Eliminada do reality show Big Brother Brasil no último domingo (10), a artista Linn da Quebrada se destacou nas redes sociais. De acordo com o Google Trends Brasil, após o anúncio de sua participação, o nome da cantora foi pesquisado mais de 50 mil vezes. Cerca de 84% dos brasileiros acompanham o programa e Linn alcançou o Top 10 dos finalistas. Por se identificar como travesti e frequentemente referir-se a si mesma como “bicha, trans, preta e periférica”, a sua participação impactou as redes sociais e evidenciou a necessidade de trazer visibilidade para essa comunidade.
A artista já era conhecida pelo público LGBTQIA+ e também ganhou evidência a partir de papéis em séries, novelas e por sua carreira musical. Linn da Quebrada se considera uma artista afrontosa, que toca em assuntos polêmicos e questiona as normas de gênero e sexualidade. Por isso, a cantora foi objeto de pesquisa em um artigo na Revista Estudos Feministas (REF), em que Patrick Borges Ramires de Souza, cientista social graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é um dos autores. “A Linn faz parte de um corte geracional de pessoas muito jovens que buscam enfrentar as noções de gênero, calcadas no binarismo heterossexual do masculino e feminino. Isso despertou o meu interesse de investigação, então eu comecei a pesquisar sobre ela”, diz Patrick.
A repercussão de Linn da Quebrada no BBB
A participação de Linn no reality show não foi repentina: desde a inclusão de personalidades famosas no programa, os fãs da artista faziam campanha para que ela fizesse parte do elenco. “Ela queria se inserir nesse espaço, também como um local legítimo de ser ocupado por um corpo como o dela. Um corpo transgressor, preto, periférico e de uma travesti. Ela já trazia nas redes sociais a importância de ocupar esse espaço de forma política e eu acredito que é o que ela fez no programa”, afirma Patrick.
Durante os 22 anos do BBB, houve apenas uma participante trans antes da Linn. Ariadna participou da edição de 2011, foi a primeira eliminada e se revelou transexual somente após sua saída. Na época, houve receptividade negativa por parte do público. Dez anos depois, Linn da Quebrada participou do programa com uma trajetória diferente: a cantora assumiu uma postura de protagonista e foi bem aceita pela audiência. Segundo uma pesquisa feita pela IMO Insights, Linn recebeu 68% de aprovação do público e foi vista como uma pessoa batalhadora. Ela também alcançou três milhões de seguidores no seu Instagram após sua eliminação.
A presença da artista no reality gerou discussões nas redes sociais sobre gênero e sexualidade. Para Patrick, é importante que esse debate aconteça: “O BBB também é acompanhado pela família tradicional brasileira e o programa permitiu que esse diálogo entrasse na casa das pessoas. A Linn trouxe essas questões para espaços que talvez em outros momentos não teria oportunidade de estar”, reflete.
Outro debate importante provocado por Linn foi o da transfobia e do uso do pronome correto ao se referir a pessoas trans. A utilização é uma forma de reconhecer a existência e respeitar as pessoas que se identificam com o gênero trans, travesti ou não binário, além de demonstrar respeito. Durante o programa, a cantora se sentiu magoada com os erros de alguns colegas de confinamento: “Ontem tive uma situação que acabou se desdobrando um pouco com outras pessoas, estamos na metade do programa e a cada dia que passa eu me pergunto: por quanto tempo mais eu vou amenizar o que eu tô sentindo para tornar mais leve pro outro?”, comentou Linn no confessionário, no dia 24 de fevereiro.
No entanto, apesar de evidenciar a luta da comunidade trans, Linn afirma que não quer representar ninguém e nem um movimento. Patrick complementa: “Quando eu analiso esse discurso dela, eu penso muito que há um interesse em mostrar para as pessoas que ela pode ser um exemplo, mas não um espelho a ser seguido. É bem claro no seu discurso que essa representatividade que ela traz é limitada, porque só alcança ela e não necessariamente as outras artistas que não têm o mesmo espaço de visibilidade”, explica.
Linn como foco de pesquisa acadêmica
Patrick analisou as performances artísticas da cantora no contexto de internet e mídias digitais entre 2016 e 2020. A pesquisa concluiu que as novas configurações midiáticas deram espaço para novas representações, como a Linn, de afronta às normas restritivas, hierarquizadas e moralizantes de gênero, sexualidade e raça.
O cientista social categoriza a cantora como uma artista dissidente de gênero. A dissidência ressalta as possibilidades de produção do gênero que escapam às normas que as querem enquadrar. “O tempo inteiro a Linn está falando um pouco sobre isso, nas letras das suas músicas, nos seus videoclipes, no cotidiano de compartilhamento da sua intimidade no Instagram, ela está falando sobre a importância da produção desses corpos que não se adequam ao modelo comportamental do próprio gênero”, expõem.
Para o autor, Linn tem um engajamento performativo que dialoga com essa dissidência. Patrick observou isso no início da carreira da cantora, em que ela fez uso da sua performance artística de modo diferente a depender do contexto em que estava inserida.
Um dos exemplos trazidos pelo pesquisador foi a diferença de estética e comportamento da artista em dois programas distintos. O primeiro foi a participação dela no Amor e Sexo, em 2017, que teve como proposta abordar questões LGBTQIA+, da cultura à discriminação e à violência. Aquela edição teve uma temática carnavalesca, marcada pelo uso de muitas cores para enaltecer a diversidade. Linn participou como jurada, mas, apesar de estar esteticamente dentro da proposta do programa, usando roupa e peruca coloridas, o seu comportamento foi o que chamou atenção. “Ela adotou uma postura totalmente oposta à carnavalesca, ela estava séria, combativa, com uma estética preta afrontosa e aí eu pude perceber como ela se engajou de uma forma totalmente distinta do que o programa propunha”, pondera Patrick.
O autor explica que essa mudança de postura demarca um engajamento performativo. Linn também foi convidada para participar do programa “Prazer, Eu Sou”, da jornalista Regina Volpato, no Youtube, em 2016. Naquele momento, a cantora se inseriu em um espaço totalmente distinto, o público do programa eram pessoas de classe média e cisgênero (quando o indivíduo se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu) e, por isso, a cantora manteve uma postura mais séria. O cenário da entrevista trouxe uma distinção de classe percebida no piano ostentado ao fundo da gravação, e Linn aparece com roupas e maquiagem discretas. A cantora assume uma imagem feminina que, em conjunto com seu comportamento, contrasta com a estética em que ela aparece nos videoclipes.
“Nesse programa, a Linn está com uma estética totalmente distinta, mais adequada ao cenário de uma classe média branca paulistana. Então é isso enquanto engajamento performativo, é o modo como ela se relaciona com esses espaços e mídias que ela frequenta”, exemplifica.
A importância de abrir espaço para outros artistas
De acordo com o cientista social, Linn compõe uma nova geração de produção artística, na qual performances dão destaque ao corpo, à sensualidade, à sexualidade e à dissidência de gênero. No entanto, Linn da Quebrada não está sozinha nessa produção, existem diversos artistas, como Liniker, da banda “Liniker e os Caramelos”, Assucena Assucena e Raquel Virgínia, do grupo musical “As Bahias e a Cozinha Mineira”, as drag queens Pabllo Vittar e Glória Groove, a MC Xuxu e a MC Trans e o rapper Rico Dalasam – dentre outras artistas que tensionam as normas de gênero como mote para o seu fazer artístico.
“A gente tem todo um conjunto de outros artistas que talvez não conquistem a mesma visibilidade. A presença da Linn talvez dê um pouco mais de espaço para esses artistas em um cenário fora do ambiente LGBT, mas ainda existem algumas barreiras a serem rompidas”, constata o pesquisador. Contudo, Patrick destaca que esses artistas não precisam somente de visibilidade, pois esta, sozinha, não garante políticas públicas de melhoria para a vida de pessoas trans. Conforme o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, o Brasil ocupa há 13 anos o topo da lista de países que mais matam pessoas trans.
Para o pesquisador, além de ser importante reconhecer os artistas dessa comunidade, é preciso também incentivar políticas públicas educacionais, de cultura, de inserção no mercado de trabalho e estar atento às pessoas transexuais que se candidatam a cargos políticos. “Não é tão simples dizer que agora que a Linn participou do BBB, as trans vão conseguir mais visibilidade. Talvez a Linn consiga, mas e as outras? Agora é o momento de exigir mudanças”, provoca Patrick.
Expediente:
Reportagem: Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ludmilla Naiva, acadêmica de Relações Públicas e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;
Relações Públicas: Carla Costa;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.