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Sexismo no mundo nerd

Estrelado por mulheres e rejeitado pelo público, novo filme Caça-Fantasmas aponta para o preconceito de gênero no cinema



A primeira obra de ficção científica da história foi escrita por uma mulher. Em 1918, Mary Shelley publicou o livro Frankstein, embora, nesta época, o livro tenha sido editado sem os créditos à autora. Neste momento surgia o que mais tarde seria chamado de universo nerd, uma comunidade que, durante muito tempo, abrigou especialmente meninos com dificuldade de socializar com outros grupos, de fazer amigos. Jovens que não se importavam com esportes, tendências de roupas ou as fofocas do momento. Assim, não havia assuntos em comum com boa parte dos outros adolescentes. A leitura, a pesquisa e as obsessões investigativas que, hoje, se desmembram também em diversos subprodutos culturais, como desenhos, fanfics e jogos também sempre demandou tempo, o que tornou estes jovens mais propensos a uma aproximação entre si. A sensação de não pertencimento sentida por estas pessoas formou um grupo ligado a estudos e assuntos de ciência e tecnologia. Na indústria do entretenimento, encontraram a projeção dos seus desejos em histórias de homens com dupla vida ou habilidades que ultrapassavam as características que um ser humano normal pode ter.

 

No século passado, o mundo dos super heróis teve como foco a criação de personagens masculinos, que conduziam a história e eram a chave para o desenrolar do enredo desde seu início, passando por momentos críticos até o ápice da história, quando, de forma milagrosa e com técnicas além da capacidade humana, conseguia salvar o mundo e sua amada. E esse era o único papel reservado às mulheres, coadjuvantes com características físicas sensuais e delicadas e emocionalmente frágeis à espera de uma salvação.

 

Em julho de 2016, a Sony Pictures lançou um reboot do filme Caça-Fantasmas (Ghostbusters), lançado em 1984. O filme dos anos 80 conta a história de três parapsicologistas que, após serem depostos de seus cargos na Universidade, abriram seu próprio negócio e acabaram encontrando um portal para outra dimensão em Nova York que levou a equipe a viver aventuras para capturar fantasmas com uma tecnologia caseira. No filme de 2016, dirigido por Paul Feig, o elenco ao invés de ser composto por quatro homens, como o longa produzido em 1984, foi protagonizado por quatro mulheres com diferentes características.

 

Desde o lançamento do primeiro trailer em março de 2016, a rejeição do novo longa recebeu mais de 1 milhão de dislikes no site YouTube contra 290 mil likes. Em entrevista à AFP, o diretor Paul Feig desabafa: “estou frustrado porque conheço muitas mulheres talentosas que não conseguem se destacar como deveriam, que parecem estar sempre relegadas a papéis secundários”.

 

A rejeição do novo filme tem se confundido entre opiniões que defendem que os filmes “politicamente corretos são uma chatice” e outras que acreditam que o problema não está na mudança do gênero das personagens, mas sim no comodismo em que se encontra o público nerd em relação à diversidade estética, sexual, étnico-racial ou de gênero. Segundo Julia do Carmo, jornalista, mestre em Ciências Sociais e consumidora da cultura nerd, a representatividade é muito importante para o reconhecimento das pessoas com o produto: “nunca me vi na primeira versão do filme, eu fui assistir Caça-Fantasmas no cinema agora e eu realmente saí com os olhos cheios de água pensando que se a Julia criança tivesse visto aquelas quatro mulheres incríveis e com corpos diferentes fazendo o que elas fazem no filme, eu acho que eu teria ampliado muito a minha cabeça, eu teria gostado muito desse mundo que não era para mim”.

 

A falta de representatividade feminina é histórica e foi naturalizada dentro do universo nerd, que funciona como um reflexo da sociedade. Neste espaço, assim como em esportes como o futebol, o maior problema é a falta de acesso e incetivo. A escritora Luciana Minuzzi percebe que, desde a infância, só seu irmão era estimulado a ter contato com tecnologia, super heróis e videogames. Ela conta que, quando criança, acabava excluída das brincadeiras ou era a única menina do grupo, situação que é conhecida como Síndrome de Smurfette – referência ao filme Os Smurfs, quando, em grupo, existe um número muito pequeno de mulheres em relação ao de homens. “Eu escrevo literatura de terror e, no meu caso, sempre fui incentivada a não ver esses filmes, a não ler sobre essas coisas, porque isso não era feminino, era muita violência pra mulher”, explica Luciana.

 

A exclusão na cultura nerd começa na infância, como contou Luciana. Desde muito cedo é determinado a partir da educação o que é para meninos e o que é para meninas e, definitivamente, cultura nerd não está na lista do que é “para meninas”. Isso significa que o material produzido é feito para o consumo masculino e, para agradar os homens, a industria sempre investiu em um estereótipo de mulher que fosse mais sensualizado. Na prática isso se dá tanto com desenhos quanto com personagens em filmes que, ou esperam pela salvação masculina – como Mary Jane, de Homem Aranha – ou, se forem a heroína, lutam em cima de saltos muito altos, usam roupas muito pequenas e são enquadradas em ângulos sexualizadores.  

 

A reprodução de um tipo físico de mulher que não existe e de personagens infantilizadas e mentalmente instáveis torna esse ambiente um lugar hostil para as próprias mulheres. Isso acontece porque estas personagens representam uma imagem objetificadora. Assim, é dada ao consumidor homem a liberdade e o poder de fazer o que quiser com esta mulher – personagem e, por reflexo, também com as mulheres reais – em função de ele se reconhecer no personagem masculino que é dominante na história.

Por outro lado, sempre houve mulheres produzindo, e a mudança foi que a internet possibilitou a criação de uma rede de contatos e de influência entre escritoras, produtoras de games e quadrinistas. Páginas nas redes sociais, como a Lady’s Comics e a Mulheres nos Quadrinhos, por exemplo, divulgam o trabalho destas mulheres, que ainda estão alocadas principalmente no meio alternativo. Luciana atribui este crescimento da visibilidade e do consumo destes produtos também à recente popularização do feminismo. Segundo ela, isto permitiu e ampliou o empoderamento feminino, o que encorajou as mulheres a publicar o que produziam e a buscar uma rede de proteção e de consumo entre si.

 

Quer conhecer produções nerds de mulheres?

Site Lady’s Comics: http://ladyscomics.com.br/

Um guia dos quadrinhos das minas na internet: http://minasnerds.com.br/2016/08/09/um-guia-dos-quadrinhos-das-minas-na-internet-9/

 

 

Reportagem: Kauane Müller e Paola Dias
Infográficos: Nicolle Sartor

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