Na década de 1960, o quero-quero, conhecido como o “sentinela dos pampas”, foi escolhido como mascote oficial da então Universidade de Santa Maria (USM). De acordo com o livro UFSM – Memórias, de Luiz Gonzaga Isaía, a ave foi escolhida pelo reitor José Mariano da Rocha Filho para representar a interiorização do ensino, por fazer parte da identidade gaúcha e pelo zelo com o que defende o seu ninho. O responsável por dar forma a todo esse simbolismo foi Joel Saldanha, o primeiro desenhista da Universidade, que construiu uma carreira de 34 anos dentro da instituição.
Sua história na Universidade começou no dia 27 de agosto de 1957, quando foi contratado para fazer os desenhos de cirurgias para as aulas de José Mariano da Rocha na Faculdade de Medicina. No ano de 1961, Saldanha foi eleito presidente do Centro de Funcionários das Faculdades de Farmácia e Medicina de Santa Maria.
No ano de 1963, a pedido do professor Artur Primavesi, iniciou os trabalhos de um desenho animado intitulado “Vida do Solo”, filmado em 16mm e cores. Esse projeto durou até 1968. Saldanha desenhou também as Medalhas do Mérito Universitário e a bandeira com brasão para a Universidade. Ao longo de sua carreira na instituição, trabalhou com desenho, produções audiovisuais, cartazes, projetos de móveis, álbuns seriados e ilustrações cirúrgicas, até se aposentar em janeiro de 1991.
Sua maior paixão, o audiovisual
A obra de Joel Saldanha foi um dos temas da 48ª Feira do Livro de Santa Maria, por meio da exposição interativa “Nos Animados Tempos de Joel Saldanha”, realizada pela TV OVO na Sala de Exposições da Universidade Franciscana (UFN), do dia 8 ao dia 29 de outubro de 2021.
Denise Copetti, assistente de produção da TV OVO, conta que recebeu o acervo no início de 2020, doado pelas filhas de Saldanha. Mas, por conta da pandemia, os trabalhos na TV foram interrompidos e não foi possível analisar o material com profundidade. A abertura de um edital da Lei Aldir Blanc, no entanto, trouxe a possibilidade de iniciar o projeto de catalogação e exposição do acervo. O projeto foi aprovado e, a partir disso, foi encaminhado recurso para organizar o acervo e fazer uma exposição com vídeos sobre ele.
Assim, com o auxílio da Fundação Eny, a TV OVO iniciou, em julho de 2021, o processo de catalogação e organização do acervo que, entre materiais de desenhos, películas, filmes e objetos de cenários, soma mais de 300 itens. A exposição foi concebida no formato virtual, mas, com o arrefecimento da pandemia, surgiu a oportunidade de levar parte do acervo até o público.
Além dos desenhos e obras cinematográficas, a exposição também continha trechos de entrevistas e até mesmo uma espécie de documentário intitulado “O desenho animado e sua técnica”, no qual Saldanha mostrava como era o processo de criação por trás de suas animações. Esse material deu um formato interativo para o projeto: “Foi bacana porque a gente pôde colocar ele falando sobre o trabalho dele, como ele fazia, como ele produzia”, destaca Denise. O material exposto foi dividido em etapas, como um passo a passo de produção de uma realização audiovisual, que começava com os desenhos e terminava com um filme completo disponível para o público assistir.
Quem auxiliou na curadoria foi a jornalista Marilice Daronco. Enquanto realizava sua monografia de especialização em Cinema, finalizada em 2012, ela fez algumas entrevistas com Joel Saldanha, que posteriormente integraram o livro O Nosso Cinema Era Super (que conta a história do circuito de cinema Super-8 em Santa Maria). Parte dessas entrevistas também integraram a exposição da TV OVO.
Marilice conta que, na época das entrevistas, as obras de Saldanha eram desconhecidas, então cada encontro com ele era uma nova etapa de descoberta – mesmo de elementos básicos, como quais eram as produções, o formato e o tempo levado para finalizar cada uma delas. Ela recorda que, à medida que ele falava de suas obras, as trazia e as mostrava, o que tornou o processo muito enriquecedor para ela enquanto pesquisadora.
Sobre as obras, a jornalista destaca a qualidade dos trabalhos e o perfeccionismo de Joel Saldanha, mesmo em uma época como a década de 1970, onde era muito difícil fazer audiovisual, por conta da escassez e do preço dos equipamentos. Além disso, suas animações eram feitas no formato quadro-a-quadro, no qual, em vez de os personagens se movimentarem pelos palcos, é o palco que muda a cada cena. Essa técnica complexa e que requer muita dedicação era feita nas suas horas vagas, pois, como Marilice frisa, essa era a sua paixão.
Para ela, a contribuição de Saldanha não se restringe apenas ao audiovisual de Santa Maria, mas também para o cenário estadual e nacional. “Ele foi um grande desenhista e uma pessoa muito apaixonada pelo cinema. Esses realizadores pioneiros faziam isso por amor pelo cinema, pelo desejo de se aperfeiçoar. É muito legal ver que o audiovisual cresceu em torno disso”, afirma.
Durante as entrevistas, Marilice pôde conhecer o autor e o carinho que ele tinha por suas produções: “Durante a vida, ele não teve o trabalho reconhecido dessa forma, em uma exposição com todos os seus materiais. Ver aquelas coisas reunidas teria sido muito importante para ele – e é muito importante para nós podermos conhecer e valorizar o trabalho de personagens como ele, pioneiros do cinema”, ressalta.
Reencontro e redescoberta
A exposição foi especialmente marcante para Aline Saldanha, filha mais nova de Joel Saldanha. Ela reconhece que, por mais que tenha acompanhado e guardado o acervo durante anos, o evento foi uma redescoberta, pois teve a oportunidade de ver a grandiosidade de todas as obras reunidas. “Ele era plural, gostava de muitas coisas e a mente dele estava sempre pensando em algo novo. Meu pai adorava contrariar a ideia de que algo era impossível de ser feito e não desistia de uma ideia por mais difícil que fosse colocá-la em prática”, conta a caçula.
A filha recorda que a relação de Saldanha com o audiovisual era tão intrínseca que já fazia parte do jeito dele de ser e de ver o mundo: “Fomos criadas vendo o pai filmar, inventar, criar, fotografar, produzir”. Por meio da criação de bonecos, prédios, cenários, letreiros e até alguns equipamentos, o cineasta sempre criava uma nova forma de dar vida às suas ideias.
Aline destaca o grande orgulho pelo legado de seu pai e acredita que, se ele pudesse ter visto a exposição, teria a sensação de ‘missão cumprida’ por perceber que a sua paixão fez sentido para outras pessoas. “Foi o trabalho de uma vida toda, a paixão, a criatividade, o tempo e a energia dele estavam ali. A exposição foi não só uma forma de homenagear e reconhecer isso, mas de fazer as pessoas terem contato com a sua genialidade. Ele ficaria muito feliz se visse que sua obra pode inspirar, instigar e, quem sabe, transformar pessoas”, finaliza.
Após o fim da exposição, o acervo voltou para a sede da TV OVO, onde está guardado. No futuro, a TV planeja criar peças audiovisuais sobre as obras. Até o momento, não há previsão de uma nova exposição.
A trajetória de um artista
Filho de Tácito Maciel Saldanha e Libania Coimbra Saldanha, Joel nasceu no dia 18 de fevereiro de 1936, na cidade de Quaraí – RS, porém foi registrado em Alegrete, para onde a família se mudou 15 dias após seu nascimento. Foi criado com cinco irmãos. Moraram em diversas cidades, em função das transferências do seu pai, militar.
No ano de 1945, quando a família residia em Rosário do Sul, o pequeno Joel conheceu o jornal Glôbo Juvenil, que o introduziu às histórias de quadrinhos com aventuras do Super-Homem, Capitão América, Tocha Humana, Popeye e outros. Apaixonado por esse universo, passou a consumir todos os tipos de revistas de quadrinhos. Junto de seus amigos, criava suas próprias fantasias de heróis para as brincadeiras.
Em 1947, Joel construiu seu primeiro rádio de galena – um dos primeiros modelos de rádio, alimentado pelo mineral galena e que não precisava de fonte de energia para funcionar. A partir daí, foi construindo mais modelos e os aperfeiçoou para sintonizar várias emissoras. Ele também tinha, junto com o irmão José Maria, uma fábrica de brinquedos feitos de madeira compensada e pintados com esmalte anilina para serem vendidos às outras crianças da rua.
Nessa época, conheceu um homem chamado Gersy, que desenhava e vendia HQ’s para editoras do Rio de Janeiro e São Paulo. Foi ele quem ensinou Joel a desenhar com tinta nanquim. Na ânsia de dominar a técnica, ele passou a criar as próprias HQ’s e sentiu que ali estava o seu futuro.
Outra influência foi seu pai: Tácito Saldanha. Apaixonado por fotografia, complementava a renda do exército com fotografias 3×4 para a carteira militar de novos recrutas. Ele possuía uma câmera com tripé e construiu sua própria câmara escura onde revelava seus filmes. Com ele, Joel Saldanha aprendeu os segredos da fotografia.
Em 1948, com a ajuda de um amigo, construiu seu primeiro projetor de slides para filmes de 35 mm a partir de restos e pontas de filmes que conseguiam com o operador de projeção de cinema. Em 1950, fabricou seu primeiro projetor de cinematográfico 16mm e com ele reunia a gurizada da rua para realizar sessões de cinema. Logo em seguida, fabricou uma filmadora 16mm. A partir daí, o cinema entrou em seu sangue e ele nunca mais descansou, segundo suas próprias palavras.
Em julho de 1952, a família foi transferida para Quaraí. Lá, Saldanha começou a trabalhar com desenho, pintando letreiros para a prefeitura. Em 1954, mudou-se para Santa Maria e, no ano seguinte, entrou para o exército. Nas horas de folga, fez curso de fotografia no Instituto Técnico Cultural de São Paulo. Comprou sua primeira câmera 35mm, marca Baldinette e com objetiva Schneider 1.8 e, assim como seu pai, fazia fotos no quartel para ganhar um dinheiro extra.
Depois de sair do quartel, foi trabalhar como arte finalista na agência de publicidade Provenda, onde fazia acabamentos em nanquim. Posteriormente, ele assumiu o departamento de criação da agência.Trabalhava também como desenhista freelancer para o Jornal A Razão, fazia propagandas e logotipos para empresas da cidade, criou os logotipos da Joalheria Troian, União dos Caixeiros Viajantes, Sociedade Socepe, entre outros. Em junho de 1960, começou o curso de desenho artístico e comercial no Instituto Universal Brasileiro (IUB). No mês seguinte, construiu um telescópio tipo Newton (refletor) de 120 aumentos (amplia a imagem em até 120 vezes).
Em 1971, começou o Curso de Rádio, Eletrônica e Televisão por correspondência na Hemphill Schools da Califórnia, Estados Unidos, com duração de sete meses. Em 1973, fez Curso de Audiovisuais no Centro de Ensino Técnico do Estado da Guanabara (CETEG). Em 1977, começou a se aventurar no campo do desenho animado. Construiu sua mesa de filmagem, fez o desenho de centenas de fotogramas para filmar quadro a quadro. Fez um desenho animado em cores, um curta metragem que contava a história de três gatos: “Os Miautralhas”. Produziu também um filme em cores, “O desenho animado e sua técnica”, que utilizava nas palestras que fazia no Curso de Comunicação e no Curso de Belas Artes da UFSM.
Na área da animação, fez também experiências com efeitos especiais de câmeras, espelhos, prismas, maquetes, explosões, fundos invisíveis, sobreposições, invisibilidade, objetos voadores e backgrounds.
Em 1983, começou a projetar a sua oficina caseira. No ano seguinte, começou a construção com uma máquina multiuso onde podia cortar metais, plásticos e cerâmicas. Em 1985 e 1986, construiu uma bancada e furadeira de baixa rotação. A partir de 1987, deixou de lado a mecânica, para se dedicar à pintura.
Em 14 de julho de 1998, começou a construir um projetor de cinema 16mm com peças fabricadas por ele. Também montou um telescópio refletor (de Newton) com 400 aumentos. Em 2 de junho de 2005, começou a criar maquetes e bonecos para uma experiência de animação em vídeo. Fez inúmeras maquetes, cenários e bonecos para o projeto, mas não chegou a filmar.
Criou projetos, histórias, desenhos e filmes até 2017, quando, em decorrência de um problema circulatório e posterior cirurgia, ficou impossibilitado de exercer sua autonomia e dar continuidade às suas invencionices. Joel faleceu em 12 de janeiro de 2018, deixando como maior legado a sua brilhante trajetória.
Família
Em junho de 1976, nasceu sua primeira filha, Mônica. Miriam, sua segunda filha, nasceu em outubro de 1977. Ambas são fruto de sua relação com Ivandira Dotto, com quem se casou em 1963 e se divorciou em 1980.
Em 1981, casou-se com Neia Berneira. Dessa união nasceu, em março de 1982, sua filha Sílvia e, em maio de 1983, sua caçula, Aline. Se separou de Neia em 1992.
Em 2000, nasceu sua primeira neta, Brenda, filha de Miriam. Nasceram também Marianna, em 2007, e Antonella, em 2014, filhas de Mônica; e Rafael, em 2012, filho de Silvia. Em 2016, nasceu sua bisneta Mikaela, filha de Brenda.
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