Esta é uma versão adaptada do texto originalmente escrito para a disciplina Jornalismo Literário, ministrada pelo professor Paulo Roberto Araújo.
Desde 1966, Santa Maria está acompanhada pelos acordes rigorosos e harmônicos de sua Orquestra Sinfônica. Criada pelo professor Frederico Richter apenas três anos após o surgimento do curso de Música da UFSM, a Sinfônica não apenas integra a história da cidade, mas colore com sons afinados um imaginário de beleza e cultura que continua fincado no coração do Rio Grande.
Em dezembro de 2015, o repórter Guilherme Gabbi seguiu a rotina de ensaios do maestro Cláudio Antonio Esteves, regente da Orquestra. E é essa história que você conhece agora.
O palco do cotidiano
Entro na sala localizada no segundo andar do prédio que servia, antigamente, como Hospital Universitário. Desde 1980 a Orquestra Sinfônica de Santa Maria tem esse local para seus ensaios. Trinta e quatro estantes estão dispostas no ambiente para apoiar as partituras, contribuindo com as canções escritas em uma língua mágica de claves musicais, tempos, contratempos e ritmos.
Nesse pequeno espaço, os instrumentistas ensaiam regularmente. Cada um em sua posição, os instrumentos começam a ser afinados, e o ensaio começa a tomar forma. A afinação começa pelas cordas, e é sempre comandada pela líder do naipe de primeiros-violinos da orquestra. A essa função, dá-se o nome de Spalla. Em seguida, os metais começam a aquecer, o som é retumbante e muito bonito.
Primeiro são os sons de sopros, metais, tambores, violinos, violas, contrabaixos, piano e clarinetes que começam a ecoar. O regente segura uma batuta, varinha usada para indicar o andamento dos instrumentos, e recomenda as canções que serão tocadas. Cláudio Antonio Esteves, além de maestro, é vice-diretor do Centro de Artes e Letras da UFSM. Com ouvido sensível, o homem de cabelos curtos e grisalhos, com barba igualmente grisalha e bem feita, mede mais de 1m80cm de altura e interrompe o ensaio diversas vezes, comunicando atrasos de tempo do contrabaixo, ritmos alterados dos violinos, batidas adiantadas da percussão.
“Vamos lá pessoal, vamos passar de novo essa parte, começando a partir do compasso 43”.
A audição do maestro é sensível e atenta aos mínimos erros e detalhes dos instrumentos, o que exige conhecimento musical e um ouvido impecável. Paciência e compreensão também são fundamentais.
“Nós temos músicos muito experientes, mas também temos pessoas que estão aprendendo agora. E a gente tem que coordenar isso. É um trabalho cansativo, pode ver, eu fico bastante cansado, suei três vezes durante o dia. Logo que me secava já suava de novo. E bem, agora já estou novamente seco”.
Além de Cláudio, Alexandre Eisenberg e Marco Antonio Penna têm a função de reger os instrumentistas e o Coral de vozes da UFSM, que também participa do ensaio. Tocando Viola nos concertos, Penna é muito concentrado, irrepreensível no que faz, e, sem nenhuma arrogância, toca ao lado de quem for, experiente ou não. Marco Antonio é o atual diretor da Orquestra, tendo substituído Ênio Guerra na sua aposentadoria, em 2014. É ele que me conta que essa é uma das mais antigas Orquestras Universitárias do país e a segunda orquestra mais antiga do Rio Grande do Sul. Marco é um homem de estatura mediana, em torno de 1m70cm, com cabelos grisalhos penteados para cima, no sentido testa-nuca. Homem de cor bem branca e barba grisalha muito bem feita.
O ensaio finalmente começa. Alguns alunos vão chegando atrasados, se postando frente a seus instrumentos, e com o tempo o ensaio vai tomando forma.
As cordas dos violinos são tocadas suavemente pelas cerdas do arco – o bastão utilizado para tocar o instrumento, produzido com crinas de cavalo ou algum material sintético equivalente. O violino é o instrumento mais agudo de sua família – que contém também a viola e o violoncelo– e pode produzir sons relaxantes e até sombrios.
Logo após, entram os metais, que fazem a pequena sala vibrar. Entre trompetes, trombones e trompas, os metais mais pesados ecoam no ensaio. Além deles, flauta, flautim, oboé, clarineta, clarineta baixo e fagote são os instrumentos de sopro presentes no ensaio. Com a entrada de pratos, tambores, e um surdo muito grande, a vibração da música pode ser sentida pelos meus órgãos mais internos.
As bocas dos instrumentistas se enchem e se esvaziam de ar. Os dedos se movem, os braços sustentam os metais dourados e torcidos que dão a forma aos instrumentos. Os lábios no bocal de cada instrumento, e a primeira música dura cerca de quatro minutos.
Para os estudantes de Música da UFSM, a Orquestra é disciplina curricular que aparece já no terceiro semestre. Mas os integrantes da Orquestra não necessariamente são estudantes de música. Lara Montero é estudante de Letras-Português na UFSM e participa da Sinfônica de Santa Maria desde 2009. Ela veio de Ribeirão Preto, cidade localizada no estado de São Paulo, e mora em Santa Maria há cerca de 15 anos. Com 20 anos de idade, 16 são de conhecimento e intimidade com seu instrumento, o violino. Lara apoia o violino no ombro, os dedos da mão esquerda se movimentam rapidamente, enquanto a direita assume maneiras apressadas e suaves, traçando no ar a vara de madeira com fios de crina de cavalo.
Tu pode ver que o trabalho é árduo – fala Cláudio, com seu tom suave e natural de sua voz, que a essa altura já demonstra também o cansaço do regente – é devagar. A gente faz uma lapidação dos alunos. Não é ao todo um pessoal especializado, mas tá saindo certo. Muitos vêm do interior, muitos são alunos da Música, e com eles têm uma exigência maior. Eu mesmo vim do interior. E, bom, é um sonho pessoal realizar esse repertório– arremata a conversa Cláudio, antes de partir para a próxima música.
Primeiros acordes
A fundação da Orquestra Sinfônica de Santa Maria contou com o apoio de Mariano da Rocha Filho, reitor da UFSM na época, e precisou da experiência de músicos vindos da capital, Porto Alegre. A Orquestra era formada pelo conjunto de instrumentos de corda, e se caracterizava por ser uma orquestra de câmara, identificada pela presença de entre oito e 20 integrantes. No mesmo ano, o professor Richter convidou músicos locais para uma orquestra que não dependesse mais de participantes de outras cidades.
Em 1981, graças ao projeto “Orquestra Possível”, eram aceitos todos os instrumentos que se apresentavam. Em 1988, com a Associação Cultural Orquestra Sinfônica de Santa Maria, novos instrumentos foram inseridos, como trompetes, trombones, tubas, flautim, flauta, clarinete e fagote, o que tornou a Orquestra uma orquestra sinfônica.
A orquestra filarmônica e a orquestra sinfônica se diferenciam pelo fato de que, na filarmônica, quem compõem a orquestra foi quem a fundou, enquanto na sinfônica não. Atualmente, os termos também são usados para diferenciar a natureza da orquestra. Se estiver ligada a um órgão público, é sinfônica, se estiver ligada a uma instituição privada, filarmônica.
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Reportagem: Guilherme Gabbi
Fotografias: Arquivo Fotográfico UFSM – Departamento de Arquivo Geral