Às 10 horas da manhã de uma quinta feira, Alexandre Beck recebe a equipe da Arco na sua casa para uma conversa. As duas poltronas da sala têm almofadas especiais. Uma, estampa uma criança de baixa estatura, amiga de um sapo, cabelo azul, apelidado carinhosamente pelos fãs de “Dinho”. Na outra almofada, a irmã do garotinho, Fê. São presentes que o criador das tirinhas do Armandinho recebe dos admiradores.
A poucos passos da sala fica o escritório do ilustrador. Logo na entrada, à esquerda, um armário de cor vermelha vibrante, comprado especialmente para guardar os objetos que Alexandre ganha. São canecas, desenhos, chaveiros bordados com o rosto do menino. E as prateleiras já estão bastante cheias. Na estante ao lado ficam os livros sobre assuntos e autores variados. Márcia Tiburi, Eduardo Galeano e David Coimbra são alguns deles.
O escritório – e a vida – é compartilhado com a professora de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, Janyne Sattler. Ela foi aprovada em um concurso para docente na UFSM no final de 2012, quando os dois desembarcaram em Santa Maria. Janyne, que acompanhou e participou da conversa com a Arco, esteve em quase todos os lançamentos dos livros do Armandinho. E o Alexandre também aproveita para lançar os livros nas cidades em que ela participa de eventos acadêmicos. Muitas das “sacadas” do garoto questionador foram inspiradas nos filhos, Fernanda e Augusto.
Alexandre lembra que quando era criança sempre foi um aluno estudioso: “Acho que fui do lado dos CDF’s (termo usado para designar quem se dedica aos estudos)”, brinca. Entrou na escola antes do tempo. Na turma, era o mais novo, o mais baixinho, o mais fraco e péssimo no futebol. Sempre gostou de biologia e de desenhar. Fazia as provas rapidamente para poder ficar desenhando depois. Alexandre acha que usava o fato de saber desenhar para ter alguma importância na classe.
Alexandre foi plantador de morangos, se formou em Agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina, participou do movimento estudantil na faculdade de Publicidade e Propaganda, ilustrou livretos da Defesa Civil, fez quadrinhos para jornais. Armandinho foi criado às pressas por ele. Um jornal de Santa Catarina, para o qual Alexandre fazia ilustrações, pediu que ele desenhasse três tiras para uma matéria sobre economia entre pais e filhos. Ele aproveitou um bonequinho que já estava pronto e representou os pais do garoto apenas com a imagem das pernas. Alexandre gostou do resultado e as pessoas do jornal também. E assim o personagem foi ganhando espaço.
Algumas tirinhas começaram a ser publicadas na internet para que os amigos do ilustrador que ainda moram em Florianópolis pudessem ver, analisar se havia erro de português, se dava pra compreender a mensagem. Com isso, as tiras passaram a ter mais visualizações e então ele criou a página do personagem no Facebook, que atualmente tem mais de 900 mil curtidas.
Final de 2012. Recém chegado em Santa Maria e com poucos dias da criação da página, Alexandre fez uma tirinha sobre um acontecimento que rasgou a cidade localizada no coração do Rio Grande do Sul: o incêndio da boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013. “Foi um desabafo essa tira”. As pessoas passaram a compartilhar a imagem, publicada na noite posterior ao incêndio, e assim a página passou a ter mais seguidores. Meses depois outra tira também ganhou bastante repercussão, porque o pequeno Armandinho errou uma questão da prova na escola.
Essa é uma das tirinhas mais conhecidas do Armandinho – algumas chegam a ter 5 milhões de visualizações. “É uma responsabilidade. Dá um medo quando faço”. Com tanta gente vendo e se envolvendo com as ideias do personagem, Alexandre precisou criar uma política de comentários na página do Facebook do personagem. Ele passou a bloquear comentários agressivos. “É como se eu convidar pessoas para ir na minha casa, entrar alguém e começar a agredir meus convidados”. Opiniões contrárias são bem-vindas, segundo Alexandre, porque ele também aprende com elas. Mas comentários agressivos, homofóbicos, transfóbicos, racistas e misóginos não têm espaço. “Não posso alimentar isso”.
“Não vou me isentar”
Algumas das tirinhas que Alexandre faz têm um tom de bom humor, criadas a partir de momentos em que ele se sente leve e relaxado. Outras tocam em questões que ele acha que a sociedade deveria repensar – essas são, para ele, as mais “doídas” de fazer. Têm ainda as tirinhas políticas, que para Alexandre são um dever que ele tem que cumprir. Dever como cidadão, como alguém que fala para muitas pessoas e se esforça em buscar informações de diferentes ângulos. Nas publicações fica explicita a posição do quadrinista na defesa dos direitos humanos, sensibilização com o meio ambiente e desconstrução de preconceitos. Para o ilustrador, se isentar desses assuntos não é uma opção: “a gente peca por omissão também”.
E mesmo as tirinhas que ele fazia para outro jornal, antes do Armandinho vir ao mundo, já eram bastante críticas, segundo ele. Janyne, atenta à conversa, acrescenta: “Tu nunca foi isento nas coisas que tu falou. Tu nunca foi neutro ou imparcial. Agora pode ser que as coisas estejam mais afloradas. Mas as tuas tirinhas sempre foram políticas. Não partidárias, que é diferente”. Essa postura se torna ainda mais evidente nas reações de pessoas que comentam na página de Alexandre, pedindo que o Armandinho se exima dos assuntos políticos ou que ele fale apenas de “coisas de criança”. Ou ainda em situações recentes, quando o Facebook removeu uma tirinha da página do Armandinho após manifestações de usuários contrários ao conteúdo da postagem. A tira em questão era um diálogo entre o personagem Pudim e o garotinho. Pudim aponta para uma direção e pergunta quem é “essa biba comunista” que usa barba, cabelos compridos, vestido e paninho vermelho no ombro. E Armadinho responde “Jesus”.
Existe muito do Alexandre Beck no Armandinho. Mas Alexandre afirma que existem características suas também no pai do Armandinho, na mãe do Armandinho, no sapo (companheiro fiel do garoto) e, por incrível que pareça, até no Pudim, que é o menininho “um bocado diferente” da forma dele de pensar – o Pudim tem o cabelo espetadinho, e nas últimas tiras aparece vestindo uma camisa da seleção brasileira de futebol. Ele também já disse frases do tipo “cultura nem é tão importante assim. Para mim nunca fez falta nenhuma”.
“Tudo pode virar uma tirinha”
Alexandre está sempre refletindo sobre o que acontece ao seu redor e as ideias para as tirinhas surgem às vezes em lampejos. Por mês, ele faz uma média de 35 a 40 tiras, mas nem todas são publicadas. E, mesmo depois de tantos anos ilustrando quadrinhos, ele ainda afirma: “Eu não sei fazer tirinha, eu faço de um jeito instintivo. Foi assim desde o início”.
Na mesa do escritório, além dos livros do Armandinho, folhas brancas de papel A4, um computador de “segunda mão”, há também um pequeno caderninho de capa preta. Ali estão anotadas muitas das ideias que ficam apenas no papel. Algumas delas porque o quadrinista ainda não achou o “tom certo” para fazer.
As tiras sobre o garoto questionador da cabeleira azul (Armandinho aprendeu em ciências que seu cabelo tem essa cor por causa do aposematismo) foram tema de trabalhos de conclusão de curso, estamparam livros didáticos, saíram em provas de vestibular, geraram convites para estrelar filmes e propagandas. Mas o criador do Armandinho diz que o personagem já foi muito além do que ele podia querer. Alexandre não pretende utilizar o personagem para fins publicitários, pois, se o fizesse, “teria que atender a outros interesses”. Sua pretensão é continuar lançando os livros com as tirinhas – que já teve oito edições, todas editadas por ele. A proposta de Alexandre é ter a liberdade para criar e poder gerar alguma reflexão nas pessoas.
Sobre o personagem ser inspirado na Mafalda ou no Calvin, Alexandre diz que, apesar de eles terem algumas semelhanças com o menino, o que tem por detrás do Armandinho são livros. Alexandre conta que lê muito e sobre assuntos variados, seja a revistinha da igreja que as pessoas entregam nas casas, bulas de remédio e até matéria de revista que o amigo mais reacionário compartilhou. “Se você quer aprender e respeitar esse outro que convive no mesmo mundo que você, é preciso se desfazer das certezas, estar aberto para outras informações”.
Reportagem: Gabriele Wagner
Tirinhas: Alexandre Beck
Fotografia: Rafael Happke