atualizado na profissão, considerando as mudanças econômicas, sociais, tecnológicas que ocorrem de forma muito rápida na sociedade?

 

A resposta está em duas ideias. Primeira – O trabalho do professor está passando de um “trabalho individual” para um “trabalho coletivo”. A colaboração com outros colegas é fundamental. Nenhum de nós, individualmente, conseguirá responder aos desafios que temos pela frente. Segunda – O fundamental, nos dias de hoje, é construir uma “escola do trabalho”, isto é, uma escola em que os alunos constroem o seu conhecimento, em cooperação com os outros alunos e com o professor. O trabalho do professor é decisivo, mas ele deve ser capaz de colocar os alunos em situação de aprendizagem, de descoberta, de relação com o conhecimento, com a ciência e com a cultura.

 

Como o professor pode utilizar as novas tecnologias a favor da profissão para ensinar os estudantes? Na sua visão elas podem ser aliadas no processo de ensino-aprendizagem ou dificultar esse processo?

 

Michel Serres, na sua obra A polegarzinha, diz-nos que estamos a viver apenas a terceira revolução na história da humanidade. A primeira foi a invenção da escrita, há cinco milênios. A segunda, o livro impresso, há cinco séculos. A terceira é hoje, independentemente do nome que lhe dermos: revolução digital, do conhecimento, da conectividade… O problema não é a tecnologia, mas a forma como as novas gerações pensam, sentem, comunicam e, sobretudo, como aprendem de maneira muito diferente das gerações mais velhas. O modelo escolar está em profunda transformação, também por causa da revolução digital. Não a podemos ignorar.

 

O projeto de reforma da previdência que está em discussão atualmente no Brasil prevê aumento no tempo de contribuição e da idade para se aposentar. O profissional da educação também terá que trabalhar mais anos para se aposentar. Levando em consideração o desgaste físico/mental que já acontece com esse profissional, que reflexos isso poderá trazer para a carreira desse trabalhador?

 

As sociedades contemporâneas deparam-se com duas realidades muito diferentes. Por um lado, um aumento exponencial da esperança de vida, que duplicou ao longo do século 20, aproximadamente de 40 anos para 80 anos. Muitos cientistas afirmam que, dentro de pouco tempo, as pessoas viverão em média mais de 100 anos. Por outro lado, uma das principais evoluções tecnológicas aponta para uma automação de 30% a 40% do trabalho hoje realizado por homens e mulheres. Isto implica a necessidade, em todo o mundo, de repensar as questões da previdência e da relação com o trabalho. Mas nada pode ser feito com uma diminuição dos direitos, nomeadamente nas profissões do humano, como a docência, que são muito exigentes do ponto de vista social e emocional.

 

O senhor tem acompanhado os últimos acontecimentos aqui no Brasil, no que se refere à aprovação no Congresso Nacional de leis/Projetos como “Escola sem partido”, mudanças no Ensino Médio – que retira disciplinas como sociologia e filosofia do currículo – corte de verbas para as Universidades Federais, ampliação de recursos para as Instituições de Ensino Superior Privado entre outros. Que rumos ou cenários o senhor vislumbra para a educação brasileira para as próximas décadas?

 

O Brasil está a atravessar um momento difícil, de grandes dúvidas e incertezas. Como todas as outras áreas, a educação também está sujeita a escolhas e ideologias. É normal que assim seja. Os cidadãos brasileiros têm o direito de decidir os rumos do seu país. Mas tem de haver um grande consenso nacional em torno da concretização da promessa do século 20, de uma escola pública de qualidade para todos. Essa deve ser uma base comum, de mobilização de todos os brasileiros, pois está aqui a base da democracia e da liberdade, da coesão e do desenvolvimento social e económico.

 

No ano passado ocorreram ocupações em escolas públicas do país, que inicialmente foram motivadas contra a reorganização escolar que o governo de São Paulo estava propondo. Havia relatos de estudantes que, antes das ocupações, não se encaixavam no formato escolar que lhes era oferecido e consequentemente não se envolviam minimamente em atividades da escola. Durante as ocupações esses estudantes começaram a participar das ações que eram oferecidas, muitas vezes com aulas fora do “formato padrão”. Como explicar esse fenômeno e o que isso quer dizer em relação à estrutura escolar que temos hoje?

 

Um colega nosso, francês, que adotou o Brasil como país de vida, Bernard Charlot, escreveu que há muitas crianças que vão à escola, mas que nunca nela verdadeiramente entraram. Dito de outra maneira, há muitas crianças e jovens que estão fisicamente na escola, mas que nunca se integraram numa cultura escolar, nunca sentiram que faziam parte da escola. Ora, só podemos educar alguém se esse alguém estiver “presente”. Não há educação se não houver presença e participação. É conhecida a história contada por John Dewey: um médico pode operar um doente anestesiado, e curá-lo; um professor não pode ensinar um aluno que esteja a dormir, ausente.

 

O que motivou o senhor a se tornar candidato às eleições presidenciais portuguesas do ano passado e de que maneira a sua experiência profissional no campo da Educação contribuiria para se pensar o desenvolvimento do país?

 

Tradicionalmente, os políticos portugueses vêm das áreas do Direito e, nos últimos anos, da Economia. Essas áreas são muito importantes, mas não podemos desvalorizar a experiência de quem vem de outras áreas, nomeadamente das ciências sociais e humanas, e da educação. Tradicionalmente, os políticos portugueses estão inscritos em partidos, no interior dos quais desenvolvem a sua carreira. Os partidos são muito importantes, pois sem eles não há democracia, mas não podemos desvalorizar a experiência cívica de quem está fora dos partidos, na vida social, cultural e económica. A minha candidatura, independente, procurou trazer novos contributos, a partir de uma história de vida diferente, feita na educação e sem ligação a partidos, de forma a enriquecer o espaço democrático. A liberdade foi a minha bandeira, a liberdade como direito de cada um e a liberdade como dever, isto é, o dever de nos batermos pela liberdade de todos. Falar de democracia e de liberdade é falar de educação.

 

Repórter: Gabriele Wagner
Fotografias: António Nóvoa

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