Edgar Franco ou Ciberpajé? O professor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás não concebe uma separação entre as facetas de si mesmo. Desde 2011, quando realizou pós-doutorado em Arte e Tecnociência na UnB, declara-se Ciberpajé, como explica, “através de um processo artístico e mágico de transmutação”.
Edgar cresceu em uma família de classe média na cidade de Ituiutaba, Minas Gerais. O pai foi um autodidata, que construiu uma biblioteca particular com cerca de 5 mil volumes, e já lia para o filho de 2 anos histórias em quadrinhos. Com 9 anos, Edgar conheceu a obra do xará Edgar Alan Poe, e, a partir dele, Baudelaire, Robert E. Howard, Guy de Maupassant, além de filósofos como Voltaire, Schopenhauer, Friedrich Nietzsche. Dos quadrinhos, Mozart Couto, Jayme Cortez, Rodolfo Zalla, Nico Rosso, Rubens Lucchetti já eram inspirações. Durante um período da infância, Edgar morou em uma pequena vila, onde teve maior contato com a natureza: caminhava com o pai pelo cerrado e nadava no Rio Tejuco. “Minha infância foi marcada pelo desenvolvimento do amor pela natureza e pelas narrativas”, conta. Com 16 anos, já produzindo suas próprias ilustrações e narrativas visuais, Edgar teve seu primeiro contato com a música. “Fascinado pela rebeldia e iconoclastia do heavy metal, comecei meus estudos com o contrabaixo, ao mesmo tempo em que tive contato com o ocultismo, lendo obras de Madame Blavatsky e Teilhard de Chardin”, lembra o artista.
Cursou Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília e fez o mestrado em Multimeios, na Unicamp. Lá, Edgar pesquisou a linguagem híbrida das HQs na internet: “Passei esse tempo investigando a linguagem intermídia que batizei de HQtrônicas. Criei também as minhas próprias HQtrônicas, realizando uma pesquisa pioneira no mundo, que foi publicada como livro e, em sua segunda edição, virou referência no país inteiro”, relata. Foi nesse período que passou a se interessar pelo conceito de pós-humano, a ideia de que o corpo pode, um dia, ser substituído pelas máquinas. Segundo ele, é um pensamento recorrente entre filósofos pós-modernos. “Autores como Ray Kurzweil, Hans Moravec, Vernon Vinge, Baudrillard e P.K.Dick; e artistas como Stelarc, Eduardo Kac, Natasha Vita More, Mark Pauline e H.R.Giger, me levaram a criar arte inspirada no pós-humano e também ao doutorado, feito na Escola de Comunicações e Artes da USP”, explica. Na tese, “Perspectivas Pós-humanas nas Ciberartes”, estudou a arte pós-humana e a sua prática construiu o universo ficcional transmídia que ele chama de Aurora Pós-humana, espaço que serve de base para a criação de suas obras artísticas nas mais variadas mídias: quadrinhos, música, poesia, aforismos, web arte, instalações interativas, videoclipes, videoarte, gamearte, e performances híbridas.
Sua forma de viver, como diz, tem causado furor nos espaços acadêmicos onde convive. A sua visão a respeito da arte e da Academia também. A Revista Arco conversou com ele para saber mais sobre a sua trajetória, sobre o personagem que criou e que a ele foi incorporado e sobre as suas produções artísticas.
O que é o Ciberpajé e por que essa incorporação?
A figura do pajé é fascinante, pois tem a capacidade de se conectar diretamente com a natureza para modificar a realidade. Ela mistura os mundos real e mitológico; consegue reestruturar a realidade mixando esses mundos e é alguém que busca a cura, a harmonia, o equilíbrio. Eu me espelho no pajé. Crio mundos ficcionais e tenho utilizado gradativamente esses mundos para modificar a minha realidade. O prefixo ciber, da cibernética, foi agregado ao pajé porque denota a conexão e troca de informações entre seres vivos, mas também entre seres vivos e máquinas. Ele incorpora as novas possibilidades tecnológicas como um campo amplo para os exercícios mágicos de conexão entre mundos que o ciberpajé promove.
Me declarei Ciberpajé descrevendo o meu renascimento através de um ritual que criei, baseado em uma contagem regressiva de dez dias, e dez “chaves da transmutação” que criei. Na manhã do renascimento, eu compus e gravei um ritual que considero minha declaração de “Ciberpajé”.
Você já nos disse, no primeiro contato que tivemos, que essa incorporação causa furor no mundo acadêmico. Como lidar com isso na atividade docente, e em todas as outras relações dentro do mundo do trabalho?
Assumi a identidade de Ciberpajé em todos os mundos que circulo, incluindo o acadêmico, e isso causa indignação em muitos colegas. Em palestras, em que digo que me autodeclarei Ciberpajé, alguns me interpelam e questionam como posso me autodeclarar algo. Para as mentes formatadas dessas pessoas, títulos só podem ser outorgados por outros, a vida deve ser uma história de subserviência ao sistema.
Eu passei por todos os ditames dos planos da hierarquia acadêmica – copiada da hierarquia militar e eclesiástica – com seus graus e patentes, fiz graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, concurso público em universidade federal, avaliações periódicas para estar em um programa de pós-graduação. Cumpri todas as exigências e sou sabatinado constantemente, mesmo assim causo indignação ao me autodeclarar Ciberpajé. Para mim, é o mais importante de meus títulos, aquele que me outorguei a partir de minha experiência de vida, um nome de renascido, um título que sobrepuja todos os outros, coloca por terra inclusive os nomes das “grifes” onde estudei. Sou o Ciberpajé, vou de cartola e com meus dez anéis nos dedos, coturno e camiseta de lobo, costeletas anacrônicas e impetuosidade lupina às bancas de mestrado e doutorado para as quais sou convidado como membro, para palestras, congressos, eventos.
Sigo na academia, pois fora dela não poderia auxiliar a romper com seus paradigmas apodrecidos, mas nunca escrevi um artigo ou criei arte para cumprir tabela, para ganhar nota A1 na avaliação da Capes, feito um ratinho pavloviano. Sou visceral, minha arte, meus escritos, mesmo os acadêmicos, são parte de meu grimoire de magista. Obviamente, sigo algumas regras para que sejam publicados, mas não os formato para atender ao sistema, não os transformo em bajulações de teóricos da moda ou “babação de ovo” de escolinhas teóricas. Toda minha teorização é consequência de minhas criações e todas as minhas criações artísticas são rituais de autotransmutação.
Tendo afirmado o furor da academia em relação a você, sei pelas leituras que fiz que você também tem críticas à forma como está instituída a academia? Quais são essas críticas?
Apesar de uma pseudoaparente maior diversidade e tolerância ao diferente que é apregoada midiaticamente como algo que existe, sabemos que o mundo tem caminhado para o inverso disso. Nessa vida, não me lembro de experienciar um período em que a cultura humana estivesse tão fragmentada e dividida em inúmeros grupelhos que tornam suas teses e leis em dogmas e passam a odiar todos os demais. São milhares de facções e subfacções culturais vomitando seu ódio a tudo que não é afinado com eles. Toda essa fragmentação tem sido insistentemente incentivada pelos governos, marionetes das multinacionais, utilizando assim o velho e muito eficaz princípio da política romana chamado “divide et impera”, dividir para conquistar. Ao incentivarem o fortalecimento de milhares de grupelhos de ideologias antagônicas, os donos do poder impedem que haja a união entre as pessoas. Por isso eu me declaro livre de todos os ismos, liberto de todo e qualquer dogma, pronto para me insurgir contra os verdadeiros vilões, os monstros no poder.
O mercantilismo e produtivismo invadiu a universidade de maneira irreversível; pesquisadores, que deveriam ser sonhadores utópicos, criadores inspirados, tornaram-se ratos predadores buscando metas como executivos pressionados por um sistema cada vez mais predatório que incentiva não a conexão entre os pesquisadores, e sim a extrema competitividade. Programas de pós-graduação vão se tornando arenas de guerra velada, em que as pessoas se odeiam e buscam ultrapassar a pontuação de seus adversários, já que tudo é uma questão de números, uma corrida desenfreada a lugar nenhum, e os jovens estudantes que deveriam ser inspirados são negativamente influenciados. As parcas e quase inexistentes ações criadoras e transformadoras vindas das universidades são fruto de iniciativas isoladas de alguns seres especiais.
Outra questão premente das tais “ciências humanas” é a teoria que sobrepuja a experiência, os doutos ratos acadêmicos pautam sua torpe visão de mundo nas experiências dos outros, elegem autores como semideuses e se tornam papagaios de pirata reproduzindo teorias alheias como modelos de vida e análise da realidade. A teoria jamais sobrepuja a experiência, a teoria é um fantasma, uma ilusão que é sempre idealizada, ela indubitavelmente nasce como fruto de uma experiência particular. Mesmo a física hoje admite que o observador interfere naquilo que observa, modificando o fenômeno. Recuso-me a ler qualquer coisa que venha de alguém que coloca a teoria em primeiro plano e rejeita a experiência. Viver é experienciar, a teoria é o território dos idiotas e medrosos. O reinado absoluto do produtivismo, do mercantilismo, e da teoria em detrimento da experiência na academia é o atestado claro de que a universidade faliu, é uma instituição em estágio de total decadência rumo a um fim necessário.
De que forma você atua na transformação (a partir da incorporação do personagem) dessa realidade da academia que você critica?
Sou um arauto adogmático lutando pela implosão final desse sistema. Primeiramente, me coloco contrário a todo e qualquer dogma acadêmico. Os estudantes devem ler de tudo, saber selecionar no universo da hiperinformação o que é importante, mas jamais aderir a uma teoria como um dogma capaz de resolver todos os problemas e analisar a complexidade do Cosmos, isso é limitante e estanque. Também falo sempre da importância de pautarem suas vidas pelas experiências e nunca pelas teorias, minhas aulas são todas construídas a partir de minhas experiências pessoais como artista. A teoria é um apoio, apenas. A forma de me vestir, de me portar, a coragem de me pronunciar são ruídos importantes, pequenas rachaduras na estrutura apodrecida da academia. Estou na contramão de todo o poder instituído e estabelecido, então o meu papel é o de implosão.
Eu estou na universidade pelos alunos, pois encontro constantemente jovens que ainda têm a chama necessária para a autotransformação. Talvez, eu consiga atiçar um pouco essa chama e é animador conviver com essas mentes em ebulição ainda não formatadas, mas tenho consciência do meu papel irrisório dentro de uma estrutura onde reinam os valores já declarados aqui: a produtividade em detrimento do respeito e amorosidade, o mercantilismo a qualquer custo, e a teoria inócua sobrepujando a experiência. Eu não tenho esperança em um mundo melhor. Não cultivo sentimentos em relação ao que não posso mudar. O único mundo que sou capaz de transformar é o meu, todo o resto é ilusão. A transformação do mundo lá fora é consequência da transmutação interior. Enterro todas as esperanças e invisto no agora, na profunda transformação de mim mesmo, através da modificação contínua de minha realidade, experimentando minha serenidade cultivada no olho da tempestade.
Reportagem: Germano Rama Molardi
Fotografias: Rafael Happke