Os produtores de alimentos tradicionais são tão valorizados quanto os seus produtos, que vão parar em restaurantes de alta gastronomia? Esse foi um dos questionamentos que moveram a pesquisa da professora do curso de Gastronomia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Tainá Zaneti. Ela queria descobrir o que havia “por trás das panelas”, o que resultou na dissertação de mestrado “Das panelas das nossas avós aos restaurantes de alta gastronomia: os processos sociais de valorização de produtos agroalimentares tradicionais”.
Os resultados da pesquisa foram tema da aula inaugural do curso de Tecnologia em Gestão de Turismo, vinculado à Unidade Descentralizada de Educação Superior da UFSM em Silveira Martins (Udessm). O evento aconteceu no dia 7 de abril em Santa Maria. A revista Arco conversou com a professora Tainá pra buscar entender de que maneira a gastronomia, entendida como processo social, deve ser desenvolvida em conjunto com outras políticas públicas.
Como surgiu o interesse por esse tema?
Eu fazia Gastronomia e Agronegócio. E comecei a entender que a gastronomia transcendia o ambiente da cozinha. Eu via que os produtores rurais estavam passando por muitas dificuldades, ao mesmo tempo em que estavam se formando novos mercados para eles justamente com produtos tradicionais. Muitos chefs buscavam diretamente esses produtos locais dos produtores, mas os estudantes de Gastronomia não tinham a menor noção de como os produtos eram produzidos. Eles queriam produtos de qualidade, mas não tinham ideia do processo produtivo.
Quando me formei, fiz uma especialização em Tecnologia de Alimentos e comecei a participar de um projeto de valorização de espécies nativas do cerrado. Me dei conta que a gastronomia pode auxiliar o desenvolvimento rural quando ela transforma esses produtos tradicionais do cerrado em objetos de desejo. E então comecei a ver como se dava esse processo das panelas das nossas avós aos restaurantes de alta gastronomia.
Então isso é uma deficiência dos próprio curso? De os estudantes não conhecerem a origem ou os valores imbricados na produção desses produtos?
Exatamente. Quando eu me formei não existia disciplina de gastronomia brasileira, por exemplo. Isso já era uma deficiência, não ter uma disciplina falando da gastronomia do nosso próprio país. E muito menos de sistemas produtivos de contextos alimentares – isso não era uma realidade.
A gastronomia tem que ser valorizada como cultura e como ingrediente, para o fortalecimento da agricultura familiar.
Hoje em dia, como professora, eu busco instruir os alunos a fazerem visitas técnicas em fazendas, trazer produtores ou levá-los aos produtores para que eles possam se aproximar da temática mais importante para um cozinheiro, que é o ingrediente. E também o produtor, que é quem fornece a maior ferramenta de trabalho de um cozinheiro.
Você escreve no seu trabalho que a gastronomia transcende o ambiente da cozinha e a partir dela é possível construir pontes para uma sociedade mais desenvolvida, igualitária e justa. Em que sentido ela auxilia nesse processo?
Quando eu falo que ela transcende o ambiente da cozinha é porque eu vejo a gastronomia como o acesso à alimentação como um todo. Estamos falando de um país que acabou de sair do mapa da fome. Falar em alimento de qualidade, em sabor, é até um pouco paradoxal. [As pessoas podem pensar:] “Como você está falando de sabor se nós não temos dinheiro nem para comer, não temos nem acesso ao alimento?”.
Eu proponho a gastronomia como uma ferramenta de incluir as pessoas. Não só no acesso ao alimento, [pela] função biológica de sobreviver, mas no acesso democrático, [pela] escolha do alimento. Poder comer um alimento gostoso, um alimento que foi construído dentro de uma relação comercial justa. E de um alimento limpo, sem agrotóxicos. Um alimento seguro, tanto no sentido de inocuidade quanto no sentido de segurança alimentar. De me garantir alimentos em quantidade necessária mas também em qualidade.
A gastronomia, então, não atuaria sozinha. Ela teria que ser desenvolvida com uma série de políticas públicas para que isso de fato aconteça…
Exatamente. A gastronomia não anda sozinha. Ela é uma ciência interdisciplinar e ela é um processo social. Ela acompanha os movimentos da sociedade e precisa de outros pilares para que possa se constituir como um elemento na cesta de políticas de desenvolvimento social. No Brasil, principalmente nos últimos 12 anos, nós temos trabalhado intensamente com políticas sociais e a gastronomia por essas mudanças que ela vem se apropriando de algumas outras áreas ela consegue conversar com essas políticas sociais que vem se estabelecendo no Brasil.
O Ministério do Turismo hoje tem investido muito mais em gastronomia do que outros ministérios, como o da Agricultura, por exemplo. Que pistas isso deixa sobre a política alimentar que está sendo feita?
Isso é complicado porque, na verdade, ainda existe uma visão muito caricata do que é a gastronomia. [Ela é pensada] como um restaurante chique, um restaurante caro, um restaurante quase inacessível. Mas a primeira coisa para que essa gastronomia seja uma ferramenta de desenvolvimento é que seja quebrado esse estigma. A gastronomia pode sim ser democratizada, pode ser acessível a todos. Para que ela esteja inserida nesses outros ministérios, e nas cesta de políticas desses ministérios, é [necessário] a valorização e o conhecimento da gastronomia brasileira – e isso vai além da feijoada, vai além do churrasco.
É preciso que seja feito um levantamento dos ingredientes, utensílios, modos de fazer e modos de comer dos ingredientes e preparos brasileiro. É preciso que se entenda que a gastronomia compõe um sistema que vai desde a produção do alimento até o descarte – e isso é muito importante, pois o Brasil descarta um terço dos alimentos produzidos e isso também tem que ser revisto. A gastronomia tem que ser valorizada como cultura e como ingrediente, para o fortalecimento da agricultura familiar. A gastronomia começa na produção, [mas também existe a questão do] descarte, pessoas que catam esse descarte. Esses atores são incorporados no processo e precisam ser cuidados, identificados e valorizados.
Você comentou sobre a característica da sociedade ser muito hedonista, sempre na busca pelo prazer. Como isso tem influenciado nos nossos gostos alimentares?
Esse é um processo de gastronomização, que é a busca pelo prazer, busca pelas técnicas culinárias, por produtos diferenciado. O que eu observo hoje é uma maior procura – e um gasto maior – por ingredientes diferentes, locais ou exóticos. Por um lado um gasto de tempo, para ver programas de televisão, para comprar livros de cozinha. E um gasto financeiro, no sentido de comprar produtos diferentes, investir em restaurantes, conhecer técnicas diferentes e até fazer pequenos cursos de gastronomia.
A capacitação gastronômica permite o melhoramento do produto e pode contribuir para que o produtor tenha orgulho da profissão e do seu modo de vida.
Um dado importante que deve ser falado é que dos anos 2000 até 2012 tivemos um incremento de mais de 250% na formulação de cursos de gastronomia no Brasil. Além do consumo alimentar, que tem mudado no sentido de aprimoramento de técnicas e ingredientes, também existe uma busca maior pela instrução em gastronomia.
Você abordou que o produtor não conhece os capitais que estão envolvidos no processo final do que ele produz. Que mudanças poderiam acontecer para ele, e mesmo para o ambiente que ele vive, caso o produtor conhecesse e tivesse acesso a essas técnicas?
Uma experiência muito interessante tem sido feita no Peru, com a Associação Peruana de Gastronomia, porque ela insere o produtor como um associado da alta gastronomia. Isso já é um indício. O próprio produtor [passa a] participar da organização social de gastronomia. A segunda coisa é justamente trabalhar processos de capacitação gastronômica para esses produtores, para que eles tenham acesso a técnicas culinárias para fazer o melhoramento do produto deles, e também adequar seus produtos para esse mercado.
Não que os produtores tenham que se moldar ao mercado, não acho isso, mas tendo acesso à informação, fazendo oficinas de gastronomia, sendo capacitados, eles têm muito mais noção do valor do produto, de como ele pode ficar gostoso e bonito. Isso é uma das coisas que mais me emociona, quando o produtor vê o seu produto no restaurante e fala: “Nossa, não acredito que meu produto fica tão gostoso e bonito”. Ele fica muito emocionado.
Então, imagina se ele tiver acesso a como fazer – e assim elevar sua autoestima, elevar o orgulho do seu produto e entrar em novos mercados. Ou que, pelo menos, ele tenha mais orgulho da profissão, do modo de vida e dos produtos que produz.
Reportagem: Gabriele Wagner de Souza
Fotografias: Rafael Happke