As cartas possibilitam conversar com o ausente e tornam perene as informações que, em uma comunicação puramente oral, se perderiam nas linhas do tempo. O pacto epistolar, firmado quase que automaticamente entre dois correspondentes, coloca a cumplicidade e a responsabilidade para com a verdade na mesa de troca. A sinceridade é o que se espera do destinatário e vice-versa. “Evoco a carta como uma poderosa ferramenta narcísica do contar-se, do expor-se, do abrir-se ao outro nas linhas do papel, presentificando e materializando a presença do outro”.
Essa é a concepção adotada pelo pesquisador da UFMG, Leandro Garcia Rodrigues, especializado em Estudos Literários. Rodrigues resgatou cartas, depoimentos, crônicas e ensaios escritos por três dos principais intelectuais brasileiros atuantes no período da Ditadura Militar, o frade dominicano Frei Betto, o teólogo Leonardo Boff e o crítico literário Alceu Amoroso Lima.
A pesquisa foi publicada no livro “Cartas de Esperança em Tempos de Ditadura” (Editora Vozes). A proposta do pesquisador é pensar sobre o papel da Igreja Católica brasileira durante a Ditadura, de 1964 a 1985, a partir da correspondência. “Do apoio irrestrito e empolgado num primeiro momento, a Igreja se tornou a principal voz de denúncia e antagonismo deste mesmo regime, especialmente após a prisão, tortura, desaparecimento e morte de inúmeras pessoas, particularmente padres, bispos, seminaristas, leigos, freiras e religiosos, como o próprio Frei Betto”, destaca Rodrigues.
A Teologia da Libertação foi a corrente teórica com maior destaque no combate ao regime militar. Vertente da Igreja Católica fundada oficialmente na Conferência de Medellin, na Colômbia, em 1968, a Teologia da Libertação exerceu grande influência na América Latina. Seu objetivo é a construção de uma Igreja comprometida com a transformação da realidade social, com foco nos trabalhadores, operários, explorados e oprimidos. No Brasil, dois dos principais expoentes desta Teologia, Leonardo Boff e Frei Betto, foram abertamente perseguidos no período ditatorial.
A correspondência recuperada pelo pesquisador da UFMG inclui 23 cartas, escritas por Leonardo Boff e Frei Betto ao crítico literário e intelectual brasileiro Alceu Amoroso Lima, que revelam fatos curiosos sobre o período e a própria Teologia da Libertação.
Alceu Amoroso Lima foi um dos mais relevantes críticos da ditadura brasileira na Imprensa da época, e mantinha uma forte vinculação com a Igreja Católica no Brasil e em Roma. Crítico literário, professor e escritor, seu pensamento tinha uma forte influência da filosofia distributista, uma filosofia econômica segundo a qual todos ou a maioria das pessoas deve ter acesso à propriedade privada. Sob o codinome “Tristão de Ataíde”, escreveu importantes livros, como “Revolução Suicida” (1977).
“Alceu não seguiu a tendência mais comum de ‘demonizar’ aqueles contrários ao Regime, tachando-os de comunistas e outros adjetivos que pareciam justificar tais perseguições políticas. Ele podia até discordar da motivação de alguns na luta pela redemocratização, fato este que sempre afirmava nas suas crônicas, mas antes de tudo estava o ser humano, filho de Deus, tolhido no seu direito mais fundamental – a liberdade”, aponta Rodrigues.
As cartas que Lima trocou com Frei Betto e Leonardo Boff foram encontradas pelos pesquisadores em excelente estado de conservações e expressam a dimensão sentimental desses personagens, que viveram um dos mais conturbados períodos políticos do Brasil. Em uma das cartas, escrita por Frei Betto a Alceu Lima, o frade fala sobre o papel da Igreja no regime militar: “Parece que deixamos de viver na Igreja do silêncio. Esta Igreja, cheia de ‘prudência’, não foi capaz de uma atitude enérgica por ocasião de nossa prisão. […] Creio que a década de 70 será decisiva para a Igreja no Brasil. A impressão que tenho é que, só agora, começamos a colher os frutos das sementes lançadas pela Ação Católica, na década de 60”.
O método epistolar, que define o gênero textual das cartas, já foi usado em grandes obras da ficção. “Drácula” de Bran Stoker, por exemplo, é completamente escrito do ponto de vista dos protagonistas através de cartas. O mesmo acontece com outro clássico do terror, “Carrie, A Estranha”, de Stephen King. Segundo Rodrigues, o método é um importante registro histórico por retratar determinado período pelo ponto de vista das pessoas que o viveram, escrita na época retratada, evitando, assim esquecimentos ou alterações pelo tempo.
Reportagem: William Boessio, Mateus Coelho e Matheus Santi
Gráfico: Nicolle Sartor
Imagens: Divulgação