Mônica Saldanha Dalcol, mestre em Filosofia e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, está realizando uma tese que é inovadora e promete quebrar barreiras. Ela trabalha com a autoria feminina e afrodescendente ao longo de três séculos no Brasil (XIX, XX e XXI). Mônica trata desse assunto a partir da crítica feminista e o relaciona com filosofia e literatura. A doutoranda destaca na sua tese as categorias de violência, como o racismo e, a partir disso, como as autoras conseguem encontrar refúgios ficcionais para trabalhar questões de ética, humanidade e alteridade. Seu trabalho conta com três autoras que são de grande relevância para a literatura: Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Ana Maria Gonçalves. O trabalho aponta que, apesar das mudanças desses três séculos, a autoria feminina e afrodescendente ainda é marcada pelo racismo e pela desigualdade de gênero. Confira a entrevista que a nossa equipe fez com a pesquisadora:
ARCO: Como surgiu a ideia de fazer a tese sobre esse tema?
MÔNICA: Eu sou professora de filosofia de escola e eu sempre tive uma dívida muito grande em trabalhar questões sobre o feminismo, então na sala de aula eu me deparei com alunos e alunas negros que me questionavam a questão da representatividade. Como a minha formação é deficiente nesse sentido de eu não ter estudado nem filósofas e filósofos negros e eu mesma não ter leituras e escritores e escritoras afro-brasileiros, eu acabei sempre tendo uma dívida com isso. É uma questão de consciência ética para mim, então isso sempre me incomodou muito. Eu tinha uma colega na época que me apresentou o professor de Letras, Anselmo Peres Alós, que já tem uma pesquisa gigantesca sobre literatura afro-brasileira e sobre autoria feminina. Ele acolheu super bem e no mesmo ano que eu o conheci, já tive a ideia de ingressar no doutorado.
ARCO: Qual a relevância desse assunto para o seu campo de estudo e a sociedade no geral?
MÔNICA: Para o meu campo do estudo, é primeiro tentar trazer à tona essas vozes que foram silenciadas, principalmente pela questão acadêmica e pelo déficit de formação que a gente tem desde a academia. Isso vai refletir na nossa prática dentro da sala de aula e, consequentemente, refletir na formação humana dos alunos que vão sair da escola sem conhecer esses autores e autoras. Pela questão acadêmica, é quase que tentar sanar uma dívida histórica, porque essas autoras – tirando a Ana Maria Gonçalves, que está viva – não tiveram reconhecimento em vida e ainda não fazem parte do cânone literário. São autoras que são conhecidas mais pelo movimento negro e pelo movimento das mulheres negras do que propriamente pela academia. Então a relevância desse tema é fazer com que as autoras tenham o lugar de fala delas garantido dentro do campo acadêmico também. Se a gente for parar para pensar na Carolina Maria de Jesus, por exemplo, existem mais de cinco mil manuscritos na Biblioteca Nacional, isso não foi reeditado e não veio a público. Têm contos, romances, peças de teatro e a gente não conhece isso. Carolina foi uma autora mais conhecida no exterior do que propriamente no seu país. Eu considero uma relevância urgente para entendermos como é que se dão as desigualdades históricas e a própria conjuntura histórica de um país que foi um dos últimos a abolir a escravidão.
ARCO: Quais foram as maiores dificuldades encontradas?
MÔNICA: No meu primeiro ano de doutorado, meu orientador estava fazendo pós-doutorado no Recife e eu imaginava que o PPG de Letras da UFSM tinha uma abertura maior para essas temáticas de crítica feminista e autoria feminina afrodescendente e, nem sempre foi assim. Às vezes se mantém uma posição bastante elitista, masculinista, para não dizer machista, e branca de que o que eu estudo e o que essas autoras produzem seria uma literatura menor, diante daquilo que já é considerado cânone. Há um certo receio de achar que as pesquisas que visam o resgate e trabalham com a questão de autoria feminina podem desocupar ou, então, que o cânone poderia perder seu lugar já legitimado e as tais pesquisas fizessem “cair os muros da universidade”. Eu ficaria bem feliz, porque acho que cada vez mais a universidade deveria ter cara de povo.
ARCO: Durante a sua pesquisa, você encontrou alguma curiosidade que não esperava?
MÔNICA: Eu encontrei através de uma pesquisa de doutorado da UFMG, a questão de que “Casa de Alvenaria”, que até então durante a elaboração da minha qualificação, eu achava que não era um livro que tinha sofrido com edição de cortes do Audálio Dantas, o jornalista que lança a Carolina. E através dessa pesquisa eu descobri que ele também fez alguns cortes em “Casa de Alvenaria” e para mim foi uma grande surpresa, eu fiquei bastante chocada. Eu fui também para alguns eventos em Teresina, no Piauí, que já tem uma pesquisa bastante avançada com relação à autoria feminina e afrodescendente. As pesquisas deles estão bem mais avançadas do que as nossas aqui no Sul. Lá não se discute se o que essas autoras estão fazendo é literatura ou não. [Essas] foram as duas grandes surpresas que eu tive.
ARCO: Por que alguns trechos do livro sofreram cortes? Por questões de censura?
MÔNICA: Tem toda uma questão de jogo político. Há cortes com relação aos termos que são utilizados pela Carolina, as passagens que abordam a questão do suicídio e todos os termos que soavam muito intelectuais. A própria tese da professora Elzira Perpétua, da UFMG, ressalta que se tinha uma ideia de colocar a Carolina como uma vítima social e não como uma autora autodidata e genial como, de fato, se aparece nos manuscritos.
ARCO: Quando se trata de mulheres afrodescendentes na literatura brasileira, tem algo que não pode deixar de ser comentado?
MÔNICA: É difícil porque sou uma mulher branca falando. Mas acredito que a primeira coisa é a questão do erro do “feminismo branco” de não ter levado em conta as demandas diferentes das nossas companheiras afrodescendentes. A segunda é a questão da marca histórica da escravidão. Enquanto as demandas de mulheres brancas eram pelo voto, as das mulheres negras eram outras, como por exemplo, ter o que comer. A própria reivindicação da humanidade para as mulheres afrodescendentes vai ser bem tardia. Também existe a ideia de hipersexualização das mulheres na literatura brasileira, isso também é algo que as mulheres afrodescendentes sofrem bem mais do que as mulheres brancas. Para mim, a hipersexualização e a escravidão são questões que a gente não pode deixar de lado.
ARCO: O título da tese começa com “As vozes das excluídas”. Por qual motivo escolhestes essas palavras e qual o real significado delas?
MÔNICA: Eu escolhi essas palavras junto com o meu orientador, por pensar justamente o lugar dessas mulheres dentro do plano acadêmico. Nos perguntamos: “qual é o lugar dessas mulheres dentro do cânone?”. A gente vive um “boom” de pesquisas sobre a questão de autoria afrodescendente de alguns anos para cá, principalmente da representatividade das mulheres afrodescendentes dentro da academia, mas ainda percebemos uma resistência muito grande pela ideia de que o cânone é feito para homens e por homens. Apesar de nós termos, desde a década de 1980 no Brasil, teóricas feministas tentando revisitar esse cânone e fazendo, em paralelo, um cânone das mulheres sobre escritoras brasileiras. Ainda sim, quando se trata de escrita afrodescendente, esse lugar de subjugação permanece, há uma resistência muito grande.
ARCO: Quais as contribuições pessoais e profissionais que a tese te trouxe?
MÔNICA: Eu estou aprendendo, cada vez mais, a ser gente. Estou aprendendo a reconhecer meu lugar de privilégio. A ideia de privilégio é sempre muito forte pra mim. É uma pesquisa que me apaixono, mas que também me custa muito caro em termos emocionais e psicológicos. Eu posso dizer que estou fazendo algo que eu sempre quis fazer, é uma questão de ter comprometimento principalmente com a questão da minha luta junto de outras mulheres. Tenho ganhado muito em termos humanos e isso tem refletido inclusive na minha prática como professora de Filosofia.
Reportagem: Martina Irigoyen
Fotografia: Rafael Happke
Gráfico: Pollyana Santoro