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Em cena, o cinema Santa-Mariense dos anos de 1960

*por Marilice Daronco



Nos anos de 1960, dois filmes foram realizados em Santa Maria: a ficção A ilha misteriosa (1962), de José Feijó Caneda, e o documentário de animação A Vida do solo, de Ana Primavesi, Orion Mello, Joel Saldanha e Glycia Doeler. Não se tratam de dois filmes quaisquer, mas sim das duas primeiras realizações cinematográficas de equipes locais. Eles têm em comum o fato de que foram feitos com equipamentos amadores: câmeras 16mm, que foram usadas para um fim diferente daquele para o qual foram projetadas (as filmagens domésticas), graças à vontade de fazer cinema de seus realizadores, muito maior do que qualquer obstáculo tecnológico.

 

Durante dois anos, buscamos informações sobre os dois filmes, almejando construir suas memórias e analisar de que forma eles se relacionam com as identidades do cinema santa-mariense. Trabalhar com as lembranças sobre esses filmes exigiu, num primeiro momento, constituir o próprio campo de pesquisa. Afinal, não havia fontes oficiais sobre as obras. Mesmo sobre o 16mm no país, as pesquisas são escassas. Usando a metodologia da história oral, que não se prende a um questionário estanque, dando mais espaço para que se desenvolva a narrativa de quem está oferecendo seu relato, realizamos dez entrevistas com realizadores, filhos de realizadores, um colecionador de 16mm e pessoas que viveram os anos de 1960 na cidade.

 

Esses relatos deixaram clara a relação de afetos dos realizadores com seus filmes. As entrevistas foram momentos de duelos entre o lembrar e o esquecer, de superação diante da dor de remexer determinados arquivos, pois as memórias ainda que não sejam traumáticas podem ser dolorosas, e também de reencontro com as lembranças sobre essas realizações. Aliadas à pesquisa em jornais, acervos públicos e particulares, as entrevistas ajudaram a compreender que o 16mm oportunizou o primeiro momento de democratização da realização cinematográfica no país. Momento este que foi seguido pelo Super-8, pelo vídeo e pela tecnologia digital nas décadas seguintes.

 

A película em 16mm começou a ganhar destaque com os registros documentais da Segunda Guerra e se popularizou nos anos de 1950, quando os equipamentos passaram a ser usados também pela televisão. Até o surgimento desse tipo de filme, em 1924, só podia fazer cinema quem tinha avantajadas condições financeiras, pois era preciso comprar equipamentos profissionais, em 35mm, que, além de caros, exigiam equipes maiores e eram extremamente pesados, dificultando seu acesso a determinados locais.

 

Em Santa Maria, encontramos exemplos de diversos usos da película em 16mm, desde o Cinejornal Aurora, de Sioma Breitman, nos anos de 1930, até as reportagens da TV Imembuí, emissora local que deu origem à RBS TV, além da realização de A ilha misteriosa e A vida do solo. Enquanto a ficção nos traz uma curiosa história sobre uma ilha habitada por fantasmas onde há um tesouro escondido, o documentário é resultado dos estudos da pesquisadora austríaca Ana Primavesi, que foi professora da UFSM e é considerada mundialmente como a “Mãe da Agroecologia”. Eles são fragmentos de uma grande colcha de retalhos, que ainda são as identidades do cinema local. Melhor dizendo, são a costura por onde começa essa colcha. Somente no momento em que abrirmos os olhos para a importância de cada pontinho que foi dado para essa costura como um todo é que poderemos ter a expectativa de um dia a historiografia do cinema santa-mariense não ser mais apenas uma colcha de retalhos, mas a coberta que abriga e conserva a nossa memória audiovisual.

 

*Marilice Daronco defendeu a dissertação Milímetros da história: memórias e identidades da produção cinematográfica em 16mm em Santa Maria nos anos de 1960 em janeiro de 2017. O trabalho foi desenvolvido no programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM sob orientação do professor Cássio Tomaim

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