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A entrada de alunos com deficiência nas universidades brasileiras aumentou progressivamente desde a aprovação da Lei n°12.711, em agosto de 2012, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando foi adotada a política de cotas. Entretanto, o Ensino Superior está realmente preparado para receber pessoas, para as quais, antes, o acesso era bastante limitado? Esse foi um dos pontos principais da tese da professora do Departamento de Educação Especial da UFSM Sabrina Fernandes de Castro. Sua pesquisa tinha como finalidade identificar as ações e iniciativas de universidades públicas relacionadas ao ingresso e à permanência de estudantes com deficiência, abordando impedimentos e facilitadores da continuidade desses acadêmicos nas instituições de ensino.
O estudo foi realizado em 13 Instituições de Ensino Superior (IES) públicas brasileiras. A pesquisadora entrevistou os reitores dessas instituições ou alguém que os representasse, além dos responsáveis pelos núcleos, serviços ou programas de atendimento especializados aos alunos com deficiência, e, por fim, talvez a parte mais interessada da história: os próprios discentes com deficiência.
Pela manutenção, contra a evasão
A maioria dos serviços voltados aos acadêmicos brasileiros com deficiência é recente. Dentre as iniciativas, destaca-se, particularmente, a ideia do desenvolvimento do Programa Incluir, que é do Ministério da Educação. Um dos objetivos principais da iniciativa é criar núcleos responsáveis por implementar políticas de inclusão dentro das universidades públicas. Na UFSM, o Núcleo de Acessibilidade, criado em 2007, tem como objetivo facilitar os encaminhamentos gerados pelas demandas de acessibilidade. Por isso, anexo ao Núcleo, também há a Comissão de Acessibilidade.
As ações de ambos são voltadas para alunos e servidores com transtorno do espectro autista, superdotação/altas habilidades, deficiências e surdez, que se deparam, diariamente, com obstáculos físicos e sociais existentes no ambiente universitário. Com o apoio dos núcleos, pessoas com deficiência podem desenvolver mais atividades de melhor forma, estando cada vez mais incluídas na vida acadêmica da instituição da qual fazem parte e se sentindo plenamente integradas à comunidade universitária. “São necessárias pequenas ações que tornem a universidade mais acolhedora, sua formação adequada, sua presença na instituição agradável, com o sentimento de que são realmente parte integrante da comunidade universitária”, argumenta Sabrina.
Em sua tese, a pesquisadora classifica em quatro categorias – especificadas a seguir – as barreiras que dificultam a permanência de pessoas com deficiência nas universidades.
Barreiras pedagógicas: carência de materiais didáticos adaptados e, por consequência, problemas na atuação do intérprete.
Barreiras atitudinais: comportamento dos professores em sala de aula, na maioria das vezes ainda pouco preparados;
relacionamento com os colegas; desrespeito às vagas destinadas para os deficientes em estacionamentos; obstáculos colocados em rampas, calçadas e caminhos.
Barreiras comunicacionais:
falta de acessibilidade à informação; número insuficiente de tradutores ou intérpretes em Libras para surdos; uso de lousa e murais para passar os conteúdos em sala de aula – um problema para os alunos cegos.
Deficiência visual: é de suma importância disponibilizar as provas com fonte ampliada, lupas, avaliações em braille, lupas e computador com sintetizador (DOS VOX ou outro software leitor de tela). Também é importante a ampliação do tempo de realização das provas, o auxílio de escribas (digitação em áudio) para a transcrição das respostas (assistência fiscal).
Barreiras arquitetônicas: ausência de rampas ou escarpas com inclinação adequada; calçadas sem manutenção ou construídas com pisos impróprios; portas e banheiros estreitos; falta de corrimão, sinalização, referências, mapas táteis; telefones públicos mal colocados.
Fotografia ao alcance dos olhos de todos
Na Educação Superior brasileira, existem 2203 alunos cegos, sendo que 449 estão matriculados em universidades federais, de acordo com relatórios elaborados pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2017 – os mais atualizados até o momento.
Em 2012, Rubia Sttefens, que nasceu cega, ingressou no curso de Jornalismo da UFSM de Frederico Westphalen. “Todo mundo enfrenta dificuldades, de formas diferentes, mas o fato de eu não enxergar nunca me impediu de fazer tudo como qualquer um. Meu principal obstáculo foi a falta de informação das outras pessoas. Tudo parece um ‘bicho de sete cabeças’ quando temos que enfrentar o desconhecido”, comenta Rubia, hoje jornalista. Com a entrada da aluna, a professora do Departamento de Comunicação da UFSM-FW Janaína Gomes, que dá aulas de fotografia na Instituição, tratou de adequar o ensino da disciplina. Para isso, contou com a ajuda de alguns colaboradores.
Inicialmente, o apoio veio do jornalista e fotógrafo com baixa visão Teco Barbero, que ministrou a palestra “Fotografando os Sentidos”, na UFSM/FW, além do professor Francisco de Lima, que é formado em audiodescrição pela Universidade Federal de Pernambuco, consolidando-a como tecnologia assistiva. “Teco foi fundamental para o avanço da confecção do material didático que desenvolvi. Com o professor Francisco pude compreender a psicofísica – área da ciência que estuda as relações entre as sensações subjetivas e os estímulos físicos, estabelecendo relações entre eles – como recurso para explicar o que eu e Rubia estávamos desenvolvendo, já para ensinar outros cegos a fotografar”, esclarece a docente.
Por outra lente
Teco Barbero teve dificuldades no seu período de graduação, entre 2001 e 2004, por causa da falta de adaptação na Universidade de Sorocaba (Uniso), onde estudava. “Era uma época que não se falava em acessibilidade dentro das universidades, principalmente para o curso de Jornalismo. Eu mesmo fui muito contestado, porque me perguntavam como eu faria uma foto e como eu pegaria em uma câmera”, lamenta Teco.
Segundo a professora Janaína, Teco trouxe para Frederico Westphalen algumas técnicas que aprendeu com o jornalista, fotógrafo, produtor cultural e documentarista brasileiro Werinton Kermes. A partir desses métodos, ele desenvolveu uma oficina explorando, essencialmente, os cinco sentidos do corpo humano: visão, olfato, paladar, audição e tato. Na ocasião, alunos do curso estiveram no papel de monitores da oficina de fotografia para pessoas com deficiência visual, incluindo Rubia. “Teco representou a possibilidade de termos uma aluna cega em um curso com tamanha carga de conteúdo visual. Quebrando esse paradigma, fomos atrás de capacitações e o Núcleo de Acessibilidade da UFSM foi incansável em nos atender”, afirma a professora Janaína.
A docente explica que, para o caso de Rubia, que é uma cega congênita, era necessário criar parâmetros físicos que servissem como ponto de referência para os seus enquadramentos e, para isso, tiveram que aprimorar a técnica com ajuda da matemática. Em um segundo momento, os planos mais abertos – aqueles que apresentam mais o ambiente na fotografia – precisavam ser conquistados. “Fotografia é, num primeiro momento, inimaginável para pessoas cegas, por ser totalmente visual. Eu não posso ver as imagens, mas posso mostrar para os outros o que eu quero ou o lugar onde estou. De certa forma, apesar de não enxergar, fotografar é também estar participando do mundo cada vez mais visual que vivemos atualmente”, afirma Rubia.
Na linha do horizonte
Neste processo de ensino-aprendizado, foram construídos muitos instrumentos, inclusive, com materiais de PVC, MDF e barbante. Com eles, segundo Janaína, o aluno é capaz de entender que precisa aferir o tamanho do que vai fotografar e obter certo distanciamento do objeto a ser fotografado. “Nessa etapa, ele tem uma relação sensorial de tato com o que vai enquadrar e, com isso, tem um referencial para entender como funciona fisicamente a abertura que as lentes objetivas proporcionam”, explica a professora. Janaína construiu uma pirâmide para ilustrar essa relação. Por meio dela, os acadêmicos cegos podem fazer selfies, pois é exatamente a distância que precisam tomar para fotografar alguém ou o próprio rosto.
“Hoje parece simples, mas explicar e dar referentes para tudo isso foi um processo que demorou dois anos. Contei com a Rubia em todas as etapas, para que ela pudesse me dizer se o que eu estava pensando fazia sentido”, explica a professora. Para os planos mais abertos, Janaína combinou conhecimentos (denominados como regra dos terços), além da percepção da linha do horizonte e o uso do próprio corpo para direcionar a câmera e efetivar o enquadramento fotográfico. Uma das práticas realizadas com Rúbia aconteceu em um campo de soja, orientada pelo vento. Quando as folhas da planta viravam ao contrário, Janaína – que estava vendada – e Rúbia percebiam a passagem do vento nos campos. Com isso, a docente fazia a audiodescrição do local para sua aluna fotografar.
Nas universidades, ainda não existem estruturas com audiodescritores nas lousas, que é uma tecnologia assistiva endereçada ao aprimoramento do ensino para alunos cegos. Janaína comenta que na UFSM foi assim: estudou-se a legislação e, com isso, foram proporcionadas as condições para a formação da aluna. “A audiodescrição deveria, sim, ser obrigatória como é Libras no sistema educacional. Outra coisa que precisa ser compreendida na educação de pessoas com deficiência é que cada uma tem uma necessidade distinta. Nada pode ser uniformizado num país que não tem ainda resolvido a inclusão na educação”, sinaliza a pesquisadora.
Depois disso, a professora também idealizou oficinas de fotografia inclusiva em lugares como Espírito Santo, Alagoas, Maranhão e Pernambuco. “As pessoas cegas duvidam muito de que podem fotografar, porque estão acostumadas a não ter informações visuais. A primeira coisa que costumo observar é isso: que além de fotografar, as pessoas aprendem sobre coisas que ninguém fala com elas, como o que é a linha do horizonte”, expressa Janaína.
Obstáculos sobre rodas
Diante das dificuldades que o aluno do penúltimo semestre do curso de Medicina Eduardo Correa Nascimento tinha para se locomover durante as aulas práticas de cirurgia, realizadas no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), a Instituição adquiriu uma cadeira de rodas, no modelo stand-up.
“Quando o Eduardo ingressou no estágio curricular obrigatório, conversamos sobre suas dificuldades de acessibilidade e quão difícil seria para realizar o estágio no bloco cirúrgico” relata Flávio Jobim, docente do Departamento de Ginecologia do curso de Medicina da UFSM. Foi o próprio estudante que encontrou esse modelo de cadeira, que é fabricada no Rio Grande do Sul e possibilita ao usuário com mais de 1,5 metro de altura ficar em pé. Seu projeto biomecânico possui dimensões estruturais com assento, encosto e apoio para os pés, garantindo estabilidade, ergonomia, conforto e segurança ao cadeirante.
“No caso do Eduardo, sem essa valiosa ferramenta, ele não poderia participar dos procedimentos cirúrgicos e nem mesmo observá-los, já que as equipes se posicionam geralmente ao redor do paciente que fica em posição de decúbito (atitude do corpo em repouso em um plano horizontal) na mesa cirúrgica”, explica o professor, que auxiliou na aquisição do utensílio.
A cadeira foi desenvolvida para que o estudante deficiente se mantenha saudável, principalmente nas suas funções circulatórias e respiratórias. Além disso, ao concentrar seu peso nos membros inferiores, o usuário previne a osteoporose, por colocar seus músculos e ossos em funcionamento.
Eduardo descreve que, durante a graduação, as dificuldades foram imensas. “No meu primeiro dia de aula, já fiquei decepcionado com tamanho descaso por parte de todos, ao ter que ser carregado para poder chegar ao laboratório de anatomia. Não tinha nem rampa, muito menos banheiro adaptado nesse local”, conta. De acordo com o estudante, havia somente um banheiro acessível, mas estava localizado no segundo andar do prédio e, para chegar até lá, necessitava subir escadas. A aquisição da cadeira de rodas stand-up representou, nas palavras do acadêmico, a possibilidade de cursar o ensino superior com dignidade: “Me beneficiei ao ter um aprendizado igual ao dos meu colegas, podendo tratar das mais variadas especialidades cirúrgicas, no período em que pude estagiar no Husm”.
Reportagem: Guilherme de Vargas
Lettering: Deirdre Holanda
Ilustração e diagramação: Pollyana Santoro, acadêmica de Desenho Industrial
Fotografias: Thomás Dalcol Townsend
Locução: Marcelo de Franceschi