“Dispersar” pode ser o verbo das ruas. Isso porque ele possui dois principais sentidos: o de “distrair” e o de “espalhar”. Se, antes, o primeiro era o mais evidente, hoje o segundo se destaca. Em um contexto de distanciamento social, a rua já não é mais vista como espaço para se distrair, mas sim para espalhar (o vírus da Covid-19). A redução dessa possibilidade de distração revelou que, se por um lado, as ruas viabilizam a livre circulação de pessoas, por outro, interferem na livre circulação de pensamentos. Afinal, para muitos dos que puderam cumprir o isolamento social, estar em casa significou refletir mais sobre a própria vida. Segundo o psicanalista Paulo Gleich, o maior convívio das pessoas consigo mesmas colocou uma lente de aumento sobre questões que antes eram minimizadas pelo maior número de distrações disponíveis. Dar atenção ao que se evitava pensar significou, para muitos, sofrimento.
Em pesquisa, o Ministério da Saúde divulgou dados sobre a saúde mental da população brasileira durante a pandemia. Como resultado, no rastreio de transtornos, foi observado 74% de ansiedade na sua forma estado, 26,8% de depressão na sua forma moderada e 12,3% na sua forma grave, bem como 34,8% de transtorno de estresse pós-traumático. Além disso, outras informações do estudo revelam que 29,3% da população procurou ajuda profissional por questões relacionadas à saúde mental, enquanto 34,2% informou que, apesar de não ter buscado suporte, gostaria de ter apoio psicológico, principalmente para lidar com a ansiedade (78%) e o estresse (51,9%).
Recomendações psicossociais e de saúde mental na pandemia têm sido frequentes em sites de órgãos de saúde oficiais. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), reconhecendo os impactos da pandemia na saúde mental, elencam em cartilha algumas indicações. Eles destacam que, para melhor se adequar à realidade do distanciamento social, um modo de produzir estabilização emocional de forma autônoma é adotar algumas estratégias. Dentre elas, salientam a atenção aos próprios sentimentos e necessidades, que pode favorecer a adaptação aos desafios impostos por este momento. Isso se justifica pela ideia de que observar limites e angústias é um movimento necessário para traçar estratégias de aliviamento. A mesma indicação é feita em um documento publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
Perspectivas como essa, que defendem a observação sobre si mesmo, permitem ressignificar a recorrente queixa de estar “pensando demais”, principalmente neste período que amplia determinadas reflexões. Isso porque abrir espaço para o autoconhecimento é também um convite para pensar mais, afinal, é através do ímpeto de refletir, questionar e dialogar que descobrimos mais sobre nós mesmos. Gleich ressalta: “Em meio a um mal-estar como o que a pandemia provoca, é interessante se propor ao exercício de pensar”. Para auxiliar nisso, campos que estimulam a reflexão, como o da própria Psicanálise e também o da Filosofia, podem ser grandes aliados, ajudando a produzir interpretações sobre o “Eu”.
Vida de interrogação
“O que é o homem?”. O professor de Filosofia da UFSM, Marcelo Fabri, descreve que tudo o que se desenvolveu no percurso filosófico ocidental, mesmo que de modo implícito, foi justamente com o intuito de responder a essa pergunta. A respeito disso, acrescenta: “Sócrates é o exemplo mais notável. Ele não oferece uma definição explícita do homem, mas insiste que a vida filosófica é vida de interrogação”. Portanto, o interesse da área é instigar o pensamento, dispondo de perguntas como principal ferramenta para buscar entender o Eu.
Essa perspectiva, além de apaziguar o “pensar demais”, também ajuda a pacificar a angústia da incerteza, tão presente neste período de pandemia. Isso porque propõe enxergar a dúvida não mais como algo que para, mas que movimenta. Afinal, questionar e refletir permite facilitar o reconhecimento de posicionamentos, desejos e caminhos pessoais. Desse modo, é possível visualizar a si com mais clareza e agir a partir disso.
Em um período propício ao “recolhimento”, a busca pelo Eu se torna ainda mais disponível e vantajosa. Fabri expressa que “só há um caminho que nos leva à pergunta por nós mesmos: valorizar o que nos pertence absolutamente, isto é, nossa consciência, a vida psíquica que nos permite o recolhimento em nós mesmos para descobrir o que efetivamente nos pertence e quais as nossas potencialidades”. Logo, podemos entender que, além de pressupor questionamentos e reflexões, o autoconhecimento também requer a valorização da consciência.
A consciência da não-consciência
O consciente e o inconsciente, termos fundamentais para a Psicanálise, são determinantes para a construção do Eu. Considerando isso, Paulo Gleich distingue duas formas de pensar o encontro consigo: através do “autoconhecimento” e do “autodesconhecimento”. Enquanto a primeira perspectiva é limitada e contempla somente o consciente, a segunda é ilimitada e contempla o inconsciente. “Autoconhecimento todo mundo tem, em alguma medida. Quando perguntam ‘quem é você?’, há algumas coisas para responder sobre isso. Mas o autoconhecimento que interessa à Psicanálise é o ‘autodesconhecimento’. O quanto, na verdade, sem saber, conhecemos muito pouco acerca de nós mesmos”, explica.
O que o psicanalista faz é um convite à saída do senso comum. Fora dele, descobrimos que o autoconhecimento tem limites e que, por isso, há muito sobre nós que não conhecemos e que, inclusive, nunca sequer entenderemos. “Autodesconhecimento é reconhecer a dimensão do inconsciente. A gente não consegue tornar o inconsciente consciente, mas é possível saber que ele existe, prestar atenção a ele e dar espaço a ele. E isso paradoxalmente é um certo tipo de consciência e autoconhecimento”, aponta Gleich.
Compreender essa barreira nos permite refletir e questionar muito mais, explorando o Eu com maior profundidade. Ao assumir que o desconhecimento é infinito, há uma abertura verdadeira para as perguntas sobre nós mesmos, que são capazes de expandir nossos pensamentos e a nossa experiência de vida – sobretudo neste período conflituoso. Cercados por tantas incertezas, admiti-las é o primeiro passo para, então, acolhê-las. Pois falta de certeza é dúvida. E é a partir de perguntas que encontramos respostas.
Saída do senso comum
Gleich expressa que a ideia que existe no senso comum quando se fala em autoconhecimento é de um conhecimento do Ego. Essa palavra, recorrente tanto no campo da Psicanálise quanto da Filosofia, vem do latim e se traduz como “Eu”. Na teoria psicanalítica, o Ego faz parte do nosso aparelho psíquico e tem a função essencial de lidar com a realidade externa.
Nas palavras do psicanalista, o Ego é um conjunto de verdades no qual nos apoiamos para nos apresentarmos ao mundo: “o problema da ideia do autoconhecimento voltada somente para o Ego [do senso comum] é que ela deixa de fora tudo aquilo que o Ego desconhece ao criar todas essas verdades para si próprio”.
Mais frequente, essa perspectiva é a que costumamos tomar para nos descrever de um modo mais vago. “O Ego é como a roupa que a gente veste para sair na rua. É ‘eu sou assim’, ‘eu tenho tais características’. O problema do Ego é que a gente tende a confundir essa roupa que a gente precisa vestir, como se ela fosse a nossa própria pele”, explica.
Para ele, como uma roupa, o Ego nos apresenta, nos expõe e nos protege. Ele é tão fundamental quanto superficial. Afinal, através da apresentação e exposição, o sujeito diz quem é, mas diante da proteção excessiva se vê incapaz de entender o porquê de ser: “O Ego é uma falsa ideia de autoconhecimento. Ao se questionar, esse primeiro autoconhecimento se desmancha e a pessoa percebe que não sabe de muita coisa”.
Para sair do senso comum, é preciso estar disposto a “pensar demais”, ou, pelo menos, “pensar mais”, para ir além do que é habitual. Avançar nesse sentido requer reflexão e questionamento acerca do que é desconhecido. “Esse tipo de autoconhecimento, que parte do autodesconhecimento, permite pensar, enxergar e sentir coisas que o autoconhecimento do Ego, que é muito cheio de certezas, não permite. Então ele amplia a experiência de vida de uma pessoa”, sustenta Gleich.
Logo, para o psicanalista, se desfizermos alguns “nós” da “roupa do Ego”, tornamos as perspectivas sobre o Eu mais ricas: “Poder implodir esse autoconhecimento que restringe e limita é uma forma de autoconhecimento que vai em direção ao autodesconhecimento. E essa é uma grande vantagem, eu penso, em relação a uma vida empobrecida pela estreiteza de algumas certezas, ideias e sensações”.
Refletir, questionar e dialogar
A palavra “demais” pode representar excesso – exagero – ou demasia – intensidade. Quando o sentido que damos à expressão “pensar demais” parte do excesso, ele pode receber e revelar um tom negativo de algo que requer atenção. Mas quando significamos a partir da demasia, entendemos a importância de “pensar demais”. Afinal, pensar em autoconhecimento sob a perspectiva da Filosofia e da Psicanálise é “pensar demais”, visto que sugere pensar intensamente e sobre um raciocínio que, em sua totalidade, não tem fim.
Segundo André Oliveira Costa, “‘o pulso ainda pulsa’. Estamos o tempo todo em movimento, sem cessar. O autoconhecimento nunca vai se fechar”. O professor convidado do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSM é autor do artigo “A construção do Eu nas narrativas de vida”, com participação de Karen Worcman. Na pesquisa, o foco é a constituição do Eu e o modo como a produção de uma narrativa de vida pode significar, para quem narra, o exercício de construção.
Ao analisarem relatos, os autores não colocam o “fato” por trás da história narrada como ponto principal. O foco é o próprio indivíduo e a forma como lida com sua memória e produz o seu relato individual a partir dela. O que importa é a organização e tradução que se faz, para o outro, daquilo que se viveu e conheceu. Além da pesquisa minuciar ainda mais a construção do Eu, ela também conversa, de certo modo, com as perspectivas de Marcelo Fabri e Paulo Gleich, ao passo que destaca a importância do diálogo.
Para Marcelo Fabri, a vida implica o contato entre os sujeitos, que gera o diálogo e o confronto necessários para tentar responder à questão “quem é o homem?”. O contato que Paulo Gleich considera importante nesta busca é, em especial, o da análise, através da fala e da escuta que, com tempo, atenção e dedicação, trazem efeitos à descoberta pessoal. Refletir, questionar e dialogar. Essas são as principais palavras para ressignificar o “pensar demais” e, também, para considerar o autoconhecimento – ou autodesconhecimento.
A lente de aumento colocada sobre o Eu, durante a pandemia, permitiu que muitos saíssem da distração para a atenção e, assim, dessem o primeiro passo em direção a uma busca por um entendimento de si. Sem fim, o autoconhecimento também não se limita a esse período, mesmo que represente uma maneira de atravessá-lo.
Contemplar perspectivas que sugerem reflexão, como as que André Costa, Marcelo Fabri e Paulo Gleich expressam – do contato com a Filosofia e a Psicanálise – pode originar uma série de descobertas. Essas, por sua vez, não dizem só sobre o presente, mas sobre o passado e, de certo modo, influenciam o futuro. Segundo Paulo Gleich: “Sei, pelos testemunhos de muitos colegas e pela minha própria prática clínica, que muitas pessoas procuraram ajuda nesse momento. Embora algumas delas tenham alegado as questões da pandemia, com um tempo de trabalho [de análise] elas vão poder se ocupar das questões que, na verdade, já estavam lá muito antes, mas que a situação de isolamento empurrou para um aumento de sintomas”.
O recolhimento e o conhecimento interno não prometem estancar sofrimentos, mas possibilitam encontrar interpretações mais preparadas para lidar com os antigos, presentes e futuros sentimentos e necessidades. Aqui, considerando em especial aqueles que foram, estão sendo ou serão despertados durante a pandemia. Logo, esses movimentos podem ser alternativas para responder, inclusive, a uma das estratégias de enfrentamento dos impactos negativos do distanciamento social elencadas pela Fiocruz, que consiste em dar atenção a si e observar limites e angústias com o fim de aliviamento. Outras recomendações da instituição envolvem realizar exercícios cognitivos, cursos online e leitura, buscar conteúdos e práticas que reestabeleçam a confiança em si mesmo, realizar exercícios físicos e de relaxamento, participar de grupos de apoio online ou buscar apoio especializado.
Enquanto a pandemia de Covid-19 ainda é uma realidade, as ruas não perdem por completo o verbo “dispersar” – afinal, o sentido de “espalhar” (o vírus) permanece presente. Porém, reconhecer a importância de se manter atento já é uma forma de contrariar o sentido de “distrair” – e, com isso, permitir a entrada de uma série de importantes percepções e interpretações sobre o Eu e sobre o mundo.
Expediente
Repórter: Anna Júlia da Silva, acadêmica de Jornalismo (UFSM campus Frederico Westphalen) e estagiária
Ilustrador: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista
Mídia Social: Samara Wobeto e Eloíze Moraes, acadêmicas de Jornalismo e bolsistas
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas