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Não é só agosto o “Mês do Cachorro Louco”

Professores da UFSM falam sobre a importância de prevenção à raiva, doença com quase 100% de mortalidade



O fim do mês bate à porta. E, com ele, talvez seja a hora de colocar um fim em certos mitos. Será que agosto é mesmo o “Mês do Cachorro Louco”? Se, até este momento do mês, o seu cachorro não apresentou nenhum comportamento anormal, você já deve desconfiar sobre qual é a resposta dessa pergunta. Mas então, por que agosto é conhecido assim?

William Schoenau, professor de Bem-Estar animal no curso de Medicina Veterinária e vice-diretor do Centro de Ciências da Saúde (CCS), explica que há maior possibilidade de casos de raiva neste mês, já que ele apresenta condições climáticas favoráveis para que as fêmeas iniciem o seu período reprodutivo, o que aumentaria as disputas entre machos para conquistá-las. Caso um dos “pretendentes” já tenha o vírus, ele pode ser transmitido aos outros cães por meio de brigas. No entanto, não há evidência científica do aumento de casos durante o oitavo mês do ano.

Outra “injustiça” é insistir em chamar o melhor amigo do homem de louco por conta do vírus da raiva, já que ele não tem sido o animal mais afetado pela doença nos últimos anos. Em 2022, o Ministério da Saúde registrou 16 casos de raiva em animais domésticos – nove gatos e sete cães. Metade desses casos foi transmitido por morcegos, e outros três por canídeos silvestres (cachorro-do-mato, lobo-guará, raposas, etc.) que, desde 2016, são os dois únicos agentes transmissores da doença.

A fama de agosto ser o “Mês do Cachorro Louco” é um elemento particular da cultura brasileira. No calendário internacional, o Dia Mundial da Luta Contra a Raiva é celebrado em 28 de setembro. Os “costumes” dos tutores também são responsáveis por facilitar o desenvolvimento de doenças, como não fazer as vacinações de calendário, não realizar castração e deixar os cães soltos, o que pode facilitar a propagação de doenças.

No Hemisfério Norte há outro tipo de ligação entre cachorros e o mês de agosto, os dogs days, explica o vice-diretor do CCS. O termo se refere aos dias mais quentes e abafados do verão no norte do planeta que ocorrem depois que a estrela Sirius, também conhecida como “estrela do cachorro” fica visível no horizonte antes do nascer do sol, fenômeno que ocorre uma vez por ano.

Sirius, além de ser a estrela mais brilhante da noite a olho nu, é o principal corpo celeste da constelação de Cão Maior (Canis Major). Além do calor, ela ficou conhecida por civilizações milenares como a estrela responsável por trazer doenças, azar e loucura, para cães e também para os homens. 

O mês pode ser mito, mas a doença continua real

O professor Saulo Filho, docente de Clínica de Pequenos animais, também do curso de Medicina Veterinária, enfatiza que o aumento da divulgação das campanhas de vacinação, muitas intensificadas em agosto para se apropriar da “fama” de “Mês do Cachorro Louco”, são para auxiliar na prevenção contra a raiva. Em 2002, por exemplo, o Ministério da Saúde registrou 635 casos de raiva em cães e 85 em gatos. “A raiva urbana praticamente desapareceu”, destaca Saulo. “A grande preocupação hoje é a raiva silvestre e no meio rural”, complementa Schoenau.

O vírus da raiva tem três ciclos de transmissão: urbano, rural e silvestre. Os dois últimos foram os responsáveis pelos dois casos da doença registrados no país em humanos este ano. Ambos os pacientes faleceram. Os professores destacam que o homem cada vez mais invade o habitat e entra em contato com animais silvestres. Essa aproximação pode ser perigosa, uma vez que todos os mamíferos podem contrair o vírus e transmiti-lo para o ser humano. 

Sem vacinação, a doença tem taxa de letalidade de quase 100%, o que inclui a raiva humana que deixa sequelas severas em seus raros sobreviventes. Para que a doença continue sob controle nos centros urbanos, o professor de Fisiologia Animal lembra que é preciso uma cobertura vacinal de 80% da população canina, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde. 

No entanto, a taxa atual de cobertura pode estar significativamente abaixo deste nível. De acordo com os dados do próprio ministério, a cobertura vacinal de cães e gatos era de 60,4% em 2021 (último ano disponível). Essa média se aplica a menos da metade do país, já que apenas 12 das 27 unidades federativas enviaram seus índices de vacinação para o levantamento.

Além de letal, a enfermidade que afeta o sistema nervoso evolui de forma dolorosa.  “Em cães, ela termina por atingir o nervo faríngeo, o que os impede de beber e se alimentar. Por isso, quando um animal é diagnosticado com raiva, o protocolo indicado é a eutanásia”, descreve o professor Saulo. A doença pode se manifestar de diferentes formas, a depender de onde o animal foi mordido. Ferimentos próximos à medula podem resultar em raiva paralítica, na qual o cão fica quieto e triste, com sinais de paralisia. Há também a raiva muda, ou atípica, que traz alguns sintomas semelhantes à raiva paralítica, mas menos intensos e que podem passar despercebidos.

O vírus é transmitido pela saliva, o que significa que, além das mordidas, é possível contrair raiva pela lambedura de um animal infectado e, em alguns casos, também pela arranhadura. De acordo com o professor da disciplina Clínica de Pequenos animais, os principais sintomas da doença em cães são: agressividade, ansiedade, desconfiança, mordedura, lambedura, medo, depressão, salivação excessiva, paralisia, desorientação, convulsões, aversão à água – cão fica desorientado e não reconhecimento do proprietário.

Propaganda enganosa, mas com boas intenções 

Por ter um efeito direto no ser humano, a raiva é a doença canina mais conhecida, mas, atualmente, há outras patologias que são mais letais para os cães. A parvovirose é uma doença que afeta filhotes com até um ano de idade, enquanto a cinomose pode afetar o cão durante toda a vida, em especial durante os primeiros meses de vida do animal. Ambas as doenças possuem alta taxa de letalidade sem vacinação. 

A leptospirose também é uma doença animal que pode ser contraída pelo ser humano (zoonose). Geralmente associada a ratos, a infecção também afeta cães, que são a principal fonte de transmissão para o homem.

As três doses da vacina polivalente compõem o esquema vacinal básico em filhotes e protegem contra essas enfermidades. O ciclo da imunização polivalente inicia entre os primeiros 45 e 60 dias de vida e vai até a sexta ou oitava semana de idade. A vacina contra a raiva pode ser aplicada em um intervalo mínimo de 21 a 30 dias após o esquema vacinal básico, quando o cão está entre quatro e cinco meses de idade. É possível vacinar o cachorro contra a raiva mesmo sem o esquema vacinal básico, desde que ele tenha idade compatível com a imunização. As vacinas para raiva, cinomose e leptospirose devem ser reforçadas anualmente.

“Propaganda é a alma do negócio.  Mas, em termos de vacinação, depende do calendário vacinal de cada animal. Se quiser vacinar em agosto, vacine. Melhor vacinar do que não vacinar, mas é possível fazer isso em qualquer época do ano”, finalizam os professores que não se opõem à fama de “Mês do Cachorro Louco” carregada por agosto, desde que ela seja utilizada para que cães e humanos fiquem sãos e salvos.

Reportagem: Bernardo Silva, estudante de jornalismo e bolsista de Agência de Notícias
Ilustração: Daniel Michelon De Carli, Unidade de Comunicação Integrada;
Edição: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas.

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