Entra no carro, liga o rádio para ouvir as notícias da cidade, pega o celular e manda uma mensagem no WhatsApp avisando que em breve chega em casa. Se não responder, é só fazer uma chamada. Chega em casa e já liga o computador para checar o e-mail e abrir o Facebook, para ver as fotos do aniversário daquele primo distante a que não pôde comparecer. Simultaneamente, a televisão está ligada só aguardando o último capítulo da novela das nove.
Essa é uma cena comum do dia de alguém que vive em uma cidade e tem forte ligação e fácil acesso às tecnologias e meios de comunicação. Mas nem todas pessoas vivem essa mesma realidade e se relacionam da mesma forma com essas tecnologias.
Ana Carolina Escosteguy é professora visitante do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFSM (PosCom/UFSM), pesquisadora do CNPQ e tem como linha investigação os estudos culturais e de gênero. Devido a alguns levantamentos de dados quantitativos, surgiu nela a vontade de entender como as pessoas da zona rural se relacionam com as tecnologias de informação e comunicação.
A pesquisa intitulada Tecnologias de comunicação nas práticas cotidianas: o caso de famílias relacionadas à cadeia agroindustrial do tabaco, desenvolvida no município de Vale do Sol (RS) começou a ser produzida em 2014, e ainda está em andamento. O projeto é composto por um grupo interdisciplinar e é uma parceria entre a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e o Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – do qual Ana Carolina participava antigamente.
O estudo selecionou sete famílias da região agroindustrial do tabaco, do município de Vale do Sol, próximo a Santa Cruz do Sul. O objetivo da pesquisa é entender como as tecnologias adentraram a vida daquelas pessoas e se contemplaram suas expectativas; bem como entender o imaginário do público sobre a tecnologia, tendo em vista o consumo sobre outras fontes de informação, como a televisão e o rádio.
A maioria das famílias analisadas tinha como característica comum ter três gerações: os filhos jovens, o casal maduro e um dos avós. As diferentes idades também foram importantes para entender a relação dessas pessoas com a tecnologia.
Ana Carolina conversou com a Revista Arco e explicou sobre a intenção, as expectativas e os resultados obtidos até então com a pesquisa.
Arco: Há diferença entre o uso das tecnologias de comunicação no campo e no meio urbano?
Ana Carolina: Com certeza. Nós nos surpreendemos muitíssimo, porque existe a presença do celular no campo, desde os mais jovens – a partir de 10 anos – até os mais velhos, raras são as resistências dos idosos. E, sobretudo, algo que foi muito marcante é que embora todos tivessem celular, boa parte deles, no momento inicial da pesquisa (2014) não tinham seus aparelhos funcionando dentro da sua localidade. Ou eles tinham que ir a um determinado local, relativamente distante da sua moradia, para ter sinal, ou até mesmo ir até o centro urbano do município do qual eles pertencem, que é a cidade Vale do Sol. Então, eles tinham uma certa expectativa sobre o celular: imaginavam que o aparelho ia suprir uma série de funcionalidades. Em um primeiro momento – da entrada do celular na localidade – o aparelho servia para outras coisas, como para tirar foto, ouvir música, joguinhos. Não tinha a funcionalidade de “estar conectados”, como somos acostumados. Quando falo “conectado”, não estou nem falando de internet. Estou falando de sinal para telefonia. O que a gente viu é que em pouco tempo essa questão foi se alterando. De 2014 até 2017, a gente viu mudanças bastante acentuadas. Hoje já se faz o uso do celular com internet e Whatsapp, e essas ferramentas podem servir para complementar o orçamento familiar – como a produção do mel, a venda de algumas frutas e, até mesmo, o acesso à receita de bolos que podem ser comercializados. Ele virou uma ferramenta para uma ação que vai ter uma consequência direta na transformação, ou melhoria, do estilo de vida, do dia a dia.
Arco: Você percebeu nas pessoas mais velhas alguma mudança no estilo de vida a partir da inserção das tecnologias?
Ana Carolina: Entre os idosos que entrevistamos, apenas um foi “resistente” ao celular, que optou por não ter. De outro lado, mesmo os mais velhos passam a adotar o celular, porque as famílias são dispersas hoje, existem vários membros da família que não moram mais nas redondezas, nem no campo. Portanto, o celular funciona como funcionava o telefone fixo ou o “orelhão”. Eu mesma vim do interior, e fui estudar em outra cidade do interior, e tinha que ligar para casa. Os idosos utilizam muito o celular com essa função de manter o contato com os familiares, de restabelecer o contato com os familiares que estão dispersos.
Arco: E com os jovens, como se dá o uso do celular no campo?
Ana Carolina: Com os jovens, as funcionalidades são muito maiores. Mesmo naquele momento sem sinal de internet, eles utilizavam a câmera, os joguinhos, para baixar música, e até mesmo ouvir rádio. Para usar a internet, eles chegavam a se deslocar de 10 a 15 km da sua casa cotidianamente para acessar o sinal na escola. O uso dos jovens rurais era outras condições, mas os aproximava dos jovens urbanos. Hoje em dia, a qualidade do sinal de telefone e internet é bem maior. Eles têm smartphone, Facebook, e acesso à internet – o que faz com que o uso do Whatsapp também tenha aumentado. Por exemplo, esse uso do celular como forma de vigilância e controle dos pais sobre os jovens, é uma prática bastante comum. Coletamos várias falas de mães que deram o celular para os filhos como forma de saber se o ônibus passou, se ele vai atrasar ou não, ou seja, controle e vigilância semelhante ao que se vê no espaço urbano.
Arco: A partir de seu objetivo inicial, quais resultados você obteve até agora?
Ana Carolina: Uma das primeiras coisas é de que o contexto rural hoje é diferente do nosso imaginário do rural separado do urbano. Há um trânsito entre ambos muito intenso, sobretudo, pela presença das tecnologias. Não só da presença das antigas tecnologias – que é o que entra pela TV, pelo rádio, pelo jornal, pelas revistas – mas também pelo trânsito deles, dos próprios agricultores com o contato com a cidade. Há um contato com o uso das novas tecnologias também para fora do contexto local, regional e nacional. Várias dessas pessoas que nos falavam do uso do Facebook diziam que falavam com pessoas de fora do Brasil. O que a gente percebeu também é que, ao contrário da vida urbana, onde as famílias muitas vezes individualizam excessivamente o uso do celular e privatizam a vida de cada um, no caso dessas famílias, isso não ocorre. Porque são famílias que trabalham juntas, convivem juntas. Na hora em que cada um vai para o seu quarto é como um espaço que cuidam de si mesmos, das suas intimidades e privacidade. Isso não colabora para esse distanciamento dos laços familiares, como acontece no espaço urbano. A forma como essas famílias estão vivendo, o trânsito que eles estão realizando com a cidade, as relações que eles têm com as tecnologias corroboram numa definição do que é a vida rural hoje. Uma coisa muito importante é que as novas tecnologias convivem com as mais antigas, elas não desaparecem.
Reportagem: Mayara Souto
Edição: Andressa Motter e Tainara Liesenfeld
Gráfico: Juliana Krupahtz
Fotografias: João Vicente Ribas