Nos últimos anos, não faltaram exemplos de obras literárias que nasceram no impresso e encontraram, na internet, um espaço inesgotável para a ampliação de um universo fictício. Exemplo disso é o Pottermore, plataforma criada em 2009 pela autora J. K. Rowling para os fãs da saga do bruxo Harry Potter. Mas não só isso: a rede também se tornou espaço de encontro entre novos autores e editoras independentes, que buscam no público uma forma de financiar novas histórias. Foi seguindo este modelo que a gaúcha Avec Editora conseguiu publicar o quadrinho Beladona, de Ana Recalde e Denis Melo, em 2014. Ganhadora do HQ Mix 2015, considerado o Oscar dos quadrinhos e artes gráficas, a história arrecadou R$ 38 mil na plataforma de financiamento coletivo Catarse, o que possibilitou sua publicação em formato impresso.
Criada em 2014, a empresa tem como foco abrir espaço para novos autores de literatura fantástica e quadrinhos no Brasil – uma herança, também, da Editora Vecchi, responsável pela publicação do quadrinho Tex no país, e mantida pela família de Artur Vecchi, proprietário da Avec, entre as décadas de 1930 e 1970.
De acordo com o editor, a publicação de uma história envolve, hoje, mais do que a qualidade da obra: também pede engajamento do autor na construção de uma base de fãs, atuação em mídias sociais e proximidade com os leitores. “Acabou-se o tempo em que se escrevia uma obra-prima e ela se vendia sozinha”, resume.
Artur participou do evento “O profissional do livro e o mercado editorial”, realizado pelos cursos de Produção Editorial e Letras da Universidade Federal de Santa Maria nos dias 12 e 13 de abril. Nesta entrevista concedida à revista Arco, o editor comenta os desafios da inserção de novas editoras no mercado brasileiro.
Você tem formação em Direito, Administração e Economia. Por que decidiu se aventurar no mercado literário? Como surgiu a ideia de montar a Avec? Qual o significado do nome da editora?
Eu cresci no meio editorial. Meu pai dirigia uma editora até os meus nove anos, mas depois, por crise financeira e briga familiar, ele saiu. Dois anos depois a editora foi comprada pelo Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Na verdade, eu sempre gostei de editorar, durante o colégio fui editor do jornal do grêmio estudantil chamado Corrente Alternativa. Depois de formado em Economia, com 21 anos, abri uma editora chamada Nova Vecchi, que lançou livros de RPG e fez trabalhos terceirizados para a Finep, entre outros. Mas depois de dois anos com a Nova Vecchi, o mercado ofereceu algumas oportunidades irrecusáveis. Fechamos a editora e segui sendo executivo da Hermes, RBS e Telefônica, fiz mestrado em marketing. Neste meio tempo, também criei um site de cultura pop chamado Sobrecarga, que durou três anos. Continuei acompanhando o mercado literário e após ir em uma Odisséia de Literatura Fantástica [evento anual dedicado ao gênero fantasia], onde conheci outros editores, a vontade de voltar a editar voltou mais alto e abri a Avec Editora. AVEC quer dizer “com” em francês; nossa logo são duas peças de quebra-cabeça unidos, já que prezo muito a colaboração de autores, editores e toda a equipe. Há outros significados também: a palavra Avec tem a mesma sonoridade de Editora Vecchi, remetendo ao passado, mas sem de fato copiá-lo.
Apesar de ser uma editora de pequeno porte, a Avec, em dois anos de atuação, tem um catálogo formado por muitas obras internacionais. É uma decisão da editora buscar autores estrangeiros? Por quê? Há uma demanda por estes títulos?
Na verdade, não temos até o momento nenhuma obra internacional. Todas nossas obras são nacionais. Queremos prestigiar muito o autor nacional e nossas obras , em seus gêneros, não devem nada aos best-sellers internacionais. Tanto em texto quanto em diagramação.
Em 2016, iremos lançar alguns quadrinhos europeus: teremos um título sueco, um alemão e três holandeses, além de autores nacionais. Foi uma decisão estratégica diante da quantidade e de títulos europeus que não chegam no Brasil e do posicionamento da editora em produzir livros no formato europeu, como [a HQ] O Coração do Cão Negro, que está sendo lançando agora por dois autores gaúchos, Cesar Alcázar e Fred Rubim.
Por falar no catálogo, a Avec parece ter forte tendência em trabalhar a literatura fantástica e quadrinhos. Por que a escolha por tais gêneros?
Porque a editora não pode abraçar o mundo. Como te disse antes, minha experiência pessoal de 20 anos foi com uma editora que lançou RPG, depois tive um site de cultura pop, meus contatos todos eram nessa áreas. Quando decidi montar a editora, em princípio, quis trabalhar com material no qual eu realmente poderia dizer se o texto é bom ou não, e que eu pudesse ter algum diferencial para distribuição e divulgação.
“As obras brasileiras não devem nada aos best-sellers internacionais”
Outra característica observável no catálogo da editora é o trabalho com heroínas femininas, como é o caso de Storm e January Jones. O segmento quadrinhos tem dado abertura maior para estss personagens? Por quê?
É um processo mundial de empoderamento feminino, estamos vendo isso em filmes como Star Wars, entre outros. Nós da Avec queremos fazer parte disso. Dentro da Avec não temos discriminação quanto a gênero ou orientação sexual. Lançamos em 2015 um romance sobrenatural, da autora pelotense Ju Lund, onde temos Duda, que se apaixona por Esther, uma vampira, e as duas sofrem duplo preconceito, por serem mulheres e por serem de raças diferentes.Este ano lançaremos o primeiro livro da série Filhos da Lua, da autora Santista Marcella Rossetti. O importante é a qualidade do texto e não se o autor é homem ou mulher.
Quais os desafios enfrentados pelas pequenas editoras no mercado brasileiro?
O principal desafio é distribuição e divulgação dos títulos. É duro ter que competir com o grupo Record, que traz para o mercado 30 a 40 títulos novos por mês. Quando estava iniciando, liguei para uma grande rede de livrarias, e ela me perguntou quantos títulos eu tinha no catálogo. Eu disse um, e ela respondeu: “com menos de 100, nem nos procura.” Teve um distribuidor que riu da minha cara quando disse que só tinha um título no catálogo e queria que ele me distribuísse. Quanto mais ficamos conhecidos, aos poucos as portas vão abrindo, mas é uma batalha diária e não podemos errar. Um título que não seja bom e muitas dessas portas se fecham novamente.
A Avec também é responsável por ter lançado um dos quadrinhos de financiamento coletivo que teve melhor campanha no Brasil, o Beladona. Como você avalia a experiência? É possível enxergar uma tendência neste tipo de financiamento ou depende da obra? Esta pode ser uma saída para o financiamento da indústria de livros no país? Há expectativa de que a Avec lance outros livros desta forma?
Eu adoro o financiamento coletivo, é uma maneira de autores e editoras reduzirem o risco, principalmente em um primeiro lançamento, quando todos são desconhecidos. A experiência com o Beladona foi sensacional, ter na editora um quadrinho que ganhou o prêmio HQMIX [considerado o Oscar dos quadrinhos e artes gráficas], com a qualidade que é o trabalho da Ana Recalde e do Denis Mello, é sensacional. Gostaria muito de estar ajudando autores e terem visibilidade no mercado brasileiro, mas o grande problema do financiamento coletivo é a qualidade das obras. Tem algumas que se sobressaem mas, em grande maioria, os autores ainda não estão prontos para disputar prateleira com o material importado.
“Hoje o autor tem que ser engajado. Acabou-se o tempo em que se escrevia uma obra prima e ela se vendia sozinha.”
Um fenômeno muito forte na cultura literária do brasileiro é o chamado fandom, quando os fãs se tornam engajados com um autor ou obra. Como deve ser a relação das editoras com esse público? Essa relação traz benefícios para a produção do livro?
Hoje o autor tem que ser engajado, tem que construir a sua base de fãs. Acabou-se o tempo em que se escrevia uma obra-prima e ela se vendia sozinha. Infelizmente, hoje o autor além de escrever tem que ser ativo em mídias sociais, participar de eventos, estar mais próximo dos seus leitores.
Reportagem: Nadjara Martins
Fotografias: Rafael Happke
