Nascido no ano de 1974, na mesma década em que a cultura Hip-Hop começa a repercutir pelo mundo, segundo filho entre quatro – duas irmãs mais novas, Elisângela e Edilaine, e um irmão mais velho de criação, Carlos Alberto -, Vitor tinha uma relação boa com os pais, José Escobar e Maria de Fátima Escobar. A família, de origem humilde, tinha na mãe a figura de trabalhadora doméstica e, até 1980, o pai como trabalhador do campo. Indo para a cidade, nesse mesmo ano, a mãe se manteve no mesmo posto de trabalho, enquanto o pai foi trabalhar na fábrica de massas Denardin Corrieri.
Corria a escola. Ainda nas séries iniciais, Vitor faltava algumas vezes às aulas para ir ao cinema, brincar de bodoque, bolinha de gude ou mesmo ficar jogando bola até mais tarde nas quadras da escola, já que estudava no colégio Parque Pinheiro Machado, que leva o mesmo nome do bairro onde a escola ainda funciona e onde morava sua família. A preferência por filmes às aulas fez com que Vítor rodasse na quarta série na disciplina de inglês.
– Naquela época meu irmão mais velho já tinha reprovado mais vezes, então eu passei batido por ter que repetir o ano – conta.
Depois daquele ano, pegou o embalo e se formou sem mais nenhuma reprovação, além de ter sido aluno da primeira turma do Projeto “Produtores Mirins” da Fundação Educacional e Cultural de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento da Educação e Cultura, FUNDAE. Nesse projeto, às crianças eram ensinadas técnicas em Agropecuária, como o cuidado com cabras, vacas, além dos aprendizados de cuidados com o solo e plantio de várias verduras, legumes e frutas.
Com 13 anos, Vítor começou a trabalhar numa granja, onde plantava e colhia hortaliças. Ficou nesse trabalho até os 14 anos. Depois, foi trabalhar junto ao pai na mesma empresa, em que limpava os tabuleiros onde caíam as massas e que, com o tempo, acumulavam pó e ficavam sujas.
– Eu trabalhava em turno contrário à escola. Ganhava por módulo, e cada módulo tinha 40 tabuleiros que não podiam ser lavados. Eles tinham que ser escovados, porque se fossem molhados acabavam estragando as massas que neles caíam no processo produtivo. Limpava cerca de 20 módulos por jornada de trabalho, que duravam cerca de quatro horas cada – relata.
Para além da escola e do trabalho: da luta ao balet
Nessa época, Vitor lutava boxe tailandês, mas aos nove anos tivera contato com a dança através do avô, que o levava para o CTG ver as invernadas. Do lado de fora das pistas, Vitor repetia os passos e tentava aprender. Foi chamado para participar, mas ficou nesse processo somente por dois meses, porque o avô adoeceu e o contato com as danças gaúchas acabou se perdendo.
Faixa marrom na arte marcial, Vitor passou cinco anos praticando, até que foi convidado a se retirar por tomar uma atitude em uma competição que acabou fraturando o braço do outro competidor. Na disputa dentro do ringue, golpeou o oponente de maneira ilegal, acabou por ganhar a luta e passou despercebido pelo árbitro. Ao virar de costas para comemorar a vitória, foi agredido, revidou de forma a desrespeitar as regras da arte marcial e, por isso, perdeu seus certificados e faixas conquistadas.
Preocupada, a professora chamou Maria de Fátima para alertar que não seria possível manter o filho – muito agitado na escola – sem que ele realizasse alguma atividade para dissipar energia. A professora sugeriu, então, que Vitor começasse a praticar ballet, porque dessa maneira ele conseguiria se disciplinar através de alguma atividade mais calma. Sem resmungar, Vitor começou a praticar a dança, mas acabou, no processo, se aproximando mais do Jazz e do Dance Music. Tinha cerca de dezessete anos quando conheceu outros garotos que formaram o grupo CashBox.
– Nós dançávamos com o pessoal da Rede Atlântida aos domingos, fazíamos apresentações na Avenida Presidente Vargas em um evento chamado Estação Atlântida.
No final de 1994, o grupo acabou. Vitor tinha 20 anos e viu os membros do grupo se dissipando, seguindo suas vidas. Com os remanescentes, conversou que iria seguir para outro caminho na dança. A dança de rua entrava de vez na vida dele.
Sobre armas e amores
Ausente das lutas marciais e também do ballet, com 16 anos saiu da limpeza dos módulos, na fábrica de massas, para entrar no processo de produção, trabalhando como operador de máquina e também no almoxarifado da empresa. Com os recentes 17 anos, viajou para o Festival de Danças de Joinville, em Santa Catarina, evento onde conheceu Marcelo Cirino, um dos precursores das danças urbanas no Brasil.
– Ele me disse que se eu fosse a São Paulo era para procurá-lo. Aí, uns seis meses antes de entrar para o exército, eu pedi umas férias que eu tinha acumulada na empresa e fui para Santos. Fiz o curso “Projeto Danças de Rua do Brasil” e retornei para cá somente uma semana antes de me apresentar no Exército.
Em 1992, voltou para fazer parte do PELOPES como Soldado Efetivo Variável, no Pelotão de Operações Especiais do Exército. O serviço, que à época também era obrigatório, garantiu a Vitor que, prestando seu um ano, poderia sair e continuar trabalhando na mesma empresa. Os braços acostumados a limpar módulos aprenderam a manejar armas ou qualquer coisa que fosse necessário. Apesar dos trajes diferenciados do Pelotão, o trabalho era intenso. Vítor não quis continuar servindo.
Com 19 anos conheceu Joice, num baile de Réveillon na antiga boate Valentino’s. Os amigos duvidaram que, baixinho, Vitor conseguiria conquistar aquela mulher alta. Saiu rumo à pista de dança e, fazendo alguns passos de Hip-Hop que já conhecia, conseguiu chamar a atenção dela. Conversaram e, por fim, se beijaram. No outro dia, estava ele de novo, com os mesmos amigos, em outra festa. Inseguro de que ela não quisesse mais nada, passou por ela algumas vezes até que foi chamado novamente.
– Tu não vais ficar aqui junto comigo? – exclamou Joice. E estão juntos até hoje.
Trabalhou até os 23 anos na mesma empresa de massas. De 1993 a 1997 trabalhou também como subchefe de seção e também na expedição, em que ficava responsável de organizar os pedidos para dentro e fora de Santa Maria, além de ajudar no carregamento dos caminhões de entrega. Só não trabalhou no setor administrativo, mas conheceu todo o processo produtivo.
A dança como protagonista
Em março de 1997, estava em formação o Mecanic Street Dance. Do fim do Cashbox, em 1994, até a criação do grupo, Vitor fez cursos em Porto Alegre, Passo Fundo, Bento Gonçalves, Canoas, Viamão. Também foi, novamente, a Santa Catarina.
– Parar de dançar, nunca parei. Nesse período, eu só não tinha um grupo estruturado.
Desligado da empresa onde trabalhou por 10 anos, dedicou-se exclusivamente à dança. Fez muitos cursos e comprou uma quantidade grande de fitas cassete, que precisava ficar esperando ser entregue para assistir e treinar. No ano de 2002, fraturou a própria perna.
– Eu fazia acrobacias. Cheguei em meio a um ensaio e sem me aquecer ou alongar fui dar um mortal para frente. Não saí do chão, tive fratura exposta no joelho e fiquei por um ano e meio sem poder fazer nada. Precisei fazer quatro cirurgias na perna e até hoje tenho uma placa e dois parafusos por causa dessa fratura.
Podendo andar, ainda que de muletas, Vitor ia aos treinos e indicava ao grupo os movimentos que precisava fazer, ansiado por poder participar. Quando pôde voltar aos ensaios, no final de 2003, decidiu que não mais faria manobras que pudessem colocar sua integridade em risco e passou a ensinar técnicas e acrobacias, além de focar na direção e produção de coreografias.
– O grupo precisa aparecer. Meu trabalho só se mostra através do brilho deles. Eu não viso me destacar em meio ao grupo e danço por me sentir bem, feliz – afirma.
Contradições em “viver da dança”
De 2003 a 2012 a vida de Vitor se fez turbulenta. Questionado sobre a possibilidade de viver da dança, defendia que o valor recebido por um trabalho ou por outro em nada diferia, mas acabou se rendendo e escolhendo trabalhar durante a noite, para ter a carteira assinada, e manter os projetos envolvendo a dança durante o dia, numa rotina cansativa. Chegou a trabalhar na Fábrica da Coca-Cola em Santa Maria, no Frigorífico Silva (interior de Santa Maria) e retornou à Corrieri por mais um ano. Fez curso para atuar como vigilante, além de trabalhar como porteiro e também conferente.
– Minha rotina era de trabalhar das 22h até às 7h30. Eu chegava em casa, tomava banho e às 9h ia ou para o Itararé, na Escola Walter Jobim, ou na Vila Schirmer, na Escola Rômulo Zanchi, onde dava aula até às 16h. Chegava em casa às 17h, comia, tomava banho e dormia até 20h. Acordava, conversava com a minha família e saía às 21h30 para trabalhar de novo. Tudo isso pra poder me manter trabalhando com dança – conta.
Vitor ainda deu aula nas escolas Dom Antônio Reis, no bairro Salgado Filho e também na Vila Kennedy, na escola Marechal Rondon. Em 2005, numa crise existencial, Vitor colocou fora algumas memórias em fotos, fitas, troféus. Decidiu dar por encerrada a existência do grupo. Três meses depois, voltou aos ensaios. Lembra-se de uma apresentação feita na Saldanha Marinho que, contrariando as dúvidas, encheu a praça com pessoas para verem a apresentação pública de danças urbanas acontecida no ponto central da cidade.
Formação com informação
– A noite envelhece. Você vê alguém que trabalha de noite e ela parece muito mais velha do que é realmente. Eu cheguei num momento em que me sentia impaciente, intolerante, irritado. Então decidi parar. Queria quebrar o gesso desse sistema repetitivo e sair desse ciclo, por isso criei a ACEPS – conta Vitor.
Em 2013, teve início a Associação de Artes, Culturas, Eventos e Projetos Sociais. A ideia, segundo Vitor, era “criar um projeto em que jovens, através da dança, alcançassem inclusão social”. Além dele, representantes de outros segmentos artísticos fizeram parte da formação. Atualmente, a ACEPS conta com um grupo de 40 pessoas, mas apenas 13 delas fazem parte do Mecanic Street Dance.
Os outros integrantes são contabilizados em função das oficinas e eventos itinerantes organizados pela ACEPS, que auxiliam na formação de outros grupos da cidade e visita escolas em Santa Maria através do projeto Dança e Cidadania. A Associação se mantém também em São Sepé, onde trabalha com 25 alunos e alunas que contam com o investimento de recursos da Prefeitura da cidade. Em Santa Maria, o Projeto também funciona de maneira voluntária. Para arrecadar dinheiro, a Associação realiza ações como rifas, almoços e também eventos culturais com danças e outras formas de apresentação envolvidas.
Segundo Vitor, a ideia dos projetos não é fornecer aos alunos e alunas somente a dança, mas também fazer uma formação que faça os alunos entenderem, de fato, o que é a cultura Hip-Hop, sua origem, sua história.
– Nossa intenção é que os alunos e alunas tenham formação com informação.
“42 anos e dançando como se tivesse 25”
A Associação trabalha em todas as regiões de Santa Maria e a aceitação e valorização por parte das comunidades existem fortemente, porque elas enxergam que o projeto faz bem às crianças. A ACEPS funciona como uma incubadora, dando aporte jurídico às pessoas que tiverem e quiserem submeter projetos à aprovação de órgãos públicos. Ela foi uma maneira de oficializar o trabalho que Vitor já vinha fazendo há anos e de dar continuidade a projetos que haviam sido encerrados, de modo que as crianças não perdessem contato com a dança.
Atualmente, Vitor não trabalha a noite toda como fez durante quase dez anos. Ainda assim, escolhe a noite para trabalhar como porteiro, no prédio que fica em cima da livraria Athena, de segunda à sexta-feira, das 19h às 23h e coloca os projetos de dança à frente durante o dia. Continua vivendo com Joice e com a filha mais nova, Bianca, no bairro Cipriano da Rocha, zona oeste de Santa Maria. As filhas mais velhas, Paola e Paloma, já moram sozinhas.
Dos 42 anos de vida, vinte e cinco Vitor passou dançando. E é com 25 que ainda se sente quando dança.
– A vida seguidamente nos dá respostas negativas, mas temos que buscar sempre pelo Sim. Eu não sou de desistir, luto muito para alcançar meus objetivos e espero que esse esforço renda bons frutos no futuro.
Reportagem: Germano Molardi
Fotografia: Rafael Happke