Crescem diariamente os registros sobre a nossa história. Documentos, fotos e livros resgatam e eternizam fatos e momentos. Os jornalistas, considerados por alguns pesquisadores como “historiadores do presente”, são uma grande fonte de produção desses arquivos.
Jornalistas que vivem e contam sobre outros países têm um desafio a mais, pois precisam compreender os acontecimentos do dia a dia e considerar a cultura e a história do lugar. Uma tarefa árdua, ainda mais quando falamos de um continente como a América do Sul, com todas as suas peculiaridades.
Correspondente dos principais países latino-americanos da Globo News há vinte anos, Ariel Palacios, que mora na Argentina, aceitou o desafio proposto pela Editora Contexto para contar a um pouco da história dos hermanos. A Arco conversou com ele sobre jornalismo, o trabalho como correspondente internacional e o processo de criação do livro Os Argentinos, lançado em 2013.
Ariel, você nasceu em Buenos Aires, mas se formou em Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina (Paraná) e tem mestrado em Jornalismo na Universidade Autônoma de Madrid. Como você percebe essa simbiose de infância entre Argentina e Brasil hoje, na tua profissão como correspondente internacional?
Minha família sempre foi muito cosmopolita, sem aquela coisa interiorana de “o lugar onde a gente mora é o melhor do mundo”. Dentro de casa sempre houve um respeito muito grande à diversidade: tenho avós italianos, outros da Catalunha, bisavós indígenas, ou seja, o mundo entrou em casa antes que eu fosse do mundo.
“O Jornalismo é uma dessas profissões que ajudam a ampliar a visão de mundo.”
O fato de ter morado em várias cidades desde criança causa certa flexibilização mental, a gente se acostuma a cenários totalmente diferentes. Quando eu tinha nove anos, as pessoas já perguntavam: “como é ‘tal coisa’ em Buenos Aires?”, “as pessoas comem feijoada lá?”, e eu respondia. Com essas explicações básicas, sem querer, eu já estava relatando a realidade em outros lugares. De certa forma, pode ser um precedente, nunca tinha parado pra pensar nisso. E o Jornalismo é uma dessas profissões que ajudam a ampliar a visão de mundo. Eu sempre gostei de história e, como correspondente internacional a gente vira um historiador do dia-a-dia.
O que eu fiz no livro Os Argentinos foi utilizar toda essa bagagem e todas aquelas histórias que eu tinha visto e fazer um resumo das minhas impressões sobre a Argentina para o público brasileiro, o que facilitou. Mesmo tendo nascido na Argentina, eu sou brasileiro e trabalho para o público brasileiro, tanto que nunca trabalhei na imprensa argentina. Então, esse distanciamento do país onde a gente está colabora muito. É uma visão estrangeira, brasileira, sobre a Argentina, para tentar explicar esses detalhes. São países vizinhos, mas muito diferentes.
Qual é o desafio de ser o responsável por pautar e discutir acontecimentos de países tão diferentes, como são os da América do Sul, para o público brasileiro?
Durante décadas os meios de comunicação brasileiros tiveram correspondentes apenas na Europa e Estados Unidos, durante certo tempo até na Ásia. A cobertura sobre a América Latina era muito irregular nas décadas de 1960, 70 e 80. Não havia correspondentes fixos, os jornalistas eram mandados para fazer uma reportagem e depois voltavam para o Brasil. A Argentina não gerava interesse permanente. Só a partir de meados dos anos 1990 é que passou a haver esse interesse constante sobre a Argentina e, naturalmente, sobre os outros países do continente.
Mas cada caso é diferente. Por exemplo, o Chile interessa todo o dia no Peru e vice-versa, mas os dois países não interessam ao Brasil e Argentina. A Venezuela interessa nos últimos 10 anos por causa do Hugo Chávez e do Nicolás Maduro. Se um dia acabar o governo de Maduro, o interesse vai cair, porque o que se publica hoje está relacionado totalmente ao chavismo. Na Argentina, não. Mudam os governos, mas ela continua sendo interessante pela economia, política, cultura, esporte, o que for. Aliás, se publica muito mais sobre a Argentina no Brasil que o contrário.
Como o correspondente internacional realiza a interpretação dos fatos de determinado país para transmití-los a outro, facilitando a compreensão do público?
Relatando e explicando os fatos para um público que não está acostumado com o contexto. Por isso a importância do panorama histórico, político, cultural: para o público entender e não cair no clichê. O correspondente precisa ter uma capacidade de síntese grande para fazer com que os outros entendam algo complexo. Sempre alertando para não cair no clichê, na simplificação, porque a interpretação dos fatos acaba sendo pífia.
O termo populista, por exemplo, se aplica a todo o leque ideológico, da direita à esquerda. Nicolás Maduro e Cristina Kirchner são populistas, Silvio Berlusconi, que é de centro-direita, também. O Donald Trump é outro. Ou seja, populismo está no leque todo, quando o político recorre ao apelo emocional com discursos retumbantes. Não é o que se fala, mas como se fala. Por isso, eu me preocupo em usar as palavras de forma rigorosa, para ser exato. O jornalismo precisa ser exato, rigoroso, mas elegante.
Em 2013, você ingressou no mundo editorial com o livro Os Argentinos. Qual foi o ponto de partida para colocar a ideia em prática?
Quando eu mudei para Buenos Aires, em 1995, eu tinha a ideia de algum dia escrever um livro sobre a Argentina. Sempre fui admirador de alguns escritores que escreveram sobre países que não eram os seus – que é o meu caso. Embora tenha nascido na Argentina, sou brasileiro, fui alfabetizado em português.
Desde o início eu sabia que, para fazer um livro sério, seria necessário mais que alguns meses e anos, que eu precisava estar por dentro mesmo. Então, além do trabalho diário, que vai te informando mais sobre o país, precisei ler, ler e ler muito sobre a Argentina. Fui juntando material sobre o assunto e, no ano 2000, comecei a ter mais rigor em preparar o trabalho do livro.
Coincidiu que, em janeiro 2012, me ligaram da Editora Contexto, explicando que estavam com um projeto que tratava de diversos países e perguntaram se eu gostaria de falar sobre a Argentina. Expliquei que já estava escrevendo um livro há alguns anos e o projeto deles batia 60% com o meu. Eles queriam outros detalhes que eu acabei incluindo, tirei outra parte que não era do interesse deles. Escrevi uma primeira versão de 800 mil caracteres, mas tivemos que encolher para 400 mil, que é o formato original. Ainda tem uns 75% de livro que não foi publicado, que foi encolhido, compactado. Espero um dia publicar a versão longa e atualizada dele, aliás.
“Sempre fui admirador de alguns escritores que escreveram sobre países que não eram os seus – que é o meu caso.”
Um dos principais objetivos do livro é desmistificar alguns estereótipos argentinos. Ainda que sejam países vizinhos, há muita coisa da Argentina que os brasileiros não sabem?
A política aqui é muito mais complexa, tremendamente mais complexa. Infelizmente mais complexa que a brasileira. A economia tem outro histórico. Na Argentina ocorre, e ocorreu várias vezes, o que no Brasil não ocorre, que é a classe média ficar pobre. Quantas pessoas de classe média que você conhece viraram mendigo no Brasil? Eu não conheço nenhuma. Pode haver, mas são casos raros. Na Argentina isso acontece. Então, por isso você já percebe que a estrutura econômica é outra. Aqui já aconteceu de uma empresa ser estatizada, privatizada e depois reestatizada. No Brasil isso nunca aconteceu, de uma empresa ser privatizada e depois voltar a ser estatal.
Desde 1975, a Argentina já teve mais de 30 ministros da fazenda, enquanto o Brasil nunca passou por algo assim. E por essas diferenças de estruturas e realidade, não podemos fazer comparações simplistas. A informação imediata pode ser errônea. Por exemplo, afirmar que o peronismo é um movimento de esquerda. Não é. Vai da direita a centro-esquerda. É populista? É. Parece com o Getúlio Vargas? Não. Por isso é preciso explicar essas coisas.
Fora os mitos. Os argentinos odeiam os brasileiros? Claro que não. Até porque os argentinos vão em massa passar férias nas praias do Brasil. Há um fluxo permanente de argentinos no Brasil, anualmente, desde pelo menos 1979. Fora o consumo da música brasileira na Argentina. São essas coisas que eu tento desmistificar no livro Os Argentinos. E no livro com o Gustavo Chacra [Os hermanos e nós, Editora Contexto], sobre o futebol, da mesma maneira.
“O jornalista investigativo tem algumas ferramentas do historiador tradicional. Com uma vantagem, que é a possibilidade de poder transmitir isso com um vocabulário mais didático.”
De que modo você analisa o crescente número de obras sobre história escritas por jornalistas?
Acho um fenômeno interessante. História não é só escrita pelo acadêmico. Há muitos historiadores que não eram formados em História, eram pesquisadores por conta própria. E o jornalista, especialmente o jornalista investigativo, tem experiência em fuçar em arquivos, em documentos, procurar fontes diversas, então, de certa forma, tem algumas ferramentas do historiador tradicional. Com uma vantagem, que é a possibilidade de poder transmitir isso com um vocabulário mais didático.
O historiador, às vezes, sabe muito de história, mas não necessariamente sabe como transmitir. Tem historiadores que são fantásticos. Uma historiadora dos Estados Unidos, Bárbara Tuchman, por exemplo: você lê e é um prazer, é quase jornalístico o estilo, uma maravilha. Existe um livro de história mundial, que foi um best-seller nos anos 1940, do H. G. Wells – um escritor de ficção científica, britânico, mas que era um cara que entendia muito de história e escreveu um livro geral, muito didático, que foi uma grande obra.
Então não acho que necessariamente tenha que ser alguém formado na área. O jornalista pode ser um bom historiador. O que eu tenho visto é que muitas vezes as pessoas acabam escolhendo áreas da história que foram “esquecidas”, e oferecem algum enfoque diferente.
Reportagem: Bernardo Zamperetti
Fotografia: Arquivo Pessoal