Quando vim de mudança para Santa Maria, na virada para o século XXI, o cenário geral era relativamente distinto do que vivemos agora. Os tempos eram outros – política, econômica e culturalmente falando. O Brasil ainda era governado pelos tucanos, e a agitação política nas ruas passava pela oposição ao programa neo-liberal de privatização do patrimônio público – na saúde, na educação, nos setores extrativistas. No plano da economia, apesar da consolidação do Real como uma moeda sólida, a dívida com os credores internacionais – simbolizados pelo órgão máximo de subordinação das economias sub-desenvolvidas, o famigerado FMI – era um fantasma onipresente nas discussões sobre a gestão nacional.
Mas o marco daquele fatídico primeiro ano do novo milênio seria, sem sombra de dúvida, a imagem das torres gêmeas desabando no céu de Nova York após a colisão premeditada de dois aviões sequestrados. Sem parâmetros trágicos com os quais ser contrastado, o ataque terrorista que resultou na morte imediata de milhares de pessoas – e se desdobrou em milhões de cadáveres como resultado da reação norte-americana – configurou também um fenômeno midiático de novo tipo, ao lado da cobertura espetacular que narrava ao mundo, conforme as conveniências imperialistas, as investidas estadunidenses contra o mundo árabe.
Sem exageros, podemos afirmar que os estilhaços daquele acontecimento atingiram, ao menos simbolicamente, todo o mundo globalizado. Também no extremo sul do Brasil respirávamos o miasma dos explosivos. Tudo que era sólido explodia no ar.
Na Santa Maria da Boca do Monte, cidade em que vim parar no rastro dos milhares de estudantes que cá chegam ano após ano, vivíamos uma espécie de ressaca cultural. Após uma década de profusão musical, em que uma geração de bandas estabeleceu a cena olímpica que até hoje perdura como os anos dourados do rock local, os poucos palcos ativos se elitizavam, apostando no blues como uma opção ‘limpa’ para atrair a clientela abastada. A Catacumba do DCE era então o reduto alternativo por excelência – e também por falta de opções. Mas lá o ruído era alto demais para qualquer tentativa de conversa. Os cinemas de calçada já haviam todos desaparecido, dando lugar a igrejas e outros negócios igualmente rentáveis.
Nesse contexto, uma pequena casa situada na rua André Marques, nos arredores do Parque Itaimbé, começou a mobilizar uma turma de simpáticos desordeiros envolvidos com o muy amplo universo da cultura. Foi nesses encontros dominicais, sob o pretexto de frequentar as sessões do Cineclube Porão, que muitas pessoas compartilharam ideias e projetos que floresceram, ganharam a luz do sol ou mofaram antes de chegar ao calor do asfalto. A casa em questão era a sede central da TV Ovo, que eu vim a conhecer através do então colega no curso de História da UFSM, o Marcos Borba, articulador incansável do coletivo de audiovisual criado anos antes na Vila Caramelo.
Rapidamente, foi se formando uma malta multi-facetada de artistas visuais, escritores, teatreiros, cineclubistas, zineiros, músicos, agitadores e curiosos. O vinho que se bebia em copos descartáveis entre um filme obscuro de David Lynch e um curta-metragem de autor semi-anônimo também inflamava os debates sobre criação, contexto social e políticas culturais. Não que se maturassem ali apenas projetos bem definidos, ou alguma fórmula infalível para solucionar os obstáculos muito concretos que se interpunham entre o desejo realizador e a viabilidade efetiva das ideias. Era mais como uma caixa de ressonância em que se excitavam mutuamente as inspirações, os imaginários, as evocações aleatórias. Aquele pátio discreto foi, ao mesmo tempo, um ambiente fértil e um potente fertilizador cultural.
Não reluto em afirmar que a TV Ovo está no germe intuitivo de vários projetos que só se tornaram possíveis graças aos encontros estimulantes que aquela casa proporcionou. Para mim – e, tenho certeza, também para muita gente da minha geração em Santa Maria -, essa fonte de inspiração foi decisiva na formação política e cultural. Sem medo, aliás, de assumir os entrecruzamentos dessas duas categorias essenciais à existência coletiva.
Com o passar dos anos e a consolidação da TV Ovo como uma entidade cultural de primeira importância na cena de Santa Maria, também passamos a acompanhar os dramas que todo projeto de interesse público, sem o devido amparo, enfrenta em sua trajetória de independência criativa. A falta de segurança quanto à permanência em um local adequado para abrigar as diversas atividades e agentes que orbitam o núcleo da TV, com certeza, não foi das menores preocupações com que se depararam os responsáveis pela sua gestão.
Por isso a necessidade de comemorarmos euforicamente a notícia da doação em definitivo do sobrado que a TV Ovo já vinha ocupando na Floriano Peixoto. Nada mais justo que os espaços históricos da cidade sejam convertidos em células de convivência e criatividade, os contrapontos mais eficientes e saudáveis à proliferação miserável da violência – seja ela paisana ou fardada.
Nos 20 anos da TV Ovo, que me perdoem o clichê, o presente é nosso. Eu, como feliz testemunha do que esse povo fazia quando dispunha apenas de um porão e meia dúzia de cadeiras velhas de cinema, mal posso imaginar quando enfim tiverem as condições de restaurar integralmente o sobrado da Floriano. Só sei que quero estar lá pra viver o que virá.
Texto: Atílio Alencar
Fotografia: Rafael Happke
Gráficos: Laura Storch