Depois do nascimento da segunda filha, há cinco anos, Milena Freire se deparou com um dilema: a vontade de voltar ao trabalho e o sentimento de não se sentir preparada para o retorno. Ela é pesquisadora no campo da Comunicação, coordenadora no Grupo de Pesquisa Comunicação, Gênero e Desigualdades (CNPq/UFSM) e docente do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no curso de Publicidade e Propaganda. Diante do impasse, ela usou suas redes sociais digitais para compartilhar o misto de sentimentos: “Eu escrevi um post em que coloquei algo do tipo: ‘não tá tudo bem, não sei se quero voltar, eu não estou pronta, mas ao mesmo tempo eu quero’”, conta.
Sobre a repercussão, Milena comenta que um dos pontos que chamou a atenção é que só as mulheres da sua rede comentaram a postagem. O outro ponto foi a ambivalência desses comentários: “algumas se identificaram e outras tinham o discurso de que ser mãe é padecer no paraíso”, relembra. A partir disso, a pesquisadora percebeu a necessidade de discussão da intersecção entre maternidades e mídias.
No próximo domingo (08), ocorre o Dia das Mães, e, em referência à data, a Revista Arco entrevistou Milena Freire para falar sobre sua pesquisa e sua relação com a maternidade, e de que forma ela se intersecciona com as mídias. Confira:
Arco: Por que a escolha da maternidade como temática de estudo?
Milena: Essa motivação veio a partir da minha experiência pessoal. Mais do que a temática de estudo, acho que a maternidade implicou em uma posição mais afinada e em um reconhecimento da necessidade do estudo e do engajamento feminista. Foi a partir do reconhecimento das desigualdades que me eram postas – e do reconhecimento da existência dessas desigualdades na vida de outras mulheres – que, há treze anos, me coloquei de modo mais próximo e hoje me reconheço como uma mulher e uma pesquisadora feminista. Embora reconhecesse a necessidade de pensar e refletir sobre as desigualdades, foi a experiência da maternidade que me colocou nesse lugar.
No momento em que ingressei no Programa de Pós-Graduação (Poscom) como docente, apresentei o projeto para ingressar no PPG. Eu já tinha feito, na minha pesquisa de doutorado, um trabalho que falava sobre gênero e desigualdade, mas a partir de uma perspectiva do trabalho feminino, interseccionado por questões de classe social e por questões que observam o trabalho desde o mercado até o trabalho doméstico. Conforme fui concluindo a tese, essas questões da maternidade se apresentaram entre as minhas entrevistadas que eram mulheres de classe popular. Aí eu parti para o reconhecimento da maternidade como um trabalho.
O meu projeto trabalha as representações da maternidade nas redes sociais. Desde a última década, nos vemos performando ou construindo uma parte importante da nossa sociabilidade a partir das redes sociais digitais. A maternidade, nesse caso, também está bastante implicada no processo, na medida em que se sugere ou se exige das mães que compartilhem essa experiência majoritariamente de modo positivo. Eu me vi pessoalmente demandada e implicada a refletir sobre isso.
Arco: Qual é o maior desafio de pesquisar a maternidade?
Milena: Eu acho que o primeiro desafio é sair do circuito materno, porque a maior parte das trocas que consigo estabelecer no campo de pesquisa são com outras pesquisadoras mães. A maternidade parece, mesmo dentro do campo do feminismo, um assunto menor, doméstico, relacionado ao afeto, ou seja, individual. Um dos pareceres sobre o meu projeto dizia para tomar cuidado para que o projeto não fosse uma questão pessoal, como se a pesquisa não pudesse ser política. Eu, particularmente, me vi envolvida e estimulada a pensar sobre esse tema a partir da minha experiência. Mas não quer dizer que somente pessoas que têm a experiência materna possam falar sobre. A maternidade é uma questão da sociedade.
Nós como sociedade precisamos continuar existindo. Esse é um grande mérito do neoliberalismo: entregar para a mãe ou para a mulher a ideia de que a maternidade é uma escolha, logo, é um problema da mulher. Isso tudo é uma falácia. Nós lidamos, na nossa sociedade machista e patriarcal, com uma maternidade que é compulsória. Muitas vezes, as mulheres não escolhem ser mães, nós vivemos em uma sociedade cujos preceitos religiosos e legais não nos permitem interromper uma gravidez. Então a maternidade não é uma escolha. Vivemos em uma sociedade em que a paternidade pode ser negligenciada, basta levantarmos dados estatísticos da quantidade de filhos que não têm o registro paterno [segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 34 milhões de mulheres são chefes de família no Brasil] e tantos outros que não têm os seus pais próximos no processo de educação. Nesse contexto, quando falamos da pesquisa da maternidade, se diz que isso é coisa de mulherzinha, de mãezinha. Do ponto de vista da pesquisa, se vê que, mesmo dentro dos estudos feministas, não existe um espaço para discutir as questões de maternidade. A minha pesquisa, do ponto de vista teórico, é filiada ao feminismo matricêntrico, de uma pesquisadora canadense chamada Andrea O’Reilly, que diz que a maternidade é um elefante na sala do feminismo.
Arco: Quais são as principais características da intersecção entre maternidades e mídias?
Milena: Como uma pesquisadora do campo dos estudos culturais e que tem foco voltado ao que as pessoas fazem com aquilo que elas lêem, consomem, produzem e projetam nesse grande campo comunicacional, meu foco de pesquisa é voltado para entender como as mulheres se relacionam com essas representações de maternidade que elas consomem, mas que elas também produzem. Essas representações são distintas e por vezes antagônicas, às vezes falamos da romantização da maternidade, do que se fala e do que se espera de uma mãe, de que ela também reforce a perspectiva de uma experiência transformadora, de um amor incondicional e assim por diante. Mas, por outro lado, existem outros discursos que fazem esse questionamento. Nós, como partícipes desse grande processo que são as redes sociais digitais, construímos a nossa própria subjetividade materna à medida que partilhamos dessas experiências. Existem pesquisas muito interessantes que vão falar sobre as representações da maternidade na mídia específica e dirigida para as mães, que são os blogs maternos, as revistas, programas, documentários e séries específicos: são saberes quase disciplinares, que vão reportar o saber médico, os grandes especialistas que vão dizer para mãe o que e como se deve fazer alguma coisa. Podemos ver muitas representações da maternidade na publicidade, nas artes e em várias outras intersecções sobre as quais podemos pensar o modo a partir do qual entendemos o que é ser mãe e como ser mãe, que está, muitas vezes, sustentado ou reforçado pela mídia.
Arco: No artigo ‘Mãe é mãe, né pai?’, usa-se a expressão ‘maternidade opressora’. É possível estabelecer, na sociedade de hoje, uma maternidade que não seja opressora?
Milena: Sim, é para isso que a gente batalha, mas isso não quer dizer que seja fácil. A ideia da maternidade opressora é trabalhada pela Andrea O’Rilley no sentido de entendermos a maternidade como uma opressão adicional às mulheres. Por isso que ela reivindica que devemos observar, no estudo do feminismo, a maternidade no centro da discussão. Existem as opressões que são vividas pelas mulheres e existem as opressões que são vividas pelas mulheres que são mães. Quando eu falo de uma opressão adicional, trata-se de um atravessamento. Pensar nas interseccionalidades não significa pensar em quem é mais oprimido. Não é um concurso, não é um somatório que vai dizer quem é mais oprimido, mas são opressões que precisamos pensar de acordo com o contexto e a realidade. As mulheres mães de classe popular passam por opressões e dificuldades diferentes daquelas mulheres que são mães de classe média, entre outros exemplos. Eu acho que é possível a gente pensar em uma maternidade que não é opressora, mas dentro de um contexto bem específico. Em um contexto social amplo, infelizmente não.
A maternagem é o conjunto de atividades culturalmente atribuídas à mulher, que são relacionados a uma criança para sua educação e para o seu desenvolvimento. Se a maternagem for compartilhada e reconhecida como uma questão social, a maternidade deixa de ser opressora.
Arco: O que definiria a maternidade patriarcal?
Milena: A Andrea O’Reilly nos faz uma contribuição a partir de dez pressupostos construídos na sociedade patriarcal:: princípio da individualização, da biologização, da essencialização, da privatização, da naturalização, da normalização, da especialização, da intensificação, da idealização e da despolitização. São pressupostos que vão dizer que é a mulher que performa a maternidade e que a mulher que é mãe sabe fazer melhor. Isso é um conceito, mas eu posso observar a maternidade a partir de várias outras lentes. A construção da maternidade patriarcal se dá dentro do que é reconhecido como pressuposto básico da maternidade na nossa cultura. É interessante e é difícil enxergarmos uma maternidade que não seja patriarcal, porque isso está dentro da cultura, mas conseguimos observar como esses preceitos aprisionam a mulher. À medida que esses problemas se tornam evidentes, conseguimos desmistificar determinadas questões e dizer ‘olha, aqui está o momento em que eu me torno oprimida por esse patriarcado’.
Arco: A maternidade é permeada de desigualdades de gênero, padrões e pressões sociais. De que forma essas questões que permeiam a maternidade reverberam nas redes sociais digitais?
Milena: A maternidade romantizada não aparece como uma opressão, muito pelo contrário. Ela aparece como uma dádiva, como a melhor experiência do mundo. Parece até um contrassenso. Cadê a opressão, se está sendo dado a ela a melhor experiência que se pode ter? Mas existe uma série de outros discursos que circulam na rede que tem demonstrado essas opressões, que é aquilo que vamos denominar de maternidade real. Existem perfis que precisam ser observados, o da Andressa Reis é muito interessante: ela é uma mulher negra de classe popular, da periferia do Rio de Janeiro. Ela faz um questionamento muito interessante sobre as posições que são colocadas para as mulheres que são mães. Ela consegue criticar e fazer comparativos a partir de cenas do cotidiano. É um conteúdo que extrapola as redes e circula entre as mulheres, que começam a se identificar. É interessante esse movimento. Quanto mais damos visibilidade, mais as mulheres se veem identificadas. Em 2020, nós fizemos um questionário com mais de 2000 respostas para a pesquisa “Maternidade e uso das redes em tempos de pandemia”, do Grupo de Pesquisa Comunicação, Gênero e Desigualdades (CNPq/UFSM): por um lado, 80% das mulheres que são mães afirmaram que leem e consomem esse material que critica e que questiona determinados aspectos da maternidade. No entanto, uma parte considerável delas afirmou que não se sente confortável para repostar ou produzir material com esse conteúdo. Isso é interessante porque demonstra a existência dessa engrenagem:
Mas, ainda assim, consumir esse material já é um movimento importante. A crítica está circulando e as mulheres, em alguma medida, podem se sentir aptas a construir o discurso e a crítica nas suas rotinas. Isso tem um valor significativo e precisamos reconhecer como uma prática desse movimento.
Arco: De que forma os perfis em redes sociais digitais que contestam os papéis de gênero e a maternidade enquanto instituição podem contribuir no debate além de fazer circular a crítica?
Milena: A pandemia elucidou e demonstrou que estamos atravessando uma crise do cuidado, e ela se intensificou a partir da pandemia. Naquele momento em que estávamos em isolamento, em que a casa se tornou o principal espaço de sociabilidade e de cuidado, foram as mulheres que mais foram sobrecarregadas, tanto no cuidado com os filhos como com o cuidado com o ambiente doméstico e com os próprios familiares. A ideia do cuidado ultrapassa o cuidado com os filhos e ela vai até o cuidado com toda a família. A crise do cuidado fez eclodir coletivos maternos, que se constituem e se fortalecem a partir das redes. Eles se consolidam e se juntam para reivindicar políticas públicas de combate a essas desigualdades. Dentro do ambiente universitário, as mães que mais sofreram com a pandemia são as estudantes que precisaram manter sua rotina de estudos e, por muitas vezes, perderam os seus benefícios socioeconômicos e não tinham onde deixar os seus filhos em creche ou em escola. Além disso, há algo que eu acho que é interessante pensarmos no que diz respeito aos leitores da Arco: nós não temos um respaldo substancial que dê conta das demandas das mães estudantes. Para mães estudantes, não há licença maternidade – é um período de afastamento tal como uma licença de exercícios domiciliares. Mas esse filho continua adoecendo, precisa ir ao médico. Quando essa estudante mãe precisa faltar, ela precisa contar com a boa vontade dos professores. Nós precisamos de espaços em que essas mães possam deixar seus filhos quando precisam fazer um trabalho coletivo. É a partir desses coletivos maternos que as mães se juntam para falar sobre suas questões e para reivindicar a maior parte dos seus direitos.
Arco: Como se constitui a representação da maternidade pela mídia hegemônica?
Milena: A mídia hegemônica tende a não fazer maiores questionamentos. Não é ela que propõe desestruturar o que está posto. Só acontece quando já é questionado na sociedade. A mídia hegemônica vai dar conta de determinadas pautas, e a telenovela é uma excelente representação para isso. Não estou dizendo que não é importante que a mídia hegemônica faça esse questionamento, mas ela amplia um movimento que já está fundado na própria sociedade. A publicidade não consegue fazer isso, nunca conseguiu e não sei se ela está interessada em fazer. O máximo que ela vai fazer é colocar a dupla maternidade, colocar mulheres negras no comercial, mas o pai continua aparecendo como um sujeito coadjuvante, como aquele que brinca ou como desastrado. Ele não aparece como alguém que exerce a maternagem. O humor é usado como um elemento sofisticado para dizer e reiterar isso, e acaba por favorecer uma lógica que é nociva. Existem representações de desconstrução dessa mídia hegemônica, mas elas são tímidas. Eu vejo como um movimento que já é pulsante na própria sociedade. A mídia especializada e o cinema conseguem questionar mais. Mas, se olhar para o jornalismo, para a publicidade e para a telenovela como discursos hegemônicos, o que mais vemos é o reforço do padrão que oprime as mulheres.
Arco: Qual o espaço que ocupa a romantização da maternidade nessas diferentes mídias?
Milena: É o maior espaço. Eu acho que o que a gente tem visto nos últimos anos é uma quebra. Quando entrevistamos as mulheres, elas reproduzem isso, elas dizem que o laço entre a mãe e o filho é diferente porque a mãe é que gera desde a barriga. O espaço é predominante e o questionamento é mínimo. Precisamos pensar sobre isso, inclusive como esse questionamento aparece. Na nossa configuração social e política, o jornalismo às vezes traz o discurso de protagonismo de famílias monoparentais e das mulheres chefes de família como se elas estivessem protagonizando uma revolução. Isso aparece como positivo, mas não se descortina. É um grande problema social que está posto. Ou temos um discurso absolutamente nocivo da mídia, ou um discurso que é sustentado e que circula na sociedade e que se o jornalismo não tomar conta e não cuidar com o que fala, acaba por reforçar e reproduzir como uma verdade.
Falar sobre maternidade é também falar sobre uma estrutura social mais ampla que condiciona ou que coloca a mulher em um espaço difícil.
Expediente:
Entrevista: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e bolsista; Ludmilla Naiva, acadêmica de Relações Públicas e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Relações Públicas: Carla Isa Costa;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.