Leite, arroz, feijão, milho, mandioca, carnes, frutas, verduras, hortaliças… Você sabe de onde vêm esses alimentos que estão na mesa dos brasileiros todos os dias? A resposta, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), está na agricultura familiar, que é responsável por, no mínimo, 70% da produção de alimentos consumidos no Brasil. Além disso, o último Censo Agropecuário, de 2006, aponta que 74% dos postos de trabalho do meio rural estão sob regime de agricultura familiar. No entanto, essa população que produz para alimentar o país vem diminuindo gradativamente, sendo que, de 2000 a 2010, cerca de 2 milhões de pessoas migraram do campo para as cidades em decorrência do êxodo rural.
O conceito de agricultura familiar determina uma relação próxima do homem com a terra enquanto um local de trabalho, como também de moradia e sustento. Segundo apontava o economista russo Alexander Chayanov, em escritos datados de início do século XX, ao contrário de uma empresa capitalista, a empresa familiar não utiliza da extração e apropriação do trabalho alheio, da mais-valia, já que a fonte de trabalho que aciona o capital envolvido no processo produtivo é o próprio agricultor, que nesse caso é proprietário dos meios de produção.
Pelo ponto de vista legal, a Lei nº 11.326/2006 regulamenta que o agricultor familiar e/ou empreendedor familiar rural é aquele que pratica atividades no meio rural, possui área de até quatro módulos fiscais – dimensão que varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município onde está localizado – mão de obra da própria família, renda vinculada ao próprio estabelecimento e gerenciamento do estabelecimento ou empreendimento pelo próprio núcleo familiar. A diversidade produtiva é uma característica intrínseca a este setor, sendo que os silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores, indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária também são considerados agricultores familiares.
O que distingue a agricultura familiar da agricultura patronal é que enquanto a primeira trabalha com uma produção heterogênea, diversificada, baseada em unidades menores e com cuidado direto do trabalhador com a produção, a agricultura patronal se especializa no que pode ser tratado de forma homogênea, com ganho de escala, alta tecnologia e produção em massa. O professor do Colégio Politécnico da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Gustavo Pinto da Silva, possui doutorado em Extensão rural e pesquisa a agricultura familiar pelo viés da produção de alimentos; ele afirma que a agricultura patronal se apropria de processos naturais e, muitas vezes, o modifica em laboratórios, o que dificilmente se viabiliza na agricultura familiar. Em relação ao mercado de trabalho, declara ainda que “a agricultura patronal pode até produzir em mais quantidade, mas emprega menos pessoas, enquanto que na agricultura familiar o número de pessoas ocupadas é maior”.
Silva aponta que, apesar de existir cada vez mais um movimento globalizado visando um sistema controlado, de produção em larga escala, ainda há etapas do processo produtivo difíceis de serem efetuadas pela produção em massa. Dessa forma, a agricultura familiar cumpre um papel importante ao produzir um alimento mais saudável, porque o agricultor acaba tendo – mesmo que muitas vezes de forma forçada pela pouca disponibilidade de recursos – uma atuação mais ética num cenário que provém mais cuidado com o alimento. “Com a concentração das produções, através da homogeneização, o processo natural da própria biologia é de que haja maior tendência ao aparecimento de doenças; então, um sistema diversificado, heterogêneo, tem mais a ver com o equilíbrio do ambiente e propicia mais qualidade pela agricultura familiar”, reitera o professor.
O agricultor Tiago Becker, de 31 anos, que trabalha na Polifeira da UFSM, tira seu sustento da venda de produtos que são cultivados na propriedade, juntamente com o pai e o irmão. A família trabalha com o cultivo de frutas e hortaliças, com criação de animais e, até mesmo, com produção agroindustrial. Becker afirma que produz apenas produtos orgânicos, tanto por ser um nicho diferenciado de mercado quando por sua preocupação com a saúde; ele tem consciência de que o principal prejudicado com o uso de agrotóxicos é o próprio agricultor. Entretanto, comenta que apenas consegue produzir orgânicos porque não existe lavoura de soja por perto da propriedade, já que “a aplicação de veneno nas lavouras de soja prejudica a plantação de orgânicos”.
Mesmo que a produção familiar tenha a propensão de ser feita de forma mais natural que a agricultura patronal, como é o caso da propriedade de Becker, o professor Silva acredita ser perigoso dizer que um alimento tem mais qualidade que outro. Em relação ao uso de agrotóxicos e de transgênicos, ele diz que “não podemos fazer esse embate de uma agricultura para a outra, porque o agricultor familiar vai se apropriando deste processo da mesma maneira”. Ele opina que o consumo de transgênicos, de conservantes, de industrializados, tem que ser uma decisão do próprio consumidor, através da busca pela origem dos alimentos e também numa legislação que exija a certificação nas embalagens. “O consumidor come muito por prazer, pelo momento; mas acho que isso está mudando. Há um movimento estratégico dos consumidores pela busca de alimentos diferenciados”, reconhece.
O cenário contínuo de êxodo rural
Embora as últimas pesquisas do IBGE tenham mostrado uma diminuição no número de pessoas que migraram do campo para as cidades, em comparação ao “boom” do êxodo rural na segunda metade do século XX, ainda se registrou, de 2000 a 2010, um total de 2 milhões de pessoas que saíram do meio rural para buscar a vida nas cidades. Ainda que seja uma quantidade muito expressiva, este número representa a metade do que foi registrado na década de 90, que teve uma diminuição de 4 milhões na população rural. De 1960 a 1980, décadas posteriores à Revolução Verde – período marcado por forte implementação de tecnologias e mecanização do campo -, o êxodo rural brasileiro alcançou um total de 27 milhões de pessoas, de acordo com pesquisa de Ana Amélia Camarano e Ricardo Abramovay, para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
O professor Gustavo Pinto da Silva acredita que estamos vivendo a última geração na qual a maior parte da população ainda tem algum tipo de vínculo com o meio rural, já que “uma série de comodidades são buscadas na vida urbana, que vende, através do imaginário social, a ideia da cidade como um lugar melhor para se viver”. Para ele, o abandono de jovens do campo é assustador, e aponta questões que influenciam a pouca vontade da juventude em permanecer no meio rural: “falta incentivo dos pais para a permanência dos jovens, de gestão do processo produtivo; o filho que fica trabalhando com os pais não tem renda e, consequentemente, não tem autonomia, porque até mesmo pra sair no final de semana precisa pedir dinheiro pro pai; além disso, as famílias estão cada vez menores, causando um número insuficiente de mão de obra, da força de trabalho”.
Os agricultores Bernadete Freitas, 55, e Valter Freitas, 65, cultivam frutas e verduras para vender no Feirão Colonial do Projeto Esperança/Cooesperança, em Santa Maria, e atualmente também vendem na Polifeira da UFSM. Através das feiras, eles tiram o sustento da família há 22 anos, mas não sabem até quando vão conseguir trabalhar com isso, porque estão envelhecendo e não tem perspectiva de sucessão nos negócios. Os filhos mais velhos já foram morar e trabalhar na cidade e o mais jovem, de 13 anos, que ainda continua vivendo com os pais, não pretende continuar na agricultura. O casal conta que na comunidade onde vivem não existe escola de Ensino Médio, então os filhos vão para a cidade estudar e depois já não querem mais voltar.
Uma exceção a este cenário de fuga dos jovens do campo é o caso do estudante de Zootecnia da UFSM, o jovem agricultor Ederson Joel da Silva, de 22 anos. Os pais de Ederson eram agricultores, mas decidiram largar a plantação de fumo para abrir um mercado em Santa Maria. Apesar de ter morado na cidade por toda sua vida, em 2013 ele decidiu mudar-se sozinho para o interior, porque, além de gostar mais do ambiente rural que do caos da cidade, pode ter mais independência no campo e plantar muito do que consome. Ederson da Silva faz faculdade na área de rurais e também comercializa os produtos que planta “em casa, no chão e sem veneno”.
Embora existam casos como o de Ederson, e que ainda exista cerca de 8 milhões de jovens que vivem no campo e têm participação ativa na produção agrícola, o professor Silva afirma que as áreas de produção de alimento estão sendo fortemente substituídas pelo cultivo de soja, tanto pela diminuição das famílias quanto pela falta de capitalização, da inviabilidade do uso de maquinarias em pequenas áreas produtivas e da dificuldade de algumas plantas em sobreviver em meio à grande quantidade de herbicidas passados nas lavouras. Segundo Silva, existem forças que vão contra a agricultura familiar, entre elas, o modelo da globalização, da deslocalização agrícola (concessão de terras para estrangeiros), da estrutura familiar e da educação problemática no meio rural.
Políticas de fortalecimento da agricultura familiar
No ano de 2014, o Brasil foi retirado do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, as iniciativas de fortalecimento da agricultura familiar tomadas nas últimas décadas são apontadas como fator responsável por este triunfo. De acordo com o professor Gustavo Silva, o reforço de fato das políticas públicas direcionadas para a agricultura aconteceram no governo Lula e Dilma. Ele cita as políticas de créditos – que objetivaram aumentar a produção – e também as de infraestrutura – que oportunizaram que regiões completamente desoladas pudessem aprimorar o trabalho; e um terceiro momento, que são as políticas de acesso a mercado.
Dentre as principais políticas, destacam-se:
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)
Criado em 1995, o Pronaf é a principal política pública de crédito para as unidades familiares de produção e objetiva melhorar a geração de renda aos agricultores e assentados da reforma agrária. O programa possui baixas taxas de juros para financiamentos rurais e serve tanto para o custeio da safra ou atividade agroindustrial, quanto para o investimento em máquinas e infraestrutura produtiva. Para acessar o Pronaf, a renda bruta anual dos agricultores familiares deve ser de até R$ 360 mil. Durante mais de duas décadas de funcionamento, o valor total das operações do Pronaf atingiu R$200 bilhões, com inadimplência de apenas 1%.
Serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER)
Os serviços de ATER foram iniciados, no país, no final da década de quarenta, objetivando a universalização dos serviços da assistência técnica e extensão rural para os agricultores familiares. A Lei 12.188/2010 instituiu formalmente a nova Política Nacional de Ater, a partir da análise crítica dos resultados negativos da Revolução Verde, com diretrizes voltadas para o desenvolvimento sustentável, a produção de base agroecológica e a qualificação das políticas públicas. Somente em 2015, 334 mil agricultores e mais de 400 cooperativas de agricultores familiares foram atendidos em contratos de Ater.
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
Criado em 2003, a fim de colaborar com o enfrentamento da fome e da pobreza no país e, ao mesmo tempo, fortalecer a agricultura familiar. A dinâmica do PAA consiste na compra de alimentos por parte do governo federal diretamente dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades indígenas e demais povos e comunidades tradicionais. O destino dos alimentos adquiridos é a mesa de brasileiros em vulnerabilidade social, seja através de doações para entidades da rede socioassistencial, nos restaurantes populares, bancos de alimentos e cozinhas comunitárias, ou ainda para a composição de cestas de alimentos.
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
Política pública destinada ao atendimento universal e de garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável para todos os alunos matriculados na educação básica das escolas públicas, federais, filantrópicas, comunitárias e confessionais do país. Desde a regulamentação do PNAE em 2009, foi estabelecida a obrigatoriedade de que, pelo menos, 30% dos recursos federais da merenda escolar deveriam ser investidos na agricultura familiar. De acordo com a Cartilha Nacional de Alimentação Escolar, entre os objetivos do PNAE, está o incentivo à “aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos”.
Selo Combustível Social
Em vigência desde 2005, objetiva a inclusão social e produtiva da agricultura familiar, o desenvolvimento regional e a produção de uma energia renovável. Segundo o coordenador de Biocombustíveis do MDA, Marco Pavarino, para obter a concessão do selo, as indústrias produtoras de biodiesel precisam cumprir três requisitos: comprovar a aquisição de matéria-prima da agricultura familiar; os contratos precisam ser prévios, para que o agricultor tenha garantia de venda; os produtores familiares que estão envolvidos no processo precisam ter acesso à Ater. As empresas que participam têm garantia de venda de combustível, porque a legislação prevê que 80% de todo o volume de biocombustível adquirido pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) seja proveniente de empresas com o Selo Combustível Social, o que beneficia, consequentemente, os agricultores familiares que comercializam a produção. Só em 2014, mais de 72 mil famílias forneceram matéria-prima para produção de biodiesel diretamente para as indústrias ou por meio de cooperativas.
Repórter: Claudine Freiberger Friedrich
Fotógrafo: Rafael Happke
Ilustração: Giana Tondolo Bonilla