O termo “normose” ainda é desconhecido para muitos alunos e professores de Universidades, entretanto é uma doença que afeta boa parte da academia. O conceito de “doença da normalidade” foi definido na década de 1980, em um trabalho simultâneo do psicólogo brasileiro Roberto Crema; o filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup e o também psicólogo francês, Pierre Weil. Nesta época, e depois de descobrirem a familiaridade entre seus estudos, o trio organizou um simpósio em Brasília onde lançaram o livro “Normose: A patologia da normalidade”.
Para comemorar os 35 anos da Editora da UFSM, no 1º Seminário Dinâmico de Formação, o professor do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, Renato Santos de Souza, trouxe a discussão sobre a “Normose Acadêmica”. O termo normose se refere a um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação. Souza acrescenta à discussão o termo Normopatia, que embora signifique quase a mesma coisa, traz da psicanálise o aspecto doentio, onde a pessoa que vive em função de exigências externas de comportamento é aparentemente normal, mas tem imensa dificuldade de fazer um mergulho profundo em seu mundo interno, no que produz um afastamento, ou esquecimento do seu próprio ser.
Em entrevista à Arco, Renato Souza falou um pouco sobre as causas e consequência da doença no ambiente universitário, onde a hiperadaptação às estruturas burocráticas do ensino bloqueia a iniciativa e inibe o potencial humano.
Em seu artigo o senhor fala que normose acadêmica é causada pela meritocracia produtivista. Na sua opinião, porque essa necessidade de produzir tornou-se tão essencial?
Em função das necessidades de legitimação na carreira acadêmica, de financiamento dos projetos, de aprovação em concursos, de obtenção e manutenção de bolsas de produtividade, de manutenção da avaliação dos programas de pós-graduação, etc. As pessoas se submetem a produzir “conhecimentos” guiadas pelos critérios acadêmicos de avaliação, que se tornam estas estruturas hipernormativas ante as quais as pessoas buscam uma adaptação defensiva, para viabilizar seus próprios projetos acadêmicos. Ou seja, ao adotarem os critérios de avaliação produtivistas como um critério externo de valor para orientar a sua produção, elas renunciam ao seu verdadeiro potencial, renegam seus próprios desejos de produção acadêmica, e provavelmente ajam como os burocratas, que orientam suas ações e decisões mais pelas regras do seu cargo do que pelos valores próprios que têm.
De que forma a normose vitima o conhecimento?
A grande questão é que o sistema científico atual funciona como uma grande burocracia, cujos critérios produtivos de avaliação funcionam como as estruturas normativas em uma organização burocrática, orientando as ações de seus membros.
Visando padronizar a ação acadêmica, reduzir a incerteza na produção de conhecimento e tornar comparáveis os desempenhos acadêmicos, estas estruturas normativas prejudicaram muito a autonomia e a iniciativa dos pesquisadores, inviabilizaram o amadurecimento das pesquisas e da reflexão crítica sobre elas, e estimularam toda a sorte de fraudes na produção científica, reduzindo sobremaneira o potencial do que poderíamos ser, não em termos produtivos, mas qualitativos.
A normose acadêmica poderia ser entendida como algo benéfico, na medida que auxilia o pesquisador na busca pelo conhecimento, indicando, por exemplo, linhas de pesquisa?
Certo grau de “normalidade” é necessário, sem o qual seria impossível qualquer ação coletiva. A Normose ocorre quando esta normalidade assume características doentias, de hipernormatividade e adaptação em excesso das pessoas ao sistema, comprometendo não só os indivíduos, a expressão da sua individualidade e potencialidade, mas também os resultados agregados daquilo que produzimos, sua relevância social e sua contribuição para o enriquecimento cultural e científico da humanidade. Neste sentido, a Normose é danosa.
É possível se livrar da normose?
É muito difícil, por várias razões que se devem à forma como se estrutura o atual sistema científico brasileiro e seus dispositivos de avaliação, financiamento e legitimação das carreiras acadêmicas. Primeiro, porque é um sistema institucionalizado e burocratizado, extremamente regulamentado e organizado hierarquicamente, e burocracias instituídas, como se sabe, são difíceis de mudar. Segundo, porque ele traz uma ilusão de racionalidade e objetividade, e estes são dois valores centrais tanto para a legitimação de qualquer ação na academia quanto para o uso dos recursos públicos. Terceiro, porque a meritocracia produtivista e burocrática que temos hoje, sobretudo após a Constituição de 1988, se desenvolveu a partir de uma pauta democrática, e supostamente atende a ela: a objetividade e racionalidade das avaliações substituiu e superou o clientelismo, o patrimonialismo, o elitismo catedrático e a balcanização na distribuição dos recursos na academia brasileira. Portanto, as saídas não podem ser uma volta ao passado, elas têm que atender à necessária democratização da sociedade e do acesso aos recursos públicos. Em quinto lugar, o modelo vigente persiste também por razões de poder e interesses acadêmicos e de carreira envolvidos na sua manutenção ou mudança, pois o sistema empodera exatamente aqueles que decidirão por ele, e sendo assim, é pouco provável que estes decidam contra os seus próprios interesses.
Assim, as perspectivas de “se livrar” da Normose são remotas, o que podemos fazer são aprimoramentos no sistema visando a minimização de danos, e trabalhar coletivamente pela elaboração e legitimação de um outro modo de produzir conhecimento. Mas o fundamental, para mim, é entender o fenômeno e os seus fundamentos, reconhecer que não é um problema apenas brasileiro, mas que de certa forma é comum à maneira como se organiza a ciência na contemporaneidade na maioria dos países ocidentais, e perceber os danos causados por ele.
Na lógica da minha reflexão, a chave está em tentar quebrar ou minimizar o efeito do que eu chamo de “racionalidade formal” (conceito que tomo emprestado de Max Weber) que as atuais estruturas normativas provocam, que corresponde a moldar as iniciativas e decisões de estudos, pesquisas e publicações dos pesquisadores e estudantes pelas estruturas normativas de avaliação, em lugar de estimular a autonomia de pensamento e dar vazão às iniciativas e potencialidades de cada um. Além disso, é necessário reafirmar a defesa da Universidade pública, pois um sistema de ensino, pesquisa e extensão com mais autonomia e que produza resultados mais significativos para a sociedade, e também para o acervo de conhecimentos da humanidade, não condiz com qualquer “saída” via mercado, que torne a Universidade uma prestadora de serviços para setores privados, por exemplo. A discussão que eu faço só tem relevância e sentido para um sistema de ensino, pesquisa e extensão com orientação pública, que, a meu ver, está na raiz do próprio sentido de ser universidade.
O senhor percebe que hoje os acadêmicos reivindicam maior autonomia em relação à produção de conhecimento, ou a doença da normalidade no meio acadêmico tende a se perpetuar?
Sem dúvida, a enorme repercussão que teve o meu estudo sobre a “Normose Acadêmica”, as discussões que ele provocou e o retorno que recebi são de pessoas que, na sua maioria, se identificavam com o meu diagnóstico e com as minhas reflexões. No fundo, talvez eu tenha apenas dado um nome e proposto uma reflexão a respeito de algo que já é identificado e reconhecido amplamente dentro da academia brasileira, e que é motivo de grande angústia, também, por muitos que atuam dentro dela.
Reportagem: Bárbara Marmor
Fotografia: Rafael Happke
Edição: Laura Storch