Em meio às consequências das mudanças climáticas e da insegurança alimentar, pesquisadores do mundo todo se mobilizam para pensar estratégias de desenvolvimento sustentável para o futuro. A Rede Internacional de Solos Negros (INBS), órgão integrante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), é uma dessas iniciativas que reúne especialistas para discutir questões relacionadas à conservação e ao manejo dos chamados black soils.
Os solos negros são caracterizados pela cor escura e se destacam pelo alto potencial de armazenamento de carbono, característica fundamental na luta contra as mudanças climáticas. Isso porque, ao aumentar os estoques de carbono no solo, os níveis de dióxido de carbono (principal gás responsável pelo efeito estufa) são reduzidos na atmosfera. Além disso, a presença do carbono no solo traz melhorias em suas propriedades físicas, químicas e biológicas, tornando-o mais produtivo e fértil.
Mas, segundo a FAO, os solos negros estão sob ameaça. Atualmente, parte do solo preto é usada para produção agrícola de forma inadequada, o que contribui para a degradação severa de grandes extensões de terra.
O professor Ricardo Bergamo Schenato, coordenador do Núcleo de Estudos e Pequisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi indicado pela Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS) para ser o representante do Brasil na Rede que busca uma colaboração global para pensar o uso dos solos negros. A Revista Arco conversou com o professor Ricardo para entender mais sobre o assunto:
Arco: Poderia explicar sobre as principais pesquisas que você desenvolve atualmente?
Ricardo: As principais pesquisas que realizamos são para entender o solo dentro da sua variabilidade no espaço e no tempo. Nesse contexto, precisamos compreender o solo como um componente da natureza que é essencial para a vida como conhecemos no nosso planeta, por isso, (re)conhecer suas múltiplas funções, medir diversas variáveis, restaurar sua capacidade de suportar a vida são muito importantes não só como linha de pesquisa, mas para a nossa sobrevivência. No setor de Pedologia [ciência que estuda o solo] e junto ao Neprade, as minhas pesquisas são direcionadas a entender como o solo funciona na paisagem e na modelagem do carbono em diferentes contextos ambientais, e como preservá-lo.
Arco: O que são os “black soils” e onde se localizam?
Ricardo: Os black soils são um tipo especial de solo cujas características principais são ter uma camada superficial de cor preta e enriquecido com carbono até 25cm de profundidade. Esses solos são encontrados em diversas regiões do planeta, existe uma área de aproximadamente 725 milhões de hectares, o que compreende 7% dos solos do mundo. Cerca de metade desses solos estão no território da Rússia, seguido por Cazaquistão e China. Outros países em que eles ocorrem são Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Hungria, Indonésia, Polônia, Ucrânia, Estados Unidos, Brasil, entre outros.
Arco: Qual é a importância da preservação destes solos?
Ricardo: Os black soils têm uma importância muito grande na segurança alimentar e nas mudanças climáticas. Eles são essenciais para sustentar a produção de alimentos, a diversidade da vida e uma série de serviços ecossistêmicos. Em muitos países eles são considerados a “cesta de alimentos”, pois são os solos que sustentam a produção agrícola, garantem os alimentos à população e sustentam boa parte da economia. Para se ter uma dimensão da importância desses solos, podemos citar alguns dados: aproximadamente 66% da produção de sementes de girassol, 30% da produção de trigo e 26% da produção de batata no mundo provêm dos black soils. Milho, cevada, soja, pastagens e algodão são outros exemplos de culturas desenvolvidas sobre eles. Além disso, muitas comunidades vivem sobre esses solos, como é o caso de 93% da população da Moldávia e 52% da população da Ucrânia. Não é por acaso que dois terços desses solos são usados com a agricultura e parte dessa fração encontra-se ameaçada pela degradação do solo.
Arco: Pode explicar como se dá a relação desse tipo de solo com as mudanças climáticas e a segurança alimentar?férti
Ricardo: Devido a essa característica especial, de conseguir armazenar grande quantidade de carbono, os black soils são grandes reservas de carbono no nosso planeta. Na Europa, por exemplo, esses solos são responsáveis por metade do potencial de sequestro de carbono do continente. Em um planeta que já experimenta as consequências das mudanças climáticas, a capacidade de manter o carbono no solo é a diferença entre o planeta que conhecemos hoje e um planeta com grandes áreas em que a agricultura se inviabilize como resultado de mudanças nos padrões de chuva e temperatura. Por isso, conhecer, preservar e desenvolver processos tecnológicos para a agropecuária em áreas de black soils é vital.
Em relação à segurança alimentar, o fundamental é que esses solos são muito férteis e, consequentemente, muito produtivos. O próprio teor alto de carbono já garante uma boa capacidade de armazenar nutrientes e água, mas os black soils, em sua maioria, ainda são ricos em nutrientes essenciais às plantas, como o potássio e o fósforo. Essas características permitem aos agricultores boas colheitas com menor dependência de insumos externos.
Sequestro de Carbono é o termo utilizado para indicar a exclusão do gás carbônico (CO₂) da atmosfera e sua transformação em oxigênio (O₂). Este processo ocorre principalmente de forma natural através do solo e dos oceanos. Os principais agentes do sequestro de carbono são os organismos fotossintetizantes como plantas, algas e bactérias. Em vez de o carbono capturado ser liberado para a atmosfera, ele fica retido no solo e contribui para o desenvolvimento dos microrganismos. |
Arco: Há algum risco no manejo?
Ricardo: Sim! Quando os cultivos são realizados além da capacidade natural desses solos, eles são degradados. A erosão é o principal processo de degradação em termos globais e pode levar à perda do solo em curtos períodos de tempo, com queda paulatina da produtividade e, em casos extremos, inviabiliza a produção. Os black soils devem ser manejados com mais cuidado ainda devido ao alto teor de carbono que eles têm, pois se forem mal manejados, todo esse carbono pode passar para atmosfera na forma de CO2 e aumentar ainda mais os efeitos das mudanças climáticas. Além disso, o comprometimento da produtividade leva a problemas econômicos e sociais ao longo do tempo.
Arco: Recentemente você foi indicado pela Sociedade Brasileira de Ciência do Solo para ser o representante do Brasil no International Network of Black Soils (INBS). Qual o objetivo da formação dessa rede?
Ricardo: Essa rede faz parte de uma iniciativa global da ONU/FAO de reunir cientistas de diversos países para tratar de diferentes temas relacionados aos solos. Os objetivos do grupo de black soils são melhorar o mapeamento desses solos, trocar dados e informações entre os grupos de pesquisa, desenvolver tecnologias para manejo sustentável, prover documentação e curadoria de dados sobre esses solos e encontrar as lacunas ainda existentes nas pesquisas, para apontar os caminhos mais promissores para estudos na área. Isso tudo com o foco em subsidiar tomadores de decisão, técnicos e agricultores para a produção sustentável.
Arco: Quais são os principais desafios em relação aos estudos na área de Black Soils?
Ricardo: De uma forma geral o desafio comum é conhecer melhor e desenvolver técnicas mais adequadas para cultivar os black soils. É claro que em cada lugar os desafios são diferentes. Na Rússia e na Ucrânia, por exemplo, o conflito entre esses países inviabiliza pesquisas de campo na maior área de black soils do mundo. No Brasil, os efeitos da falta de investimento na ciência têm sido desastrosos, a ponto de não termos nenhuma linha de fomento para pesquisa em black soils atualmente. Os poucos pesquisadores que investigam essa temática o fazem no escopo de outros projetos e, muitas vezes, investindo recursos próprios em coletas, análises, publicações e congressos. Uma situação completamente diferente é encontrada na China. Por lá, existe uma preocupação muito grande com os black soils, que estão em uma vasta região do nordeste do país. Os chineses têm uma visão de longo prazo, planejamento e suporte às pesquisas. Recentemente, na Universidade de Agricultura da China, eles fundaram um instituto de pesquisa que se dedica somente a pesquisar black soils, têm um museu de solos exclusivo para black soils e, em julho de 2022, sediaram o 2° Fórum Internacional de Conservação e Utilização de Black Soil e o 8° Fórum de Black Soil de Lishu, avançam em legislação de proteção dos black soils e em campanhas para conter a erosão e perda de carbono nesses solos. Todas essas decisões são políticas públicas baseadas em ciência. Isso diferencia um país sério, que olha para o futuro com responsabilidade, daqueles que produzem degradando os seus solos e demais recursos naturais.
Arco: Qual é a importância da inserção do Brasil junto a outros países nesta rede?
Ricardo: O Brasil sempre foi um ator de grande importância nas temáticas de meio ambiente e agricultura, ainda que nos últimos anos tenha perdido seu protagonismo global devido ao descaso com as questões ambientais. Estar presente nesses espaços é uma questão estratégica, de geopolítica, por isso, o nosso país não pode ficar de fora dos grandes debates ambientais e de produção agrícola. No entanto, para ser ouvido é necessário investir em pesquisa, desenvolver tecnologia e planejar o longo prazo. Se nós não pesquisarmos sobre os nossos recursos naturais, outros países irão fazê-lo e, nesse sentido, é uma questão de soberania nacional. Nenhum país é completamente soberano sem conhecer o seu próprio território e recursos. Por outro lado, todos os países querem ouvir o Brasil e reconhecem nossa importância em um mundo em transformação, muitas vezes esse reconhecimento é até maior lá fora do que aqui.
Arco: O que essa indicação significa para você e para os seus planos acerca de sua carreira?
Ricardo: Eu encaro essa indicação com muita responsabilidade, pois estou representando todos os pesquisadores da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, a UFSM, o Departamento de Solos e o Programa de Pós-Graduação em Ciência do Solo. Levar o nome dessas instituições é um orgulho e fonte de grande motivação. Ajudar na internacionalização e ampliar as redes de contato é muito importante para qualquer pesquisador, pois é a partir dessa exposição que temos contato com as ideias mais avançadas em nossas linhas de pesquisa e o que nos faz evoluir constantemente. Tenho certeza que vai ser uma experiência inesquecível e farei o meu melhor para representar o nosso país.
Expediente:
Entrevista: Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária;
Design gráfico: Júlia Coutinho, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo e bolsista; e Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb, jornalista.