“Se você não está se divertindo, simplesmente não faça”. Esse é o lema da vida de Mauricio Bagarollo, 39 anos, empresário e fundador da ONG Doutorzinhos, uma instituição que capacita voluntários para fazer trabalhos em hospitais. Ele nasceu em São Paulo e é formado em Direito, porém nunca atuou na área. O que o fez vir para Porto Alegre, em 2003, foi a possibilidade de atuar em uma escola de idiomas e exercitar uma de suas tantas habilidades: ensinar e ajudar as pessoas a serem felizes, na nova língua e na vida.
É atrás da menor máscara que existe no mundo (o nariz de palhaço) que Mauricio revela todo o seu carisma, simpatia, amor e empenho ao trabalho voluntário, que já realiza há nove anos. Vinte minutos é o que ele precisa para vestir seu jaleco branco, fazer sua maquiagem e encarnar o Doutor Zinho, o personagem mais antigo vivido por Mauricio. Com seu kit de Segundos Socorros, que inclui narizes vermelhos, brinquedos, um violão, uma caixinha de música, uma fita métrica que mede a febre dos pacientes, bolhas de sabão e Sílvio, seu cachorrinho invisível, ele põe em prática a missão da ONG: humanizar o hospital, alternando as doses dos medicamentos com doses de riso e felicidade para os pacientes, seus acompanhantes e toda a equipe dos sete hospitais em que atuam na capital.
Essa ideia da humanização hospitalar vem de muito tempo. Foi lá pela década de 60 que o médico americano Hunter Adams, mais conhecido como “Patch Adams” (que não por acaso inspirou também o nosso Dr. Zinho), decidiu fazer algo diferente, para que o paciente se sentisse mais confortável durante o tratamento. A ideia dele era baseada na “Serventia do amor para todas as pessoas”. E foi inspirado nessa máxima que Michael Christensen, que além de diretor do Big Apple Circus de Nova Iorque, é também ator e palhaço, usou pela primeira vez a figura do palhaço em apresentações hospitalares. Desde então, a ideia se espalhou mundo afora… no Brasil, a iniciativa mais antiga data da década de 1990 e hoje inúmeras ações como essas colhem sorrisos e plantam alegrias por onde passam.
Ficou interessado em conhecer melhor o trabalho do Mauricio? Na entrevista você confere um pouco mais da história de vida desse Dr. Zinho, que tem um coração gigante.
Como começou o teu envolvimento com o trabalho voluntário?
Em 1998 saiu o filme do Patch Adams, “O amor é contagioso” [este filme é baseado na história real do médico Patch Adams, que usava a figura do palhaço como um meio de chegar até o paciente, para, então, empregar seu conhecimento médico para tratar]. Eu assisti e disse: quando eu crescer eu quero ser igual esse cara! Só que eu também tinha a consciência de que esse trabalho exige muita responsabilidade e comprometimento. E eu ainda não estava nesse ritmo. Quando cheguei a Porto Alegre, em 2003, comecei a trabalhar muito e foi só no final de 2005, com a equipe mais organizada, que ficou um pouco mais tranquilo. Foi então que eu comecei a espalhar a ideia, dizendo que queria fazer um trabalho de palhaço num hospital, parodiando a atuação de um médico. Os diretores dos hospitais que eu entrava em contato, tanto em São Paulo como em Porto Alegre, estranhavam essa aproximação entre “palhaço” e “hospital”, então me ofereciam outras oportunidades para atuar como voluntário, mas não era o que eu queria. No final de 2006 surgiu a minha porta de entrada; ainda não era bem o que eu imaginava, mas era um pontapé inicial. Comecei, então, com um trabalho de “contação” de histórias no Hospital Criança Santo Antônio, no complexo da Santa Casa.
E como surgiu a ONG Doutorzinhos?
Foi um processo lento, que foi se construindo ao longo do tempo… Durante esse trabalho de “contação” de história, aos poucos, fui deixando o livro de lado e fazendo brincadeiras, atendendo até o pedido de algumas crianças que diziam “deixa o livro de lado, você é mais engraçado brincando”. Então eu conversei com a diretora do hospital, e expliquei o que eu realmente gostaria de fazer e ela me autorizou a realizar, por alguns meses, uma espécie de teste piloto individual. Se desse certo eu apresentaria um projeto. E deu. A equipe e os pacientes haviam gostado da iniciativa e foi aí que começou. Como eu já tinha a ideia de formar um grupo, primeiro chamei três amigos próximos… Fiz um treinamento de umas três horas com eles e aí começamos a atuar.
O que você faz para conciliar o trabalho de empresário e de coordenador da ONG?
Eu tento dedicar o mesmo tempo para as duas atividades. E eu sou muito rápido para fazer as coisas, eu gosto de ter coisa para fazer. O que ajuda bastante é a qualidade da equipe que tenho comigo na escola. Assim, e também por trabalhar com eles há muitos anos, eu posso ter mais autonomia e maior disponibilidade de tempo para a ONG. Do outro lado, eu também procuro sempre envolver todos os voluntários nas atividades da ONG, para que eles se sintam realmente engajados no projeto. Eu não gosto muito de que eu seja a referência, por ser fundador e coordenador. Porque é um trabalho de equipe… Claro que eles são voluntários para atuação de doutores palhaços no hospital e a gente não cobra nada além, mas nós chamamos e queremos envolver, então quem pode participa. E eu não sou duas pessoas diferentes. Eu procuro tratar meus colegas de trabalho e os integrantes da ONG com o mesmo carinho, a mesma união e respeito.
Como é a atuação dos doutores palhaços nos hospitais?
Todos os voluntários que estão na ONG, que hoje totalizam 56, têm que passar por um processo seletivo e um treinamento de sessenta horas antes que possam entrar pela primeira vez no hospital. Depois de “formados”, realizamos todos os meses três encontros, que chamamos de “clownsultas” [a arte clown é a arte do palhaço]. São momentos em que fizemos a reciclagem das técnicas de palhaço, de improviso e de teatro. E nós temos uma rotina no trabalho. As visitas aos hospitais são semanais e feitas em dupla. Cada voluntário vai sempre no mesmo dia, no mesmo horário, no mesmo hospital e com a mesma dupla. No meu caso, faço uma ou duas visitas semanais, mas fora isso tem várias outras atividades. Nós justamente atuamos em dupla porque a gente nunca brinca com o paciente, nós brincamos para o paciente: eu brinco com meu colega e meu colega brinca comigo. A gente brinca entre nós, para que o paciente possa rir da gente e nunca se sentir ofendido por algo que a gente fale para ele. Porque apesar de todo o rigor da linguagem que temos, podem escapar coisas e os pacientes podem se magoar, isso porque as pessoas no hospital estão na situação mais vulnerável que existe, que é a vulnerabilidade na saúde. Eu acho que o lugar mais improvável de se conseguir um sorriso é no hospital.
O estado de palhaço é o que você tem de melhor multiplicado por dez
Por que a figura do palhaço?
O palhaço é uma figura diferente e curiosa em qualquer tipo de ambiente. Nós a escolhemos por acreditar que o humor provoca uma mudança não só no local, mas também na pessoa que tem o contato com o palhaço. Não estamos lá só para estimular o riso, mas também para fazer uma transformação, para quebrar uma hierarquia que existe dentro do hospital. Nós tratamos todas as pessoas da mesma forma: o paciente, os acompanhantes e toda a equipe hospitalar. A gente não fala e não pergunta para o paciente o que ele tem, não falamos sobre a doença dele, a gente busca sempre o que há de melhor nele. Trabalhar com palhaço exige muita dedicação, não é só colocar um nariz vermelho, uma roupa engraçada e contar piada. A gente usa essa figura para abrir portas para um mundo de possibilidade de riso e o palhaço proporciona isso só com a presença. A nossa missão é tirar o paciente do hospital por alguns minutos, dando a ele, ao acompanhante ou à própria equipe a oportunidade de viajar um pouco com a gente. O palhaço não é um personagem, é um estado que você assume. A gente acredita que a figura do palhaço, sendo uma atividade de qualidade e principalmente de humanização, vai inspirar inclusive o profissional da saúde a investir na qualidade do encontro que ele tem com o paciente. Nós usamos a figura do palhaço com um fim, que é o de colaborar efetivamente na recuperação psicológica e física do paciente. Na maioria das vezes, a gente não tem a real noção do que provocamos na pessoa, o que vemos é o riso momentâneo. Mas existe um reconhecimento, que é muito bacana: os médicos e a equipe entram em contato conosco e nos informam do quanto a nossa visita ajudou num ou outro aspecto para a melhora dos pacientes. Isso acontece porque quando você faz uma coisa que você gosta, você acaba fazendo um trabalho bem feito e aí as pessoas começam a reconhecer.
De que maneira você se transforma no Dr. Zinho?
Cada voluntário se encarrega da criação do seu personagem e nunca vamos vestidos para o hospital. Como eu falei, nós entramos no estado de palhaço. E tudo no palhaço é ao extremo. O nariz é a menor máscara do mundo, mas ela não é para esconder, ela é uma máscara para revelar aquilo que você tem de melhor, multiplicado por dez, que é o que você pode oferecer para as pessoas. Nós levamos uma média de 20 a 30 minutos para preparação. Então, na medida em que chegamos ao hospital e vamos colocando a roupa, a blusa, o sapato e a maquiagem a gente se envolve em um processo em que você sai do seu estado cotidiano e entra no seu estado de palhaço. Para fazer a paródia do médico, nós exigimos que o jaleco seja todo branco e que a maquiagem não seja extravagante, porque a gente finge que é médico para os pacientes que fingem que acreditam. Cada doutor cria seu nome, seu estado de palhaço e seu figurino durante o treinamento. É um processo individual e até doloroso, porque durante o processo você acaba descobrindo muitas cosias sobre você, então tem muito riso, muita alegria, mas tem também muita emoção e às vezes tristeza. Os artefatos que você usa e leva na sua maleta vão ajudar a formar essa figura. Eu, por exemplo, levo uma franga de brinquedo (que é para representar aqueles que querem soltar a franga), uma caixinha de música – levo também um violão, mas digo que, como toco mal, é melhor ouvir a música da caixinha -, uma fita métrica para medir a febre e a pressão, além de outros brinquedos.
Já que vocês autorizam o paciente a não permitir a brincadeira, como é receber um “não”?
A sensação de receber um “não”, não só é, mas tem que ser muito boa, porque o paciente não nega algo há muito tempo. Ele não pode falar não para a mãe, para o pai ou para o médico. As únicas pessoas para quem ele pode falar um não somos nós, então nós damos um poder que essa pessoa não tem há muito tempo.
O que paga o teu trabalho como voluntário?
O “pagamento” são sentimentos de amor e carinho. Para o palhaço, o “pagamento” pode ser o sorriso. Tem uma frase que eu gosto muito e que diz o seguinte: “sabe por que nós não somos pagos pelo que fazemos? Porque não haveria dinheiro suficiente no mundo para pagar por isso.” Os voluntários doam a única coisa que o dinheiro não pode comprar: o tempo. E o tempo que doamos é nosso bem mais valioso.
Você tem perspectiva de ampliar a atuação da ONG para outras cidades?
Eu prezo sempre pela qualidade e não pela quantidade. A missão da ONG é ser referência na atuação de doutores palhaços voluntários não só no Sul, mas a nível nacional. E, para ser referência, a gente precisa ter um trabalho responsável e de qualidade. Temos interesse em expandir e levar para outras cidades, mas isso só vai acontecer quando sentirmos que temos recursos não só financeiros – e isso a gente pode conseguir –, mas recursos humanos, pessoas que tenham a mesma visão que nós. Hoje recebemos muitos pedidos de cidades querendo a atuação dos Doutorzinhos e nosso projeto para 2016 é expandir para cidades mais próximas, como Gravataí. Então, nós estamos estruturando uma expansão, mas de maneira responsável, para que o trabalho não perca em qualidade.
“O lugar mais improvável de se conseguir um sorriso é no hospital”, disse o Mauricio. De fato, essa não é uma tarefa nada fácil, mas o pessoal da ONG Doutorzinhos não arranca um, mas vários sorrisos por onde passa. Ficou com vontade de participar dessa iniciativa tão bacana? Se você quiser, basta ter mais de 18 anos e um coração gigante, pronto para receber e dar amor. O primeiro passo é entrar em contato com a ONG, pelo Facebook ou pelo site, manifestar interesse e aguardar o retorno.
Reportagem: Camila Hartmann
Fotografias: Rosangela Meyer e Tiago Capelini