Ana Carolina Lazzari Chiovatto é tradutora, escritora e mestranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo (USP). Possui graduação em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, pela Faculdade das Américas. Pesquisa a obra de L. Frank Baum no mestrado e, atualmente, trabalha na tradução da série do Mágico de Oz, do mesmo autor, para a Editora Vermelho Marinho, do Rio de Janeiro.
Como funciona seu trabalho com a tradução do Mágico de Oz?
Fui designada para a tradução no meio de 2013. Desde lá venho me dedicando a esse trabalho, levando-o em paralelo com outras traduções. Eu traduzo um livro e o passo para o revisor de tradução. O revisor de tradução me manda o arquivo de volta, para eu poder verificar suas correções. Depois disso, mando o livro para o preparador de texto, que é uma pessoa que não vai ver o texto original, e tem o trabalho de garantir que o texto em português pareça escrito em português. Acontece que, quando estamos traduzindo, o nosso cérebro fica “ligado” em duas línguas. Então tanto o tradutor quanto o revisor de tradução podem vir a usar estruturas sintáticas da língua do texto original, de forma que o texto traduzido fique um pouco engessado, não natural. O preparador tem o trabalho de resolver esse problema. Depois disso vai para a revisão final, que vê mais questões de pontuação, ortografia. Eu já fiz trabalhos editoriais em todas essas etapas, e sei a importância de cada uma delas para a qualidade do texto final. O livro volta para mim todas essas vezes porque, no final, o copyright é meu, e eu respondo pela tradução. Mas só com essa pergunta eu poderia falar eternamente… (risos)
“Quando estamos traduzindo, o nosso cérebro fica “ligado” em duas línguas”
E o seu trabalho acadêmico sobre ele? Como é pesquisar um autor que se pode considerar cientificamente inédito no Brasil?
Desde que comecei a traduzir o primeiro livro, eu soube que queria pesquisar algo relativo à série no mestrado. Eu só não sabia o quê. Como Oz é um universo muito grande e muito inexplorado, dá para falar de tudo. Eu só precisava ver algo que sustentasse uma pesquisa de pelo menos dois anos, como é o caso do mestrado, porque, afinal, já escrevi alguns artigos sobre várias questões da obra. Foi traduzindo o livro 2, A Maravilhosa Terra de Oz, e principalmente no final, que eu cheguei ao tema: a representação do feminino nos livros da série. O que acontece no final do livro dois (sinto muito, é um super spoiler, então não vou poder contar) é MUITO inovador, mesmo para os dias de hoje. E, claro, a gente tem a Dorothy, a Glinda, e muitas outras personagens femininas muito importantes e muito interessantes. E o mais legal de tudo é que, durante a pesquisa, eu fui descobrindo que a representação do masculino no livro também é inovadora. O Baum destroça estereótipos de um modo muito raro, tanto na época quanto hoje em dia. E é um prazer trabalhar com uma obra assim.
Quanto a trabalhar com um autor cientificamente inédito, é mais complicado do que parece. Não é só no Brasil que não se estuda ele. Em Portugal não há estudos (e nem as traduções de toda a série). Mesmo nos Estados Unidos, de onde vem o autor, os estudos disponíveis são muito antigos. E tem também o fato de que, para a maior parte das pessoas, o contato com o mundo de Oz se deu com o filme de 1939 (aquele famoso musical com a Judy Garland, em que ela canta Somewhere Over the Rainbow), então elas têm a referência do filme. Tem muita coisa que tem no livro e não tem no filme e vice-versa. Por exemplo, no filme, toda a aventura da Dorothy era um sonho. No livro não é. A dificuldade maior é que todo trabalho científico se constrói sobre citações de outros estudos e, nesse caso, eu tenho muito pouco com que trabalhar. Então estou usando comparações com outros grandes clássicos infantis e com contos de fadas, e analiso tudo em cima do discurso, que é a forma como a história está sendo contada.
Como se deu sua primeira aproximação com Baum? Por que ele?
Por causa da releitura do filme de 2012, Oz: Mágico e Poderoso, da Disney. O sobrinho do editor da Vermelho Marinho foi fuçar para saber mais sobre a história, de que ele tinha gostado muito, e descobriu que era uma série que não estava inteira traduzida no Brasil. O primeiro volume tem várias traduções, o segundo tem mais de uma tradução, e o terceiro teve uma tradução (hoje já esgotada). Todos os outros estão inéditos. Então o editor veio propor que eu traduzisse a obra para a Coleção “O Melhor de Cada Tempo”, cujo objetivo é trazer grandes clássicos que estejam esquecidos hoje em dia. Foi começar a traduzir que eu me encantei pela obra. Quis estudá-la justamente porque me parecia injusto que uma obra tão grandiosa, sob vários aspectos, fosse completamente esquecida. Fala-se muito em Alice, em Peter Pan, em Pinóquio, mas não em Oz. O que é muito curioso, porque esses devem ser os grandes clássicos da literatura infantil mundial, junto com alguns outros que a Disney adaptou.
O trabalho de tradução influencia e/ou enriquece seu trabalho acadêmico e vice-versa? De que forma?
A gente costuma falar que ninguém conhece um autor tão bem quanto seu tradutor, nem ele mesmo. É uma brincadeira, mas tem um grande fundo de verdade. O tradutor lê a obra muitas vezes e analisa vários detalhes, como estilo do escritor, mania de palavras, mania de estruturas, o tipo de imagens textuais que ele usa… Com isso, a gente fica muito mais próximo do texto do que outros leitores. A tradução tem isso em comum com o trabalho acadêmico. Nas pesquisas científicas, a gente fica esmiuçando o texto à procura de coisas novas. Então é engraçado: a tradução me ajuda no mestrado e o mestrado me ajuda na tradução.
“Ninguém conhece um autor tão bem quanto seu tradutor, nem ele mesmo”
Quais os desafios de traduzir a coleção completa do Mágico de Oz no Brasil?
Olha, na questão do trabalho da tradução em si, me parece que o maior desafio é o compromisso de trazer uma obra tão extensa em pouco tempo. Por conta do mestrado, não posso me debruçar sobre as traduções em tempo integral. Ao mesmo tempo, não convém passar os outros livros para outros tradutores, tanto por causa do meu envolvimento com a obra, como já expliquei, quanto por causa da assinatura. Quando muda o tradutor, o texto muda. É muito difícil dar a impressão que o livro é do mesmo autor se o tradutor é outro.
Agora, do ponto de vista editorial, tem o fato de a Vermelho Marinho ser uma editora pequena num mar de gigantes editoriais. Não é fácil fazer os livros chegarem às livrarias, que é onde o público tem contato com eles. Isso eu sei porque acompanho de perto o pessoal da editora.
E tem também a questão de que o Oz não recebeu uma adaptação filmográfica fiel recente. Hoje em dia, boa parte dos best-sellers vão para o cinema, que é onde as pessoas ficam conhecendo a obra. Mas agora vai vir uma série que a NBC está produzindo. Trata-se de uma releitura das aventuras da Dorothy, com ela voltando para Oz depois de adulta (um pouco nos moldes da Alice do Tim Burton), então temos esperança de que as pessoas queiram buscar os livros originais, como costuma acontecer nesses casos.
Sua pesquisa no mestrado tem foco na representação do feminino a partir da obra de Baum. Como você faz esta relação entre a representação do feminino e, para além da literatura infantil, os contos de fadas?
Acontece que, na introdução do primeiro livro, o Baum diz que está se propondo a escrever um conto de fadas moderno. Isso já é uma pista. E ele mesmo tem artigos analisando particularidades de contos de fadas. Quando a gente lê o Mágico, fica muito claro que toda a sua base é um conto de fadas. Então eu puxo comparações. Em contos de fadas a gente tem a figura da bruxa. Em Oz também. Em contos de fadas a gente tem a figura materna má e a figura materna boa; a mesma coisa em Oz, e assim por diante. Só que em Oz, todas essas marcas relacionadas a contos de fada trazem uma espécie de mudança, um elemento novo. É em cima disso que faço minhas análises.
O que você espera dos leitores brasileiros, em relação à tradução e publicação da obra de Baum?
Gostaria de dizer às pessoas que leiam a obra. É um autor fantástico. É uma obra fantástica, que traduzo com muito carinho, cuidado e atenção. No final dos livros, eu sempre escrevo uma nota de tradução, explicando as dificuldades de alguns trechos e justificando minhas escolhas tradutológicas. Mas, se isso não bastar, estou disponível no Facebook pra quem quiser perguntar mais!
Se você quiser ajudar a divulgar a obra, um grande auxílio é pedir nas livrarias da sua cidade. Nós estamos na Livraria Cultura, principalmente, e em livrarias online, como a Livraria Ariana, a Amazon… Algumas livrarias não vendem livros que não estejam disponíveis em catálogo, mas outras entram em contato com a editora para pedi-las, se o cliente quiser encomendar. Isso é muito importante para a série ter um alcance maior neste país imenso que é o Brasil.
Reportagem: Matheus Santi
Fotografia: Luiz Batanero