Ir para o conteúdo Revista Arco Ir para o menu Revista Arco Ir para a busca no site Revista Arco Ir para o rodapé Revista Arco
  • International
  • Acessibilidade
  • Sítios da UFSM
  • Área restrita

Aviso de Conectividade Saber Mais

Início do conteúdo

ESCRITA ACADÊMICA: A BASE DA CIÊNCIA

Gilson Luiz Volpato, reconhecido nacionalmente na área da redação científica, palestrará na UFSM em setembro



Gilson Luiz Volpato é biólogo licenciado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre doutor e pós doutor por instituições de Israel. Em 1986, paralelo às atividades como professor, passou a dedicar-se ao ensino da redação científica e do processo de fazer ciência à comunidade acadêmica. Nestes 30 anos, Volpato já somou mais de mil cursos ministrados no Brasil e no exterior. Atualmente, atinge entre oito e 10 mil alunos por ano com suas palestras, e outras tantas por meio das ações do Instituto GilsonVolpato de Educação Científica (IGVEC), do qual é sócio-fundador.

 

Volpato estará na UFSM nos dias 10, 11 e 12 de setembro para evento PROPAGUE: A Arte da Escrita Científica, que acontecerá no Centro de Convenções da UFSM. Serão abordadas questões como a educação e a mentalidade científica no campo acadêmico, além de aspectos práticos para a elaboração e publicação de um texto científico. As inscrições estão abertas até a próxima quarta-feira (15), no site do evento.  

 

Os acadêmicos de Jornalismo Paulo César Ferraz e Katiana Campeol, da revista Estilo Editorial da Editora UFSM conversaram com Volpato, reconhecido nacionalmente na área da redação científica. Confira:

 

Qual a importância da redação acadêmica para a construção do conhecimento?

Volpato: O conhecimento científico é aquele que está na ciência e serve de respostas dadas pelos cientistas às questões que surgem na humanidade. Assim, considero a ciência como uma rede de conhecimentos obtidos pelo Método Científico, na qual temos as respostas para boa parte de nossas indagações sobre o mundo. Embora todas as pesquisas sejam feitas em algum lugar, essa rede de conhecimento é internacional. Fazer ciência significa melhorar essa rede. Note que “rede” implica que os conhecimentos estejam conectados. Para que façamos ciência, precisamos ter conclusões científicas publicadas (que vêm de pesquisas científicas), pois somente assim os cientistas podem vê-las e julgá-las. As conclusões que são aceitas pela comunidade científica acabam sendo incorporadas na ciência. O que é visto ou é ignorado não entra na ciência, mesmo que publicado. Por isso, fazer pesquisa científica e publicar artigos são elementos necessários, mas não suficientes para construção da ciência. Com isso em mente, passo a responder à pergunta.

 

Na publicação científica, note que a redação acadêmica é a interface entre as ideias do autor e o entendimento dos leitores. Ou seja, ela medeia a transmissão de informação entre o cientista e seus pares. Ela é a nossa fala. Esse ponto é crucial, porque o conhecimento que entrará na ciência não é todo aquele que está publicado, mas somente aquele que, após a publicação, é lido e aceito por parcela significativa da comunidade científica. Afinal, se perguntarmos algo à ciência, com que conhecimento responderá? O que é ignorado ou não percebido desaparece. O fato de poder ser ressuscitado no futuro nada garante que o será e, portanto, só será resposta da ciência caso seja ressuscitado.

 

O senhor desenvolveu vários cursos sobre escrita acadêmica. Para o senhor, qual a importância de qualificar a escrita acadêmica?

Volpato: Se a redação acadêmica não é de boa qualidade, pode impedir que o conhecimento se transforme em ciência. Note que o artigo científico desenvolve duas argumentações lógicas principais, a primeira na introdução e a segunda no desenvolvimento (métodos, resultados e discussão), sendo que este segundo argumento defende as conclusões. É nesse segundo argumento, particularmente na discussão, que o autor apresentará aos leitores as considerações lógicas que o levaram a propor as conclusões do trabalho. Afinal, mesmo após ler os artigos, os leitores poderão não aceitar as conclusões defendidas pelo autor, podendo mesmo ignorá-las totalmente. Atualmente, num momento em que existe uma verdadeira poluição de publicações científicas disponíveis, construir artigos que consigam sobressair em meio aos demais é ainda mais difícil. Ou seja, a chance de ficarmos desconhecidos é grande. Qualificar a escrita acadêmica é o mesmo que qualificar o cientista para debater com seus pares, o que só tem sentido de ser feito em cenário internacional.

 

Convencer editores e leitores não é tão difícil, pois eles mostram suas críticas e podemos contra argumentar. Porém, convencer leitores é muito mais complicado, pois os autores dificilmente terão acesso às críticas desses leitores. Assim, o texto deve se sustentar até mesmo para dúvidas que não conhecemos. Mesmo que a dúvida decorra de falha do leitor, o prejuízo é do autor e da ciência, mostrando, mais uma vez, a importância de uma boa redação científica.

 

Quais são as consequências de uma escrita acadêmica qualificada?

Volpato: De um lado, a principal consequência de uma escrita acadêmica qualificada é que sua argumentação será mais facilmente entendida pelos seus pares. A partir disso, seus manuscritos serão melhores julgados pelos revisores e editores da revista (mesmo que o neguem, ao menos negaram porque entenderam) e suas publicações serão mais facilmente encontradas, lidas e entendidas pelos outros cientistas (mesmo que negadas, entendidas). Veja que a aceitação não é a meta da escrita acadêmica, mas a compreensibilidade da argumentação do cientista. A aceitação vem depois disso e dependerá da qualidade científica do estudo. Ao contrário, quando a escrita entra no setor da “persuasão”, ela fere preceitos científicos e também de boas práticas da ciência. Só há uma forma ética e forte para convencer outro cientista: fazer estudo com metodologia forte de forma a gerar resultados evidentes que ajudam a sustentar as conclusões, sendo o estudo publicado em revista internacional de bom nível e com redação impecável.

 

Por que é importante ter uma boa base teórica e epistemológica para uma redação acadêmica eficiente?

Volpato: A redação acadêmica é a forma como os cientistas conversam entre si e, portanto, deve expressar toda a força científica da argumentação. No texto científico não há espaço para opiniões, mas para argumentações lógicas e científicas. Assim, ele deve expressar a mentalidade científica.

 

Como fazer isso se não conhecemos ciência adequadamente? As revistas científicas mais fracas geralmente são coordenadas por cientistas que exercem esse mesmo nível de ciência. Por exemplo, há revistas que não permitem que se conclua “além dos dados”, mostrando ignorar um dos preceitos mais importantes da ciência. Outras, aplicam análise estatística e as abandonam quando contrariam a vontade do autor, priorizando análises gráficas ou de tendências. Muitos fazem citações achando que é importante mostrar de quem é a ideia utilizada, quando para sustentar conclusões a citação é feita para indicar a obra onde encontramos as evidências empíricas (resultados) que sustentam a afirmação que gerou nossa citação. Imagine na antiguidade os cientistas trocando informações de suas pesquisas por meio de cartas pessoais. Quem os guiava para compor as cartas, senão a formação científica?

 

A redação do texto científico, seja relatório, TCC, dissertação, tese ou artigo, reflete o pensar do cientista. E de onde vem esse pensar? Vem da Filosofia da Ciência, que nos mostra como a ciência age e o que busca; da Lógica, que é a raiz do nosso pensamento racional; da Epistemologia, que nos indica as abordagens para construirmos conhecimento; da Ética, que nos guia a fazer de forma honesta; da Metodologia, que nos mostra ferramentas de procedimento intelectual e operacional para evitarmos vieses equivocados nas argumentações; e da Comunicação, que nos dá elementos para melhorarmos nossa capacidade de troca de informação, no caso, por meio da escrita. As quatro primeiras estão na Filosofia. O texto não pode ser contraditório a esses preceitos. Veja as seguintes analogias: como ser de uma denominação religiosa se nossa fala e prática contradiz os pressupostos dessa denominação? Como estar no meio da torcida de um time de futebol e aplaudir o adversário?

 

Vou citar um dos muitos exemplos que mostram como a reflexão filosófica sobre o processo de ciência afeta a escrita. Trata-se da redação na primeira pessoa (um autor = eu; +um autor = nós). A opção por um desses formatos não decorre do autor assumir ou não a responsabilidade pelo trabalho; óbvio que ele deve assumir o trabalho pelo simples fato de ser autor. A questão é outra e poucos percebem, pois vem da base filosófica da ciência e isso é grego para uma vasta maioria de nossos pesquisadores. Vejamos!

 

Se concluirmos afirmando “conclui-se que A melhora B”, reforçamos que essa conclusão veio de nossas evidências (resultados) e que pouco importa quem fez a análise para elaborá-la; afinal, está escrito no impessoal, não depende da pessoa. A forma impessoal implica que qualquer cientista que olhar nossos dados concluirá a mesma coisa. Porém, isso não se sustenta na lógica e na história mais recente da ciência. Há muito que os cientistas perceberam que os dados não determinam as conclusões, mas que nós “interpretamos” os dados. Com isso, o uso do impessoal nas conclusões implica assumir um pressuposto da ciência do século XVII, o qual já não se sustenta mais. O adequado é dizer “concluímos (ou concluo) que A melhora B”, sendo a discussão do trabalho o local onde o cientista mostrará porque essa conclusão deve ser aceita. Assim, a discussão também fica escrita no “pessoal” e, com ela, todo o restante do texto, inclusive a metodologia. Veja que não é uma questão de gosto pessoal e muito menos de regra cabalística, mas de uma reflexão lógica a partir de bases filosóficas do processo de fazer ciência. Portanto, jamais será uma questão de área. Note que, independentemente de área, a escrita no impessoal é mais frequente em revistas mais fracas ou menos conhecidas, enquanto que a escrita no pessoal perambula mais as revistas internacionais de melhor nível, independentemente de área. Publiquei recentemente um artigo numa revista americana internacional cuja norma era escrever no impessoal. Porém, argumentei com o editor e ele se convenceu e permitiu a publicação na primeira pessoa. Se fosse em revista fraca, acho que não teria conseguido.

 

Existem regras universais da escrita acadêmica voltada a publicações?

Volpato: O que existe é um pensamento científico que conduz as argumentações no texto. Por isso, a tentativa de criar checklists e protocolos para produzirem artigos científicos é um desastre e revela a ignorância de seus propositores; infelizmente, isso é muito comum no Brasil. Veja que há boas revistas em que o autor é livre para contar a sua história.

 

A escrita acadêmica é um setor da comunicação humana e, como tal, requer respeito ao idioma, à ciência e à criatividade. Como idioma, ciência e criatividade estão sujeitos a mudanças ao longo do tempo, o mesmo é esperado que ocorra na escrita acadêmica. Porém, na escrita científica, nunca devemos minimizar questões de ciência a favor de questões de comunicação.

 

Com o aumento exacerbado das publicações científicas disponíveis na internet, particularmente a partir da década de 1990, uma das condutas mais comuns é que os textos tentem facilitar a vida do leitor. Assim, veja que o que valia para a época das revistas impressas, pouco vale para as revistas digitais, embora a ciência praticada seja basicamente a mesma. A própria globalização trouxe para o brasileiro a percepção de que ciência nacional não existe, mas existe ciência, que é, por natureza, uma atividade internacional. Mesmo que alguns setores ainda resistam, essa é a realidade e se coaduna com preceitos filosóficos sobre o fazer ciência. Nosso problema é que não fomos treinados e trabalhar a relação entre a singularidade, os casos particulares e regionais, dentro da percepção de construção de ciência que produz generalizações para melhor entendermos o mundo.

 

Tal carência traz em seu bojo a noção de diferentes regras para a redação científica. Podem variar formatos de revistas, mas a parte lógico-estrutural do discurso científico, seja na pesquisa qualitativa ou quantitativa, é a mesma em qualquer área. Umas usam o tradicional IMRD (Introdução, Métodos, Resultados e Discussão) e outras ficam mais livres, mas todas usam estruturas lógicas (dedutivas ou indutivas) para demonstrações de conclusões baseadas em evidências ou em raciocínio lógico-matemático. Pesquisas que não geram conclusões, não geram ciência. Fazer ciência não é levantar problemas (isso ocorre na Filosofia), mas resolver problemas. Isso também diferencia os textos científicos daqueles puramente opinativos.

 

Pergunte-se: por que o cientista se baseia em evidências? Por que descreve procedimentos? Por que usa métodos estatísticos com os números e outros métodos bem estabelecidos para as informações qualitativas? Por que há um item chamado discussão? Por que precisamos apresentar conclusões? O que são conclusões? Por que não publicamos internacionalmente se não tivermos conclusões, mas apenas sugestões? Por que precisamos fundamentar nossos objetivos ao construir nossa introdução? Por que chegamos a incluir citações em alguns locais do texto? Por que precisamos escrever um título e um resumo? Por que algumas revistas pedem que, ao final do artigo, coloquemos “com era o conhecimento antes deste artigo” e “o que adicionamos a isso”? Por que temos que publicar em inglês? Enfim…

 

Em sua opinião, quais são os fatores que mais influenciam um artigo acadêmico ser publicado em revistas internacionais?

Volpato: Primeiro, esclareço que revistas internacionais são todas que, sejam de qual país forem, são buscadas por cientistas de vários países para publicarem seus artigos, bem como fornecem conhecimento científico que é usado por cientistas de vários países para a construção da ciência. Além disso, são nelas que encontramos publicações dos principais cientistas do meio internacional das respectivas especialidades. Ou seja, são nelas que perambula a ciência.

 

Para adentrar uma revista internacional é preciso que o trabalho traga conclusões que acrescentem novidades à ciência. Esse é o item mais lembrado na avaliação pelos pares, conforme Bornmann e cols. [Scientometrics 77(3): 415-32, 2008]. Nesse trabalho, o foco é no ganho futuro que haverá com a publicação, sendo ganho definido, para a ciência, como avanço científico, utilidade prática do conhecimento, novidade e originalidade. Isso implica saber fazer ciência, mesmo que parta de pesquisas locais. Quando não sabemos fazer isso, ficamos apenas na pesquisa. Temos que lembrar que ao focarmos nosso estudo na solução local de problemas temos menor alcance social. Ao fazer ciência, como tenho definido, muito mais pessoas serão favorecidas. O equívoco que enfatizo decorre da falta de uma base mais profunda sobre o processo ciência. Tal visão equivocada nos impede de entrar na ciência pelas publicações internacionais. Toda pesquisa que ajuda a ciência também resolve problemas locais. Esse é o ponto, pois o cientista avança a partir das pesquisas locais. Porém, há pesquisa locais que nitidamente não têm chance de acento na ciência. Mas nem todo pesquisador sabe disso.

 

Além de conclusões inovadoras e de alcance não local, o trabalho deve atender a critérios de força metodológica internacional e não apenas ao que o pesquisador consegue fazer. Além disso, dada a importância inequívoca da base empírica para o método científico, os resultados devem ser evidentes, claros, o que se consegue com objetivos adequados e metodologia forte. Resultados evidentes podem ser tanto para corroborar hipóteses quanto para negá-las.

 

Por último, o artigo deve ser bem escrito, sem ser primário e considerando que é uma conversa entre cientistas. Isso é diferente da divulgação científica, a qual é feita a partir desses artigos publicados e direcionada para a comunicação com não cientistas e no idioma desse público local. Na questão de estilo de escrita, vale lembrar que, como é conversa entre cientistas, se espera que aquilo que os cientistas conheçam ou percebam não precisa ser enfatizado no texto. Então, escrever artigo científico é bem diferente de escrever artigo de divulgação científica.

 

Note que nossos principais dramas na redação científica não decorrem de alguns erros de escrita que, se corrigidos, resolveriam o problema. A questão é mais profunda, pois precisamos exercer ciência de alto nível. A escrita deveria ser consequência. Sinto que nossa pós-graduação, embora forme muitos doutores a cada ano, não está formando cientistas necessários. Temos vários orientadores e alunos não vocacionados para a ciência e, pelo sistema de avaliação que normalmente adotamos, desestimulamos cientistas potenciais. Ensinar redação científica a um cientista é nitidamente diferente de ensinar a quem é apenas pesquisador. Esse é o lado que a redação científica passa a ajudar a formação de cientistas. Ela é um sinal clínico que pode ser usado ao nosso favor.

 

Outro falso motivo é o idioma. Atualmente, temos bons serviços para revisão da escrita em inglês. O importante é usarmos tais serviços para o aprimoramento da escrita, pois não vivemos em país de idioma inglês. Porém, não devemos usar empresas para estruturarem nossos textos. No máximo, elas deveriam nos ensinar. O argumento científico desenvolvido na publicação espelha a capacidade do cientista. Na escrita científica, devemos expressar ideias e argumentações científicas, mas em inglês. Muitos profissionais tradutores (português inglês) têm dificuldade em fazer a tradução porque não conseguem sequer entender o que estava escrito em português. Muitas frases possuem erros lógicos de pensamento. Por exemplo, não sabemos onde colocar a principal informação na frase, nem quando usar a voz ativa e a voz passiva, ou como melhorar o fluxo entre as informações num parágrafo; e muitos sequer sabem quando terminar um parágrafo e iniciar outro. E tudo isso é questão de lógica!

 

Quais os desafios para os jovens pesquisadores terem uma melhor redação acadêmica?

Volpato: O primeiro deles é aprender como pensa um cientista de alto nível. Para isso, não deve se espelhar naqueles equivocados. Mas, como saber quais são os equivocados? Um caminho é ler artigos em revistas de alto nível internacional, buscando neles o raciocínio dos autores. Apenas ler não resolve; é necessário saber o que observar. Se estudar Filosofia da ciência, Lógica, Epistemologia, Ética, Metodologia e Comunicação, terá chance de melhor extrair esse aprendizado de tais textos.  Porém, isso leva tempo, pois envolve ter certa maturidade com a ciência e com essas áreas. Por isso, a ação conjunta com o orientador é fundamental. Mas o problema é que a maioria dos orientadores também não sabe fazer isso. Assim, o processo fica focado na pesquisa e em detalhes técnicos da área no Brasil, o que retarda nossa evolução necessária. Foi pensando nessa problemática que criei meu instituto, o GilsonVolpato de Educação Científica (IGVEC), o qual começou não pela Redação Científica, mas pelo Clube Ciência do IGVEC, o qual tem o objetivo de ajudar as pessoas a entenderem como um cientista raciocina. Com isso, várias dúvidas da redação científica desaparecem.

 

Quais são os erros mais comuns que o senhor identifica na escrita acadêmica, impedindo o texto de atingir excelência?

Volpato: No nosso caso, a lógica argumentativa é bastante falha, mas a principal está na incapacidade de produzir conclusões de nível geral necessárias para a ciência. Fazemos muita pesquisa e pouca ciência. A pesquisa basta ser produzida pelos cuidados do método científico em seus aspectos metodológicos de execução da pesquisa. A ciência é mais arrojada e depende de um pensar científico mais elaborado. Nossa pós-graduação não tem ensinado isso da forma como deveria. Se as conclusões produzidas não são acreditadas ou, mesmo sendo acreditadas, não agregam valor à ciência, as publicações ficam cientificamente pobres e desaparecem, significando apenas custos de tempo, de dinheiro e de outras modalidades. Nesse caso, uma boa escrita não resolve.

 

Outra falha decorre de concepções teóricas sobre a construção de textos científicos, podendo tirá-lo da excelência. Uma das principais é a não percepção de que temos tais falhas e de não aceitarmos que a redação é consequência e não causa dos textos de baixa qualidade. Nossas falhas vêm de ciência e de Educação Básica. Sem mexer nisso, nunca resolveremos nosso quadro. Conseguir publicar alguns artigos em revista de nível internacional não significa que o pesquisador domine esse cenário científico de sua especialidade. É necessário que ele tenha autonomia nessas publicações e que seus trabalhos tenham algum impacto na comunidade internacional para a construção do conhecimento científico, ao menos da especialidade.

 

Um erro primordial é que foi muito disseminado no Brasil a ideia de que qualquer trabalho, desde que seguindo a metodologia correta, tem seu valor e já entra na ciência. Antigamente se falava muito de “sua tese foi mais um tijolinho na ciência”. Isso assume o que se pensava sobre crescimento do conhecimento científico no século XVII e já superado. Como a concepção impingida aqui é de uma evolução cumulativa, as pessoas acham que qualquer publicação tem seu valor. E não é bem assim. Por isso, talvez, é que o Brasil não consiga boa classificação internacional quando avaliado pela eficiência das publicações (total de citações recebidas/número de artigos). Pode haver algum crescimento por essa via, mas em alguns casos bem específicos. As mudanças que mais precisamos produzir são aquelas que mexem com o status do conhecimento, ao menos em nossa especialidade.

 

Nosso foco educacional é, geralmente, equivocado. Veja um exemplo simples. Enquanto no Brasil aplaudimos nossos docentes a partir dos nomes dos métodos educacionais que usaram, em universidades públicas medianas dos EUA os professores são avaliados pelas inovações que trouxeram aos métodos de ensino que utilizaram – uma percepção radicalmente diferente e que nos diz muito sobre como raciocinamos nesse sistema. Acredito que esses poucos fatores que comentei sejam os principais envolvidos nos nossos erros mais graves e frequentes.

 

Mas, se quer saber algo mais pontual sobre redação e escrita, posso dizer: a) não reconhecer o papel de cada parte do texto na configuração de um argumento científico; b) não saber como a ciência produz conhecimento; c) não entender que o texto requer estratégias comunicacionais não para persuasão, mas para melhor compreensão pelo leitor; d) não conhecer elementos estilísticos de composição do texto científico para trabalhar com ênfases e conexões lógicas que produzem a beleza e lógica dos textos de excelência; entre outras.

 

Em que momento o senhor percebeu a importância da escrita acadêmica?

Volpato: O momento exato não sei, mas em 1986 ministrei meu primeiro curso de redação científica a graduandos e, em 1988, a pós-graduandos. É uma história insana em termos de demanda de atividade e contato com o público, sendo que neste século foi algo em torno de 8 a 10 mil alunos por ano, numa estimativa de cerca de 60 eventos (cursos/palestras). É uma experiência riquíssima, considerando um panorama bem distribuído no Brasil. Posso dizer que vivenciei, com conversas e expressões corporais de alunos, um cenário de ciência dos quatro cantos do Brasil, dos mais pobres aos mais ricos, quase exclusivamente em universidades públicas e cursos de pós-graduação notas 3,0 a 7,0, com alunos de praticamente todas as áreas do conhecimento. Por isso, minha visão não se coaduna com quem apenas vê o Brasil a partir de relatórios ou áreas específicas, muitos deles visivelmente maquiados.

 

Numa análise retrospectiva, vejo que o caminhar que me possibilitou construir o Método Lógico para Redação Científica começou em meu terceiro ano de graduação (1977), quando conheci livros de Filosofia da ciência por influência de meu orientador, Dr. Katsumasa Hoshino. O primeiro foi Explicações Científicas, de Leônidas Hegenberg, que não entendi quase nada. Depois vieram livros de história da ciência e, logo, os de Karl Popper (por ex., A lógica da pesquisa científica) e também livros sobre esse filósofo. Era uma literatura difícil e eu tive muita dificuldade em entender, mas me debrucei por anos para entender um pouco. Com isso, fui vendo outros autores, como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Felizmente, essas leituras me colocaram em contato, dentre outros, com três filósofos estratégicos para a ciência, o que me mostrava o que significava fazer ciência. Paralelo a isso, estavam as conversas quase diárias com meu orientador, Prof. Hoshino. Ele é psicólogo formado pela Universidade de São Paulo (USP), atuante em Neurofisiologia e Comportamento, sendo pessoa de grande inteligência e cabedal cultural invejável. Eu era um nada perto dele, mas ia pegando pedacinhos do que conseguia. Com isso, imaginava como deveria ser a estrutura de artigos científicos. E minhas falas vinham nesse sentido.

 

Quando comecei a examinar as publicações para ver o quanto se adequavam àquilo que eu aprendia, percebi que as revistas brasileiras que eu examinava transgrediam violentamente as bases comunicacionais, lógicas e filosóficas de ciência; quando ia às revistas internacionais, que geralmente eram também de outros países, percebia que tais equívocos eram muitos mais reduzidos. Disso, considerando que a escrita deveria refletir o pensamento científico, comecei a perceber que a ciência que desenvolvíamos aqui tinha problemas. Isso desdobrava diretamente na escrita e, daí, surgiram meus cursos que começaram em 1986 (5 anos após minha contratação na universidade). Meus cursos nos primeiros 10 anos na pós-graduação duravam cerca de 10 dias. Eu dedicava cerca de três dias às questões filosóficas e outras bases teóricas da ciência. Posteriormente, reduzi esse foco e ampliei a metodologia e, depois, passei a ampliar a redação científica reduzindo as demais. Com isso, acabei percebendo que a falha era nesses três setores indissociáveis. Fui percebendo que falhas na base de ciência, metodologia e comunicação são as causas principais dos erros de estruturação e escrita de textos científicos para publicação. Infelizmente, o público tem mudado muito: antigamente queriam o conhecimento profundo… hoje querem o “como fazer”. Essa poderá ser a destruição da nossa academia; um processo induzido e facilitado pela própria academia.

 

Como o produtivismo (exagerado) prejudica a redação acadêmica?

O produtivismo exagerado prejudica, primeiramente, o pensamento científico e, posteriormente, a redação acadêmica. Mostrarei abaixo um pouco da história que minou a chance de nossa ciência estar melhor posicionada no mundo.

 

Vivemos um sistema equivocado com a prepotência de ser correto. As correções nesse sistema não têm ocorrido na velocidade necessária. Que alguns dos gestores mais velhos precisem sair de nosso sistema de produção científica, não tenho dúvidas; mas a preocupação maior é com pesquisadores jovens que se tornam reprodutores prepotentes e com visões equivocadas, estando presentes em universidades de alto prestígio em nosso país. Por isso, tais equívocos não têm vida curta.

 

Veja o quadro da redação acadêmica, que reflete nosso pensamento científico. A redação científica virou problema para muitos, mas isso deveria ser inimaginável num ambiente de ciência de bom nível e coordenado por cientistas orientadores de alto nível. Vejo que nos cursos de redação científica lotamos auditórios imensos, pois é um problema real. Mas, normalmente, os orientadores que mais precisariam assistir aos cursos (possivelmente até publicando bastante), não aparecem. Com isso, o que os alunos aprendem no curso não pode ser aplicado, pois geralmente esses orientadores não permitirão por não entenderem; e o aluno dificilmente consegue inverter esse quadro. Soma-se a isso nossa fraca produção de revistas científicas, cujos aceites dos manuscritos muitas vezes podem estar reforçando erros de ciência e de escrita. A correção desse quadro exigiria um pensamento científico forte, que buscasse derrubar nossas próprias hipóteses sobre nossa realidade, entendendo também que todo conhecimento científico é provisório. Mas aqui a ciência tem sido usada para defender ideologias teóricas e políticas em algumas áreas.

 

Avaliar qualidade científica por meio do número bruto de produções é um sério equívoco. No passado, nas décadas antes da popularização dos computadores e do advento da internet, já nos preocupávamos com o impacto de nossos artigos no meio científico, mas a contagem do número bruto de publicações era mais fácil de ser vista e acabava sendo usada como medida de qualidade. A partir do final da década de 1990, a história muda e outros meios de análise (principalmente considerando o uso que a ciência faz do conhecimento publicado) ficam mais popularizados. Mas, até hoje ainda predomina, em países de ciência fraca, a contagem absoluta das publicações como indicadoras de qualidade científica. No mínimo, deveríamos avaliar a eficiência dos cientistas e das instituições de ciência; a relação entre a aceitação de nosso conhecimento produzido e o número bruto de trabalhos publicados. Veja a situação que ilustro abaixo.

 

Em 2013, pelo Index Nature, ficamos em 50º lugar dentre 53 países na capacidade de converter dinheiro investido em pesquisa em publicação de bom nível internacional. Pelos valores divulgados, havíamos gasto de cerca de US$ 45 milhões para cada artigo em revistas de alto prestígio no meio científico (prestígio, pois eram escolhidas por entrevista com cientistas e não por índices puramente quantitativos). Em 2011, nos aclamamos com bom desempenho quando conquistamos o 15º lugar em termos de número de publicações e o 20º em número de citações recebidas; mas não foi tocado pelos nossos grandes gestores de ciência que, em termos de eficiência (citações recebidas/artigos publicados) tínhamos apenas 50% da eficiência do 20º colocado, o que nos jogaria para as últimas posições. Em 2016, ficamos em 14º lugar em produção bruta de artigos e 16º em citações recebidas, mas em 144º em eficiência de que nossos artigos fossem convertidos em citações. Ou seja, fazemos muito, mas conseguimos pouco. E criar mais revistas para publicar essa ciência apenas nos engana. Em todas as áreas já há revistas suficientes no cenário internacional. O que falta é ciência suficiente para adentrá-las.

 

Esse quadro, que publiquei a partir de 2013 em livros e na internet, mostrava claramente as consequências de termos ignorado vários alertas sobre nossa realidade. Ficamos na ilusão da “visibilidade”, cujos indicadores eram escolhidos para mostrar que éramos bons. Essa farsa adveio, segundo entendo, de uma visão equivocada e de baixa eficiência que assumia que a solução para a ciência brasileira era produzir um monte de pesquisadores, pois alguns se tornariam bons cientistas. Tal sistema ineficiente gasta muito dinheiro, ilude pessoas sonhadoras e anda pouco; deveria ser uma ideia inimaginável, mas se tornou nosso carro chefe.

 

Ainda não temos a humildade necessária para reconhecermos que mesmo pessoas com muitos anos na pesquisa ou altos cargos no sistema científico também possam necessitar aprender o bê-á-bá. E muitos jovens que começam Iniciação Científica, ou mesmo uma Pós-graduação, e até mesmo aqueles que abandonaram esse sistema, se acham os melhores interlocutores de ciência. Falta humildade para perceberem, todos esses, que precisamos estudar e muito para entender o processo e que tais estudos devem ser ponderados pelas mudanças radicais que o sistema passou a partir da década de 1990. Do contrário, como se explicaria que um cientista bem formado se desesperasse frente à exigência de publicação em bom nível internacional?

 

Esse processo todo não prejudicou apenas a escrita acadêmica, pois ela é resultado da ciência que praticamos. Ela estragou nossa ciência e um dos efeitos sentidos foi na redação e publicação científica. Infelizmente, tanto os hierárquicos superiores quanto as vítimas do processo pensam igualmente que temos aqui produção científica de boa qualidade e que somos vítimas do mundo capitalista competitivo que não vê nossas singularidades. Esse é o quadro que nos afasta cada vez mais da excelência científica em minha percepção. O produtivismo exagerado é um produto desse pensamento, pois visa proteger quem não tem qualidade e, muitas vezes, nem ética para aceitar autoria em publicações das quais não participou ou não teve relevância adequada para ser autor.

 

Reportagem: Paulo César Ferraz e Katiana Campeol/Estilo Editorial – UFSM

Edição: Andressa Motter, acadêmica de Jornalismo

 

Divulgue este conteúdo:
https://ufsm.br/r-601-4326

Publicações Relacionadas

Publicações Recentes