Há cerca de 20 anos, a equipe do Laboratório de Estratigrafia e Paleobiologia (LEP) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) realizava uma escavação de rotina em um sítio paleontológico na área urbana de Santa Maria quando descobriu um fóssil peculiar.
Dentes serrilhados e em formato de faca, juntamente com pernas musculosas e tamanho avantajado, faziam desse dinossauro, o “Saturnalião”, um animal temível. Do focinho até a ponta da cauda, ele devia medir cerca de quatro metros e meio de comprimento, fazendo dele o maior esqueleto de dinossauro já encontrado no Rio Grande do Sul. Apesar de não estar completo, comparações com animais de parentesco próximo nos permitem visualizar como seria o restante do esqueleto.
Porém, antes de conhecer melhor a história desse achado incrível, vamos entender por que os fósseis encontrados no Rio Grande do Sul são alguns dos mais importantes do mundo. Os dinossauros (grupo que inclui as formas não-avianas – extintas há 66 milhões de anos) e as aves constituem os fósseis mais amplamente reconhecidos pelo público geral Eles dominaram as paisagens da maior parte da Era Mesozoica, uma faixa do tempo geológico que se estende mais ou menos de 250 milhões de anos até 66 milhões de anos, e que é dividida em três períodos: Triássico, Jurássico e Cretáceo. Enquanto os dinossauros do Jurássico e Cretáceo, tais como Tyrannosaurus, Diplodocus ou Stegosaurus, já constam no imaginário popular, aqueles do Triássico ainda são pouco conhecidos, apesar de sua importância.
O Período Triássico se estende de 250 milhões de anos até 200 milhões de anos e começou com a maior extinção em massa já registrada. Essa extinção eliminou a maior parte da fauna do então supercontinente Pangeia, uma massa de terra única que abarcava todos os continentes que nós conhecemos nos dias de hoje. Tal extinção aconteceu ao longo de vários milhões de anos e reduziu muito a diversidade dos animais dominantes da época, como os sinápsidos (grupo que inclui os mamíferos, seus ancestrais e parentes próximos), o que permitiu que os arcossauros (grupo formado por aves, crocodilos, seus ancestrais e parentes próximos) os substituíssem nos ecossistemas continentais. Porém, foi somente em meados do Triássico que os primeiros dinossauros começaram a aparecer.
Quando consideramos os registros inequívocos, ou seja, aqueles que temos “certeza” a partir da identificação dos esqueletos fósseis ou da datação das rochas, os mais antigos dinossauros são aqueles encontrados em rochas de cerca de 230 milhões de anos no Sul do Brasil e na Argentina. Existem registros de possíveis dinossauros que potencialmente seriam até mais antigos que esses, porém nem todos os autores concordam com a classificação desses materiais ou faltam estudos de datação dos sedimentos dos quais eles procedem para se ter certeza se seriam realmente mais antigos. No Brasil, tais fósseis são encontrados na Formação Santa Maria, que se estende de Leste a Oeste ao longo da depressão central do Rio Grande do Sul. Nem todos os fósseis achados nessas rochas são de dinossauros, mas, mesmo assim, eles são relativamente raros e considerados de extrema importância para a paleontologia mundial no que diz respeito à origem dos dinossauros.
É neste contexto que a equipe do LEP UFSM trabalhava no dia que encontraram um esqueleto incompleto em uma das ravinas avermelhadas do sítio “Cerro da Alemoa”, em Santa Maria. Os fósseis foram exumados em três datas diferentes, por conta do tamanho e da fragilidades dos elementos, e receberam o código UFSM 11330. Logo que foram escavados, os paleontólogos e estudantes sabiam que estavam diante de um animal relativamente grande e que se tratava de um dinossauro. Na época, apenas duas espécies brasileiras de dinossauros encontradas em rochas daquela idade (mais ou menos 230 milhões de anos) eram conhecidas: o Staurikosaurus pricei e o Saturnalia tupiniquim. Com as informações limitadas que tinham em mãos, a equipe considerou preliminarmente que o exemplar UFSM 11330 compartilhava mais semelhanças com Saturnalia; porém, o novo espécime apresentava o dobro do tamanho ou até mais, o que lhe conferiu o apelido de “Saturnalião”.
Ao longo dos anos, outros pesquisadores e alunos iniciaram seus trabalhos de descrição do esqueleto fóssil do “Saturnalião”, mas nenhum trabalho seguiu adiante para publicação final em periódico científico. Foi somente em anos recentes que o “Saturnalião” viria a ser analisado novamente. Em 2017, eu já fazia parte do LEP e, durante uma visita à coleção de paleovertebrados no prédio da Antiga Reitoria, o curador e chefe do laboratório, professor Átila Da Rosa, me mostrou os elementos preservados daquele dinossauro e me ofereceu a oportunidade de trabalhar com o material. Essa pesquisa teve como resultado um artigo científico publicado no início de 2021, que viria a compor um dos quatro capítulos do meu Trabalho de Conclusão de Curso, que defendi no fim de 2019.
Nesse artigo, em co-autoria com os pesquisadores Rodrigo Müller, Flávio Pretto, Átila Da Rosa e Sérgio Dias da Silva, nós reavaliamos o material disponível que constitui o “Saturnalião” e discutimos suas implicações. Após preparação e triagem dos fósseis encontrados, constatamos que, além dos restos pertencentes a um dinossauro, elementos de um rincossauro, tipo de réptil abundante que conviveu com os primeiros dinossauros nas paisagens do Triássico, estavam ali misturados. O esqueleto do “Saturnalião” é composto por ossos da cabeça, coluna vertebral e pernas do animal, vários dos quais são muito importantes para identificar a qual grupo de dinossauros pertenceu aquele indivíduo.
Para nossa surpresa, o “Saturnalião” estaria mais próximo do grupo Herrerasauridae, que contempla animais carnívoros de médio a grande porte, como o Staurikosaurus, do que aos Sauropodomorpha, como Saturnalia, grupo que inclui os grandes dinossauros saurópodes, que milhões de anos à frente viriam a se tornar os maiores vertebrados terrestres que já existiram.
Apesar dos novos dados obtidos, a falta de alguns elementos diagnósticos, como o osso da coxa (fêmur), impediu a atribuição do espécime UFSM 11330, o “Saturnalião”, a uma espécie nova ou a alguma já conhecida. No entanto, o “Saturnalião” é, até então, o maior registro de um esqueleto de dinossauro no Rio Grande do Sul e adiciona à diversidade de herrerassaurídeos, que antes contava apenas com o já citado Staurikosaurus (encontrado em Santa Maria) e Gnathovorax cabreirai (encontrado em São João do Polêsine). Além disso, o grande tamanho do “Saturnalião” nos permite reforçar a ideia de que dinossauros predadores de grande porte estavam presentes há 230 milhões de anos no Triássico do Sul do Brasil, e nos fornece uma visão mais completa da teia alimentar desta época.
Expediente:
Texto: Maurício Garcia, bacharel em Ciências Biológicas pela UFSM e estudante de Mestrado em Biodiversidade Animal pelo Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Animal – PPGBA/UFSM;
Design gráfico: Cristielle Luise, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e bolsista; Ludmilla Naiva, acadêmica de Relações Públicas e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.