Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou uma mudança significativa na plataforma do Currículo Lattes: uma seção para o registro dos períodos de licença-maternidade de pesquisadoras. Tal mudança tem como objetivo justificar os períodos de queda na produção científica por parte das pesquisadoras mães. A plataforma Lattes, mantida pelo CNPq, consiste em um ambiente virtual no qual são integrados dados curriculares, grupos de pesquisa e instituições em um único sistema de informações, o que resulta em um currículo acadêmico dos pesquisadores e pesquisadoras, o Currículo Lattes.
A adição desse registro na plataforma é fruto de um pedido, feito em 2019, pelo projeto Parent In Science, coordenado pela professora Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O Parent In Science surgiu com o intuito de levar a discussão sobre maternidade e paternidade para dentro do universo da ciência do Brasil, e a luta por equidade para pesquisadoras (e pesquisadores) que tiveram filhos. O “evento da maternidade” pode desacelerar por um período a produção científica e afetar o currículo, o que gera desvantagem em relação a outros colegas ou possíveis concorrentes em, por exemplo, processos seletivos.
De acordo com a pesquisa “Mulheres e Maternidade no Ensino Superior no Brasil”, da mesma organização, a presença de mulheres na área científica brasileira sofre um efeito tesoura: conforme se avança no nível da carreira científica, reduz o percentual de mulheres. Na iniciação científica – primeira etapa de uma carreira de pesquisa e que acontece na graduação, 55% dos bolsistas são mulheres. Mas, quando se olha para as bolsistas de produtividade em pesquisa – etapa mais avançada da carreira científica, geralmente vinculada ao CNPq -, as mulheres são apenas 36% do total de pesquisadores.
A maternidade romantizada e a desigualdade de gênero
Milena Freire é professora do Departamento de Ciências da Comunicação da UFSM, embaixadora do Parent In Science e coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Gênero e Desigualdades. A docente desenvolve uma pesquisa cuja temática central é voltada para observações da maternidade no Instagram e que visa problematizar a sua romantização. No estudo, busca-se reforçar que outras pessoas devem fazer parte do cuidado com as crianças, com serviços que podem vir a ser feitos por outras pessoas que não apenas a mãe. Essas problemáticas escancaram a desigualdade de gênero em todos os espaços, sejam eles familiares, de trabalho ou científicos. Para a pesquisadora, as redes sociais digitais são um espaço muito representativo na nossa cultura, no qual atuam valores, convenções e papéis sociais e a sua pesquisa visa demonstrar a apropriação de determinados valores pelas pessoas: “apesar de estarmos falando de um aparato técnico, o que na verdade a gente vê é como as pessoas se apropriam e fazem circular determinados valores. Então, no que diz respeito à maternidade, o que a gente vê é muito o ideal dessa maternidade, uma maternidade que a gente tá chamando de “romantizada”, mas que muitas vezes reforça o papel da mulher como principal cuidadora, como responsável”, conta a pesquisadora.
Além da docência, Milena Freire também é mãe pesquisadora, e dedica seu tempo entre ser professora da UFSM e mãe de Tomás, de 12 anos, e Nina, de quatro. Ela conta que o trabalho no Parent In Science se dá no sentido de sensibilizar as universidades e as agências de fomento públicas e privadas para a temática da parentalidade. Além disso, objetiva a consideração do tempo da licença-maternidade e do evento de ser mãe como algo que é significativo na produção das pesquisadoras. “Isso é uma busca que pretende impactar essa realidade que é vivida por essas mães em razão do trabalho que elas assumem a partir do momento que elas são mães.”
Apoio como elemento essencial
Mariana Fauerharmel tem 34 anos e é mãe da Maria Rita, de 17 anos, e da Helena, de dois anos. Também é doutora em Engenharia Florestal. Para ela, “ser mãe pesquisadora não é tarefa fácil, especialmente em um país como o Brasil, onde os pesquisadores não recebem a devida valorização, e quando esta função se soma à maternidade, as dificuldades aumentam”.
A gestação da filha mais nova aconteceu durante o doutorado, em 2018. Mariana menciona que teve direito a quatro meses de licença maternidade. “Ao retornar do período de licença, entrei em processo de depressão pós-parto, que certamente foi agravado pela pressão e cobrança em função do doutorado”. Para Mariana, o apoio do orientador, da família, dos amigos e da própria UFSM, por meio de afastamento por motivos de saúde, foi fundamental para retornar às atividades posteriormente.
A vida como equilibrista
Juliana Petterman, de 39 anos, é mãe do Moreno, de um ano. E também é professora no Departamento de Ciências da Comunicação da UFSM e pesquisadora apaixonada pela área de Publicidade e Propaganda. “Ser mãe pesquisadora é ser uma grande equilibrista: é tentar ser mãe e ser pesquisadora da melhor forma, gerando a menor ansiedade possível. Isso porque é muito fácil de se deixar levar pela sensação de estar sempre em débito”.
Ela relata situações em que sentiu que não foi uma boa mãe – quando respondia e-mails enquanto cuidava do bebê ou quando o pensamento voava para a lembrança da coleta de dados enquanto brincava com ele – ou que não foi uma boa pesquisadora – quando não conseguiu enviar um artigo para o principal congresso da área, ou quando atrasou a correção de textos de orientandos e orientandas. A docente menciona que precisou aprender a ser paciente consigo mesma: “Eu sempre fui apaixonada pelo meu trabalho e acabei trabalhando muito mais do que deveria, comprometendo inclusive minha saúde mental. A maternidade veio para me ensinar a eleger prioridades, para me ajudar a entender que eu não sou uma máquina e que é preciso mudar muitas coisas em relação ao modo como a maternidade é vista na universidade.”
Mãe pesquisadora X Pai pesquisador
As diferenças entre uma mãe pesquisadora e um pai pesquisador começam no tempo concedido para o período de licença: seis meses para a mãe, e de cinco a 20 dias corridos para o pai. Dessa forma, as obrigações da parentalidade e do cuidado com a criança iniciam de forma desigual e reforçam estereótipos de gênero. Milena Freire trouxe, durante a entrevista, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, de 2019, anterior à pandemia. A pesquisa revela que, em média, no Brasil, as mulheres brasileiras usam 21,4 horas semanais no envolvimento com o trabalho doméstico, enquanto o tempo gasto por homens nas mesmas tarefas é de 11 horas por semana.
“Enquanto as mulheres estão trabalhando na casa ou cuidando das pessoas da casa, homens têm a possibilidade ou de descansar, ou de se aperfeiçoar, se dedicar mais ao trabalho remunerado e assim por diante. Então, essa desigualdade acaba se mantendo, e é por isso que a gente chama a dupla jornada como um conceito que é feminino. Não escutamos falar da dupla jornada do homem, porque nós temos a manutenção da mulher em casa”, explica Milena.
Para Juliana Petterman, a mãe pesquisadora já é vista de antemão como aquela que não conseguirá manter sua produtividade depois do nascimento do bebê. “Eu lembro que, antes de sair de licença-maternidade, uma pessoa, no contexto da universidade, me sugeriu que eu me desligasse do programa de pós-graduação, visto que minha produção cairia”. Mesmo com planejamento e consciência da queda de produção, julgamentos como os que Juliana recebeu são comuns no meio acadêmico. “Meu barrigão de nove meses – que eu carregava na ocasião deste acontecimento – era sinônimo de algo que me impediria de dar conta do recado. E, ainda que minha produção caia, o ambiente da universidade deveria ser de apoio e não de pré-julgamentos ou de crítica. Dificilmente um pai pesquisador passaria por uma situação parecida com essa que relatei”, desabafa.
Mariana Fauerharmel diz que a principal diferença entre uma mãe pesquisadora e um pai pesquisador é a falta de tempo que as mães têm para a pesquisa. Para ela, “é muito difícil conciliar a maternidade e a vida acadêmica, além de tantas outras demandas que temos diariamente. Acredito que isso afeta diretamente a carreira de uma mãe pesquisadora”. Milena Freire, quando fala sobre essa diferença, relembra que, quando os homens se tornam pais, tornam-se os “provedores”, e por isso passam a se dedicar mais ao trabalho remunerado do que à família. “Parece um pensamento até arcaico, mas muito presente na nossa sociedade ainda hoje, e isso se dá no âmbito da academia também, porque nós não vemos, de modo geral, os pesquisadores diminuindo a sua produção acadêmica quando seus filhos nascem”.
Uma pesquisa da Parent in Science mostra, em estudo detalhado, o impacto da maternidade na carreira das mulheres. 78% das pesquisadoras são mães, e o nascimento do primeiro filho acontece, em média, dois anos e oito meses depois da contratação. Sobre os cuidados com os filhos, 54% das crianças têm como única cuidadora a mãe, contraste relevante contra as 34% das crianças cuidadas por ambos os pais.
Juliana Pettermann foi mãe durante a pandemia: “eu senti muito a falta da rede de apoio nos primeiros meses de vida do meu bebê e hoje sinto muito a falta de ter um tempo exclusivo com ele e um tempo exclusivo para o trabalho. De ter limites. Hoje eu trabalho enquanto meu bebê dorme e nos turnos que revezo com meu companheiro”. Ela conta que a falta da rede de apoio e a pandemia, com todas as consequências que trazem, pode afetar também a capacidade de produção: “um exemplo bem concreto: se antes eu lia e corrigia cem páginas de uma tese em um dia, hoje eu consigo ler umas dez páginas. Outra coisa que percebo: às vezes as pessoas querem marcar uma reunião pela manhã e outra no turno da tarde. Para mim, isso é impensável”.
Muito mais que uma mudança no Lattes
Uma das maneiras de mensurar a carreira científica é pela taxa de produtividade, que leva em conta o número de publicações, ou seja, quanto mais publicações a pesquisadora faz em um ano, mais esse índice sobe.
De acordo com pesquisa da Parent in Science, estima-se que a produtividade de mães pesquisadoras caia por até quatro anos após o nascimento do bebê. Por isso que a inclusão do período da licença-maternidade no Lattes é importante. “O levantamento do Parent In Science, que foi feito a partir de uma pesquisa estatística com mães pesquisadoras do Brasil inteiro, vem dar conta de que existe esse espaço, em que as mulheres, depois que são mães, param ou diminuem bastante a sua produção. Então, essa inclusão da maternidade no Lattes busca dar visibilidade da questão da maternidade e paralelamente na intenção de que seja incluída nos editais de fomento à pesquisa, seja de iniciação científica, no credenciamento em programas de pós-graduação, no caso das estudantes, e possa vir a ser considerado a maternidade um espaço de tempo que passa a ser contabilizado a mais na vida acadêmica dessa mãe”, diz a professora Milena.
Para Juliana, “inserir a licença-maternidade no currículo é, para além de uma questão informacional muito importante, também um ato político.” Mariana concorda que a conquista é importante, uma vez que “muitas mães têm sua produtividade acadêmica afetada durante o período de licença e posteriormente também”.
No entanto, mesmo que a conquista seja importante, ela ainda não é suficiente. É necessário avançar no modo de entendimento da maternidade e da paternidade. É importante pontuar que a maternidade não é o problema para a carreira dessas mulheres, mas sim o modo como a avaliação acadêmica e de produtividade é feita. Juliana explica que algumas possibilidades de mudança podem estar na concessão de licença-paternidade com o mesmo período da licença-maternidade, que os congressos e eventos científicos preparem-se melhor para receber pessoas com filhos, na discussão dos sistemas de avaliação e, inclusive, na diversificação das pessoas que avaliam. “Precisaríamos que a própria universidade fosse um lugar mais compreensivo com a parentalidade. Precisaríamos discutir o próprio produtivismo e o sistema de competição que faz parte da lógica da universidade, substituindo-o por uma lógica mais sensível e de cooperação”, exemplifica.
Mariana diz que a mudança é pequena, mas significativa, e que ainda há muito a avançar, e “isso só será possível quando nossa sociedade for mais justa, igualitária e menos machista. Felizmente, temos pessoas que lutaram pelos direitos das mães e mulheres pesquisadoras”. Ainda que a maternidade e a pesquisa são escolhas pessoais do âmbito das mulheres, elas são condicionadas também pelo medo do impacto da maternidade em suas carreiras. Ela conta: “o sistema nos pressiona por uma produtividade acadêmica muitas vezes abusiva e incompatível com todas as demandas da maternidade e da sociedade em que vivemos. Então nos resta a escolha: vida acadêmica ou maternidade? Aquelas que optam pelos dois certamente terão que abrir mão de algumas coisas”.
Juliana destaca que as dificuldades da maternidade não podem ser vistas como falta de organização e planejamento: “as pessoas normalmente ouvem as questões relacionadas à maternidade com a seguinte resposta pronta: ‘mas, então, por que teve filhos?’. Já imaginou se as mães fizessem uma greve? Ninguém mais nasceria e a humanidade acabaria rapidinho. Ainda mais agora, neste contexto pandêmico, que já morrem mais pessoas do que nascem”.
Como destacado pelas três pesquisadoras, a conquista da inclusão da licença maternidade no currículo Lattes é importante, mas não apaga as desigualdades de gênero da academia. A luta pela equidade na pesquisa científica deve ser fomentada através do debate e de ações concretas, objetivos que vão ao encontro do movimento proposto pelo Parent in Science.
Expediente
Repórteres: Alice Santos e Samara Wobeto, acadêmicas de Jornalismo e voluntárias
Ilustração: Renata Costa, acadêmica de Produção Editorial e bolsista
Mídia Social: Nathalia Pitol, acadêmica de Relações Públicas e bolsista
Editora de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas