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Do livro ao tabuleiro

Autor americano reconta a mitologia brasileira em multiplataformas



Quando os livros começaram a invadir a grande rede – por meio da simples digitalização, em meados da década de 1970, ou através dos e-books -, o maior receio da indústria criativa era a morte do formato impresso. Pesquisa da consultoria internacional Euromonitor com base na venda de e-readers, divulgada no último dia 9 de abril no jornal Folha de São Paulo, mostra, porém, que a venda dos livros digitais nos últimos dois anos estancou na Europa e Estados Unidos. No Brasil, ainda representa 4,27% do volume total de vendas, segundo relatório Global Ebook Report, apresentada ao mercado editorial no dia 11 de abril – dados que apontam que a transição definitiva entre impresso e digital ainda é tímida.

 

Entretanto, a internet também abriu as fronteiras para o livro como o conhecemos hoje. Um dos fenômenos é a transmidiatização do produto. O conceito, definido por Henry Jenkins em Cultura de Convergência, nada mais é do que o uso de várias plataformas midiáticas para contar uma história. No sul do Brasil, o autor americano radicado em Porto Alegre Christopher Kastensmidt resolveu adaptar o modelo para a obra A Bandeira do Elefante e da Arara.

 

O livro de Kastensmidt conta as aventuras do holandês Gerard Von Oost pelo Brasil colonial. Já lançado em três edições pocket no país e em seis e-books no exterior, o autor prepara também um romance e um jogo de tabuleiro sobre o livro, a serem lançados ainda este ano pela Editora Devir.

 

Formado em Engenharia da Computação, Christopher Kastensmidt é nerd convicto e ex-auxiliar de contas de empresas como Intel e Ubisoft. Em 2001, deixou a Califórnia e imigrou para Porto Alegre para trabalhar com a Southlogic Studios, empresa de games que, à época, ainda era apenas uma ideia em incubação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lá, ajudou a desenvolver games como o Wedding Design (Casamento dos Sonhos no Brasil), que vendeu mais de 1 milhão de cópias nos Estados Unidos e chamou a atenção da Ubisoft para a pequena produtora. Embora não trabalhasse com a narrativa de games na época, as atividades o despertaram para o potencial de uma paixão antiga: a literatura fantástica.

 

Fã do gênero desde a infância, o autor começou a escrever pequenos contos sobre a mitologia brasileira e o Brasil colonial, principalmente sobre as Bandeiras, expedições particulares realizadas no período da colonização. Em 2007, começou a escrever contos e enviá-los para publicação em revistas especializadas no exterior.

 

“Vim ao Brasil pela primeira vez em 1997, sem saber dizer sequer ‘obrigado’. Comecei a ler alguns livros de história para entender como era o país, e foi o que começou a gerar histórias na minha cabeça. A época dos bandeirantes foi algo que me chamou a atenção, e o folclore eu comecei a estudar depois, em 2002, quando começamos um projeto da Southlogic para desenvolver um game com mitologia brasileira. Demorei três anos para publicar. Para aquela primeira história eu li mais ou menos 20 livros. Naquela época eu já comecei a pensar em uma série, aberto a mais aventuras”, conta Kastensmidt.

 

Em 2010, ano em que a Editora Devir iniciou a primeira publicação da franquia, o autor começou a recontar a mesma história no formato de quadrinhos. No ano seguinte, a obra foi indicada ao Prêmio Nebula, considerado o Oscar da literatura fantástica, o que criou um novo impulso para a série. “Fui na Fantasticon (evento de Fantasia realizado em São Paulo) em 2010 e conheci o Caruso, meu editor. Eles trabalham muito com RPG e todas essas coisas nerd que eu adoro. Foi por isso que pensei na ideia dos quadrinhos, do jogo de tabuleiro; tenho um projeto de RPG de mesa que já passou na Lei Rouanet. Vou juntar os livros pocket, mais sete histórias e publicar um romance de 350 páginas. O próprio jogo de tabuleiro é baseado no romance”, acrescentou. Há ainda o projeto para uma animação, mas ainda sem fonte de financiamento.

 

 

A ideia do conceito de transmídia é criar diferentes conteúdos para diversas plataformas, expandindo o universo de uma história e, o que é mais importante, criando um engajamento do leitor. Para o autor, os novos escritores do século 21 devem repensar o conteúdo e criar uma comunidade. A internet, segundo ele, consegue abrir espaço para quem está se lançando no mercado, mas ainda há muito o que se discutir no quesito direito autoral.

 

“No mundo digital o autor ganha muito mais por cópia vendida, mas eu estou muito preocupado com direitos autorais. As grandes editoras querem o direito de tudo. Se você conseguir um público antes de levar (a obra) para a grande editora, ganha muito mais poder de barganha. Foi por isso que decidi fazer esse trabalho de marketing. Hoje eu não abro mão, o valor do autor é a sua propriedade intelectual”, pontua.

 

Fantasia para despertar

 

Fã de J.R.R Tolkien e das antigas revistas pulp, Christopher reconhece, porém, que a literatura de fantasia ainda tem dificuldades para crescer, principalmente no Brasil. Já instalado em Porto Alegre, o autor se reuniu com amigos e fundou dois movimentos de promoção ao gênero no país: a Odisseia de Literatura Fantástica, evento anual iniciado em 2010, e o Concurso Hydra, premiação bienal feita em parceria com a revista americana Orson Scott Cards Intergalatic Medicine Show, voltada para novos autores. A Odisseia não acontecerá em 2016 por falta de financiamento.

 

“Em 2001, logo quando cheguei, fui num dos sebos de Porto Alegre e tentei achar alguma coisa da literatura fantástica nacional, mas nada. Perguntei para o dono do sebo se havia algo de fantasia nacional, mas ele me olhou com uma cara estranha e disse: ‘O Brasil não precisa de ficção científica, o Brasil é ficção científica.”, relembra Kastensmidt. “A gente vê que o próprio romance, no Brasil, só começou no século 19. Então, desde aquela época, existia algo contra a literatura fantástica. Monteiro Lobato foi um dos que lutou contra isso, mostrou que a gente precisa de conto de fadas, de fantasia, pois é imaginação. Como uma criança que não tem imaginação vai crescer algum dia e entender o que é justiça? É um conceito totalmente abstrato. Se a gente só vive com o papável, não alcançamos as abstrações”.

 

Kastensmidt também costuma visitar escolas para fazer a divulgação d’A Bandeira – uma forma não só de criar uma comunidade de leitores, mas de incentivar a leitura. “O jovem é o melhor leitor do mundo. Quem gosta de livro com 13, 14 anos gosta mesmo, vai te dizer se gostou ou não de verdade. Muitas vezes professores falam comigo e agradecem, porque eu escrevo algo sobre o Brasil que às vezes é menosprezado. Tem criança que nunca leu nada na vida e agora está lendo. Incentivar a leitura é a melhor coisa do universo. A própria leitura cria uma empatia muito forte, a gente enxerga o mundo pelos olhos do outro, da forma como o autor o expressa. Isso vale todo o processo”, pontua.

 

Caminhos para o digital

Entusiasta do livro eletrônico, o autor também defende que a escola seria uma das instituições mais beneficiadas pela adoção do ebook. “Para mudar os livros didáticos de todo o estado o custo é altíssimo, no caso do livro físico. Mas tendo o ebook você só precisa baixar a nova versão. E também, nas escolas há muito ensino de livros [que já estão em] domínio público, o que já corta um grande custo. O governo vai chegar em algum momento a essa conclusão, o ebook faz muito mais sentido na escola”, avisa.

 

A transição entre o digital e o impresso ainda não dá sinais de ser uma via consolidada. De acordo com reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 9 de abril, dados da consultoria Euromonitor mostram uma redução no mercado de livro digitais no Brasil, e uma estagnação que já atinge Estados Unidos e Europa. A análise é feita com base nas vendas de leitores digitais (e-readers, como Kindle, Kobo e Lev). Em 2014, as vendas no Brasil somaram US$ 2,3 milhões, e no ano passado US$ 2,4 milhões. A projeção da Euromonitor, no entanto, é que as vendas cheguem à casa de US$ 1,1 milhão em 2020 (veja mais no infográfico). O coletivo Amigo dos Editores Digitais lançou nota na mesma semana rebatendo os dados contidos na reportagem, uma vez que não contabiliza a leitura em outros dispositivos, como tablets e smartphones. Além disso, como a maioria das representantes das vendas de livros eletrônicos, como a  Amazon, não abrem os dados da comercialização dos ebooks, dificultando ainda mais uma leitura sobre o panorama atual.

 

 

Reportagem: Nadjara Martins
Infográfico: Vitória Rorato
Fotografias: Rafael Hapke

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